50 ANOS
por Eugénio Lisboa
"Publiquei o meu primeiro livro, há 50 anos.
Vivia então na cidade da Beira (ainda hoje se chama assim), em Moçambique. O
livro, diga-se de passagem, não foi publicado na Beira, nem sequer em Lourenço
Marques, cidade onde nascera e onde vivera a maior parte da minha vida até
então vivida. Também não foi publicado em Lisboa, onde tirara o meu curso de
engenharia (como se vê, a minha vocação para eterno “outsider” é impecável).
Viu a luz no Porto, onde nunca vivi, editado pela Livraria Tavares Martins, que
o acolheu numa colecçãozinha intitulada “Poetas de Ontem e de Hoje”, dirigida
por João Gaspar Simões, que eu não conhecia pessoalmente, e que me não conhecia
a mim, nem pessoalmente, nem de maneira nenhuma: eu nunca publicara nada, nem
em livro, nem em revista, nem em jornal e não tinha por costume andar atrás de
escritores, mesmo dos que admirava. A responsabilidade do livro foi-me
simplesmente cometida, de forma algo escandalosa, por um dos tais escritores
que eu muito admirava – José Régio - , cuja obra conhecia como os meus dedos,
mas sobre a qual não escrevera, nem sonhava escrever uma única linha. Uma
noite, em Portalegre, regressando com ele do Café Central – hoje assassinado -
, comunicou-me que, na sua recente visita ao Porto, o Tavares Martins lhe pedira
autorização (e colaboração) para incluir na supra dita colecção, logo a seguir
ao tomo dedicado a Garrett, uma antologia de poesia do autor de Poemas de
Deus e do Diabo. Régio respondera-lhe que sim, com a condição de ser ele –
e não Simões – a escolher o ensaísta que organizaria a antologia e para ela
escreveria um estudo crítico introdutório. E que o escolhido seria um oficial
miliciano chamado Eugénio Lisboa, que conhecera em Portalegre e ali se
encontrava, a cumprir serviço. O Tavares Martins aceitara e, pelos vistos, o
Simões também. Os deuses, nessa altura , estavam singularmente a meu favor,
embora, algum tempo depois, se virassem malevolamente contra mim : tudo se paga
e é sabido que os deuses não gostam de nos ver contentes por muito tempo. Já agora
informo que não pedira para ser colocado em Portalegre com o fim de poder
conhecer e conviver com o Régio – já disse e é verdade que nunca tive o hábito
de andar atrás de escritores, mesmo dos que mais admiro: porque sou
tímido e porque o tempo me foi ensinando que a maior parte deles ganham em não
ser conhecidos de perto. Fui para Portalegre, visivelmente contrariado, por ali
ter sido colocado depois de um curso de cadetes milicianos em Mafra, no qual
dei abundantes provas do meu temperamento pouco acomodatício. Como era rebelde
e refilão, acumulei, durante o curso, castigos (que não cumpri) e fomentei
justificados ressentimentos que desembocaram
numa má classificação, em comportamento (no resto safava-me bem porque o curso
de engenharia tornava todas aquelas disciplinas uma brincadeira de crianças). O
“mau comportamento”, em princípio, não me incomodava (até me parecia um
galardão), o pior é que deu em resultado que me atirassem para uma unidade
perto da fronteira: o Batalhão de Caçadores 1, em Portalegre. Como há males que
nos vêm por bem – e já Pascal, sabiamente, nos aconselhava a fazermos um bom
uso das doenças – a cidade alentejana serviu-me, no mínimo, para ali conhecer o
Régio e, também, o Dr. Feliciano Falcão, médico analista e investigador
laureado, marxista convicto, além de homem cultíssimo, melómano apaixonado,
extremamente bondoso e amigo de ajudar o seu semelhante. A sua inocência fazia
o Régio olhá-lo de soslaio, como se tanta candura não fosse deste mundo. Mas
Portalegre serviu, também, para me apresentar o Alentejo, que ainda hoje é a
minha província favorita num Portugal a que pertenço e não pertenço, visto
encontrar-me maravilhosamente tripartido entre Moçambique, a Inglaterra e
Portugal, minhas três pátrias de que não abdico: não sou um desenraizado, o que
tenho é muitas raízes – em suma, sou rico. De qualquer modo, só para conhecer
uma cabeça como a do Régio e um coração como o do Dr. Falcão, valeu a pena ir
cumprir a pena de degredo, em Portalegre. Para me amparar na minha proverbial
“desfasagem” em relação às forças armadas (pelas quais nunca senti nem a
veneração, nem a subserviência que lhe têm votado quase todos os governos da
democracia portuguesa), valeu-me o inesquecível capitão Carlos Saraiva, homem
de uma inteligência, sensibilidade e compreensão como não tenho encontrado
muitas, dentro ou fora das forças armadas. Fiquei seu amigo para sempre e ele
meu credor, numa tal dimensão, que me não chegariam duas vidas para lhe pagar a
dívida que para com ele contraí. Alguma coisa boa afinal encontrei nas forças
armadas.
