De um amor morto
De um amor morto fica
Um pesado tempo quotidiano
Onde os gestos se esbarram
Ao longo do ano
De um amor morto não fica
Nenhuma memória
O passado se rende
O presente o devora
E os navios do tempo
Agudos e lentos
O levam embora
Pois um amor morto não deixa
Em nós seu retrato
De infinita demora
É apenas um facto
Que a eternidade ignora
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Geografia, Editorial Caminho, Fevereiro de 2004, p 41
Olhos iguais, outro olhar,
Silêncios da mesma voz,
Memória vaga e lunar
Do sol que fôssemos nós...
Assim erramos incertos,
Juntos, distantes, cansados,
Mordendo o pó nos desertos
Onde houve relvas e prados.
E a Vida escoa-se, enquanto
O tempo, alheio à vontade,
Deslisa, remoto pranto
Duma tranquila orfandade.
Reynaldo Ferreira, in Poemas, Imprensa Nacional de Moçambique, 1960, p 64
a alegria enfeitava-nos o coração e a boca
a alegria
enfeitava-nos o coração e a boca
falámos dos encontros
a tua boca era de terra
era a própria terra
tinha o perfume dos loureiros de ismirna
o mel de siracusa
o sabor das tâmaras dos trópicos
a terra inteira a desfazer-se em sumos
porque partias ao clarear do dia
fomos rápidos
com poucos minutos para inventar mentiras
eu devia ter-te morto para que não partisses
Lourenço de Carvalho, in minha ave africana, Tempográfica, Lourenço Marques, p 15
Soneto
Doce sonho, suave e soberano
Se por mais longo tempo me durara!
Ah! quem de sonho tal nunca acordara,
Pois havia de ver tal desengano!
Ah! deleitoso bem! Ah! doce engano!
Se por mais largo espaço me enganara!
Se então a vida mísera acabara,
De alegria e prazer morrera ufano.
Ditoso, não estando em mim, pois tive,
Dormindo, o que acordado ter quisera.
Olhai com que me paga meu destino!
Enfim, fora de mim ditoso estive.
Em mentiras ter dita, razão era,
Pois sempre nas verdades foi mofino.
Luís de Camões
Minuto
O amor? Seria o fruto
trincado até mais não ser?
( Mas para lá do prazer
a Vida estava de luto...)
Fui plantar o coração
no infinito uma flor...
( Mas para lá do fervor
a Vida gritou que não!
O amor? Nem flor nem fruto,
( Tudo quanto em nós vibrara
parecia pronto a ceder...)
Foi apenas um minuto:
a fome intensa , tão rara!,
de ser criança, ou morrer...
David Mourão-Ferreira, in Obra Poética (1948-1995) , Assírio &Alvim, 2019, p 40
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