Voltando à antologia, comecei por gaguejar com a honra que surpreendentemente me visitava e por dizer ao Régio que, sim senhor, me tocava muito o convite, mas que nunca publicara nada (embora rabiscasse un “diário” errático para a gaveta) e que, portanto, não fazia sentido aceitar a oferta. Mas o Régio sabia-a toda. E foi por ali fora, alegando isto e aquilo e ainda que, nas nossas alongadas conversas de café, eu mostrara um conhecimento, em profundidade, da obra dele, como nunca vira em ninguém, que, acrescentava ele, a escrever, é que se aprende a escrever, e que, em suma, ele não tinha qualquer dúvida quanto ao serviço asseado que sairia das minhas mãos. Mas eu iria, poucos meses depois, para África, atirei-lhe, a ver se o dissuadia... Que não fazia mal: acabava o trabalho antes de partir e ele, Régio, comprometia-se a rever, em Portugal, as provas, com todo o cuidado que punha nas suas próprias coisas. O livro – que sairia “jeitoso”, insinuava ele, a seduzir-me – lá me chegaria às mãos na África das minhas origens... Eu havia de lhe tomar o gosto e continuar. O que era preciso era começar. Por fim, sufocado, em pânico, como quem se atira – e sem coragem para continuar a recusar tão incomensurável oferta – disse-lhe que iria tentar, apesar de ter que fazer o livro ao mesmo tempo que os meus estágios de engenharia e relatórios correspondentes.
Parti para Lisboa em fim de Fevereiro de 1955, envaidecido e apavorado. Parecia-me cada vez mais uma enorme loucura ter-me rendido ao desafio do grande escritor. De qualquer modo, pus-me ao trabalho, aboletado, em república, na casa do Rui Serrão, colega e amigo de batalhão, que também se fizera amigo do Régio e do Dr. Falcão e deixara, por acaso, o coração em Portalegre, nas mãos gentis da “bela Helena”, com quem viria a casar. De dia, fazia os estágios e ia preparando os relatórios e, à noite, relia o Régio, tomava notas, escrevia períodos que me pareciam dignos de, mais tarde, se irem encaixar no mítico ensaio-a-haver. E tinha cada vez mais medo de não ser capaz de escrever coisa com coisa. Mas sempre ia descobrindo, na obra do autor de A Velha Casa, recantos que, até então, só mal entrevira: dava-me um estranho gozo interior sentir, às vezes, que acertara, que tocara em algo de profundamente revelador, mas sufocava-me a angústia de ainda não ver o texto em que tudo aquilo se iria inserir. Foi um trabalho longo, minucioso, lento, angustiado, que durou de Março a Maio: três meses suados e bem suados. Acabei, com uma alegria que não há palavras para contá-la, por descortinar o guião geral em que as minhas pérolas singulares se iriam incrustar. Aqueles átomos de descoberta não iriam ficar pendurados, sem se articularem num todo que fizesse sentido. Finalmente eu via o argumento. Mas havia em tudo aquilo um defeito contra o qual não me apetecia lutar: era o meu primeiro livro, mais, era o meu primeiro texto, e era-o sobre um escritor que eu conhecia bem e que me “agarrara” aos quinze ou dezasseis anos, com um livro que nunca mais saíra de mim: Uma Gota de Sangue, primeiro volante de uma vasta e ambiciosa soma romanesca, que viria a ficar incompleta. Como acontece com os primeiros livros, eu queria meter “tudo” logo no primeiro parágrafo: tal era o medo de que se “perdesse” se o não registasse logo ali... Um ou outro período corria assim o risco de sair, não propriamente “rico”, mas sim “atafulhado”...
Escrevia à mão, com letra bem desenhada e, no fim, copiei o texto num caderno de trinta e cinco linhas (salvo erro, não juro, branco), que enviei ao Régio, em Portalegre. Passara as duas últimas noites a escrever, sem dormir, à custa de anfetaminas, de que, depois, nunca mais abusei. E fiquei à espera.
Pelo meio, acabei os estágios, amanhei à pressa e sem grande convicção, os relatórios e recusei, com desenvoltura e alguma leviandade, um bom emprego que me fora lisonjeiramente oferecido, para Alverca: decidira mesmo regressar a África, à minha África, onde tinha espaço, recordações, família, o Nero já enterrado e, quem sabe, amores à espera. Estava farto de Lisboa, de Portugal, da Europa, da pequenez disto tudo. Ir-me-ia embora – o Régio não aprovava – no princípio de Agosto. Entretanto, no meio da agitação que precedia a partida, chegaria a reacção do poeta aos meus trabalhos de Hércules. E, com efeito, com data de 22 de Maio (três dias antes do meu aniversário) veio por fim a carta acusando a recepção do meu manuscrito. Abri-a a tremer. Entre outras coisas, dizia o seguinte, começando com as “cautelas” do protocolo: “Ao fazer um juízo sobre o seu trabalho, tenho de ser muito sóbrio: isto porque – numa certa medida – louvando-o, quase teria a impressão de me estar louvando a mim próprio(...) Só quis dizer que Você é muito amável com as minhas coisas. As restrições também lá estão, por certo, e ainda bem! Mas os meus inimigos dirão que certos aspectos apologéticos excedem em muito as observações restritivas, Mais uma vez passemos adiante. O que não pode ser louvar-me, - é reconhecer eu a penetração, a densidade, o encadeamento lógico, visíveis (e creio que, felizmente, não só a mim!) em todo o seu estudo, e que, aliás, eu já esperava de Você. A forma nem sempre é lapidar, e até possível é que Você não tenha propensão especial para o lapidarismo. Ainda se não vê bem, perante certos seus longos períodos, o que é devido a uma inexperiência natural num jovem escritor, ou o que deriva de uma personalidade. Mas o emprego do termo próprio, justo, já é notável na sua prosa; e devo confessar que, se já esperava de Você as qualidades de inteligência e sensibilidade patentes num estudo tão completo e aprofundado a dentro dos seus limites de extensão, não sabia, por ainda não ter lido nada seu, quais seriam as suas possibilidades de expressão verbal. Vejo que tais possibilidades de expressão já não desmerecem da coisa exprimível. Estou, portanto, e em suma, verdadeiramente satisfeito com o ter escolhido, se me permite falar assim. Quando o livro saia, e me pedir alguém de fora (como já tem sucedido) um estudo que dê uma ideia da minha obra – terei, finalmente, um pequeno volume em que já se diz muito sobre ela.” O elogio, vindo do cauteloso Régio, era de monta. Mas fui particularmente sensível ao facto de ele ter percebido o “encadeamento lógico” do meu texto: sofrera angústias, com o receio de não vir a dar uma articulação de enredo ao conjunto de observações que a obra regiana me suscitara. Temera, sobretudo, produzir um amontoado de “pérolas” sem fio de ligação – e, sem fio, como nota Ortega y Gasset, não há “colar”. A carta de Régio vinha sossegar-me. Quanto à falta provisória de “lapidarismo”, tinha razão. E também pressentira a causa: a inexperiência do principiante que visa meter “tudo quanto sabe” logo no primeiro parágrafo. Eu próprio estava consciente disso. E fiquei grato por mo não ter escondido.
Mas tenho que fazer aqui uma observação que nunca, em vida do poeta, quis fazer para o não ferir. É que parte da “inexperiência” de escrita por ele (e por outros) mencionada se ficou a dever a uma revisão de provas que não fora afinal tão cuidadosa como me prometera o autor de As Encruzilhadas de Deus. Alguma desatenção à pontuação, algum desaparecimento de pontos - e - vírgulas tornaram certos períodos cristalinamente claros em algo dificilmente compreensível... Não era, repito, apenas inexperiência: eram as tais gralhas de que o próprio poeta se queixava num lancinante poema das Encruzilhadas de Deus – e que me crucificaram a mim, logo no meu primeiro livro, o qual tanta simpatia votara às ditas “Encruzilhadas”!
O livro levaria dois longos anos a ser produzido, alegando o editor problemas financeiros – o que devia, em parte, ser verdade. Em África, primeiro em Lourenço Marques (um ano), depois na Beira (outro ano) fui esperando. Sem grande impaciência, diga-se. Outros problemas mais prementes (mais urgentes, mais “interessantes”) me ocupavam e desviavam do livro longínquo: profissionais, pessoais (amores contrariados), culturais, políticos, geográficos... Por fim, dois anos após ter entregue o manuscrito, chegou-me à Beira – onde a vida me era, simultaneamente, estimulante e frustrante – a encomenda com alguns exemplares do livrinho. Vinha bonito, elegante, escorreito, com uma bela fotografia do Régio na capa – ao lado desta, causando-me uma infindável estranheza, o “por Eugénio Lisboa”. Das 200 páginas do livro, 80 eram ocupadas pelo meu texto e notas. Dava para ficar de cauda perpendicular, como dizia o Eliot, falando de gatos. Mas não sofri, com esse primeiro livro, os tais pudores de me “ver exposto”, de que falava o Régio no posfácio aos Poemas de Deus e do Diabo. Não creio que o livro tenha chegado à livrarias da Beira e, em Portugal, se esteve nas montras de Lisboa ou do Porto, confesso que não sei – não estava lá para o verificar e nunca fui pessoa de perguntar essas coisas...Ego, sim, mas devagar. Mas sempre fui mostrando o voluminho aos amigos do Cine-Clube da Beira (o primeiro a aparecer em Moçambique), os quais, tudo gente de esquerda, tiveram a generosidade de produzir ruídos de apreço: que me tocaram fundo, sabendo eu as reservas que “aquela” esquerda sempre pôs à terrível independência do Régio. Enfim, tornara-me uma espécie de celebridadezinha local, quase exótica, quase repreensível, publicando ruminações sobre obsessões umbilicais de um rebelde de Vila do Conde... É preciso um pouco de tudo para fazer um mundo. O Joaquim Elias, o Noronha Marques, o Álvaro Simões, tudo bons amigos da Beira, lamentavam, por certo, a minha mania do Régio mas, como eram amigos, davam-me pancadinhas ternurentas, ainda que irónicas – e tingidas de alguma pena. É claro – e é humano – que, como todos os escritores, eu esperava a consagração absoluta. Vira no Régio – achava eu – coisas que mais ninguém vira, alinhavara, sobre elas, períodos que me pareciam perfurantes. Que podia, pois, esperar, senão uma estrondosa aclamação? Foi, neste ponto, que os deuses resolveram, como fazem muitas vezes, gozar comigo. O ataque, fulminante, impiedoso, sem atenuantes, partiu do próprio director da colecção em que o livrinho se inseria. Podia, desde logo, parecer estranho: o responsável oficial pela série, demolia, de alto a baixo, o texto que aceitara para a colecção que dirigia... E era, de facto, bizarro. Mas o Régio, fino psicólogo, logo lançou bálsamo na minha ferida: tudo fora desfavorável, explicou-me ele, ao orgulho de João Gaspar Simões: o poeta escolhido para segundo volume da série fora-lhe imposto pelo editor: Régio, com quem Simões estava de relações frias ou mesmo cortadas; o ensaísta escolhido para estudar Régio fora imposto ao director da série pelo próprio homenageado; e eu, pelo meu lado, recusara-me a atender ao pedido diplomático de Régio, no sentido de salpicar com alguns adjectivos mais lisonjeiros o percurso crítico de Simões, de quem falara, de passagem, como director da revista presença (ou, em alternativa, como parece que preferia Simões, não o mencionar pura e simplesmente, visto ser ele o director da colecção – o que também julguei inaceitável). O autor de O Mistério da Poesia, que por essa altura se via atacado de todos os quadrantes da rosa dos ventos da literatura nacional, encontrando-se portanto em carne viva, reagiu mal a esta falta de veneração de um jovem principiante de vinte e poucos anos. A sua recensão crítica foi, como disse, demolidora e aleijou-me por muito tempo: comparava-me com tudo quanto era gente grande, no ensaísmo literário lusíada, para não ver, em mim, nenhuma das componentes virtuosas que via neles. De principiante canhestro, para baixo, chamou-me tudo. Não foi, porém, só a humilhação sofrida às suas mãos que me chocou. Foi um pouco como se tivesse, por fim, perdido, de modo doloroso, a minha inocência, no reino turbulento dos costumes literários: ver um homem, apesar de tudo prestigiado, criticar ,e ainda por cima tão negativamente, um autor publicado numa colecção por ele dirigida ultrapassou tudo quanto pudesse ter imaginado. Na minha ingenuidade, eu teria suposto que um director de colecção deveria simplesmente abster-se de fazer crítica aos autores a cuja edição preside. Mas até o mais impensável acha sempre forma de acontecer debaixo do sol que a todos nos alumia e aquece...
Não foi, no entanto, Simões o único a ferir o meu incipiente orgulho literário – no Brasil, Casais Monteiro receberia uma carta acerba de Régio por ter feito uma leitura “displicente” do meu texto. Houve risco de zanga séria. Como nunca fui de assinar “recortes” de jornais, confesso que não tenho nenhuma ideia muito nítida de como reagiu a crítica lusíada, em geral. Mas tive duas grandes consolações, uma delas, inesperada e quase intrigante. A primeira veio do David Mourão-Ferreira que, no Diário Popular, se desunhou em elogios, num generoso esforço de leitura simpatizante (embora não deixasse, também, de fazer alguns reparos justos). A segunda – a tal inesperada – veio do Porto, da pena de António Ramos de Almeida, neorealista de fundamentação marxista e admirador cheio de reticências de Régio e da presença. Pois, mesmo assim, o António Ramos de Almeida viu, no meu textinho, maravilhas de penetração e de não sei que mais. Vou só citar, para vosso entretenimento e gozo, uma passagem da surpreendente recensão do neorealista Ramos de Almeida: “Eugénio Lisboa, um nome desconhecido, um jovem ignorado nas lides literárias, ganha neste «Ensaio [José Régio –Col. «Poetas de Ontem e de Hoje»]”, ainda inexperientemente escrito, foros a ser considerado e tratado como um dos temperamentos críticos mais desassombrados e penetrantes que ultimamente surgiram no tablado das nossas letras. (...) O «Exame Crítico» de Eugénio Lisboa recai exclusivamente sobre a obra poética de Régio, mas deixa-nos algumas penetrações subtis e ousadas sobre o mundo estético, ético e psicológico do Poeta (...) O subjectivismo, mais, o egocentrismo de Régio é sondado desta vez sem qualquer «parti-pris»...” Vindo de quem vinha – e o meu texto não deixava dúvidas quanto à fundamentação não-marxista que lhe presidia -, a accolade quase me consolou das diatribes simónicas. Mas, ao fim e ao cabo, Simões, mesmo acirrado por todos os quadrantes, continuava a ser o mais influente crítico literário português e exemplar único de crítico sistemático, isto é, semanalmente presente. E, com todos os seus erros e improvisações desastradas, tinha atrás de si uma obra que testemunhava de um quase infalível faro literário. Ora ele, no fundo, mandara-me mudar de vida. Pois é: mas o que é não menos verdade é que a vingança se serve fria. E foi assim mesmo – extremamente fria – que eu involuntariamente lha servi, três anos depois. De facto, em 1960, em edição belíssima da Imprensa Nacional de Moçambique, viram a luz os Poemas de Reinaldo Ferreira, malogrado grande poeta, falecido em Lourenço Marques com 37 anos. O livro foi organizado, a partir de um desorganizadíssimo espólio, por um grupo de amigos e admiradores, de que eu fazia parte. A introdução, não assinada, era de minha autoria e correspondia ao texto de uma pequena palestra que fizera, meses antes, na Câmara Municipal de Lourenço Marques. Enviado o livro para jornais e revistas de Moçambique e da metrópole (como então se dizia), João Gaspar Simões deu-lhe a sua atenção crítica no Jornal Português de Economia e Finanças, elogiando sem reservas, o anónimo prefaciador. Mas fez mais: tendo-se encontrado com Régio, com quem as suas relações estavam menos frias, desatou a exaltar entusiasticamente os talentos ensaísticos do anónimo prefaciador. Pérfido, o Régio, que sabia muito bem quem era o autor do prefácio, foi propondo dúvidas: então o João achava aquilo assim tão bom? Não estaria a exagerar? Simões, quanto mais se via “travado” pelo autor do “Cântico Negro”, mais se derramava em elogios: que penetração, que cultura, que qualidade de escrita! Que revelação! Até que o Régio lhe perguntou se ele tinha alguma ideia de quem era o autor do texto assim tão elogiado. Não, Simões não tinha ideia nenhuma. Então o autor de Jogo da Cabra Cega, especialista consumado em jogos da cabra cega, disse-lhe: “O autor é aquele rapaz que fez a minha antologia para o Tavares Martins e de quem tu disseste tanto mal...” Simões, obviamente, salvou a face: que não havia dúvida, o jovem melhorara muito, de então para cá! Esta história tenho-a, em primeira mão, porque me foi contada pelo próprio Régio. Mas não termina aqui. Havia nobreza em Simões. Anos depois, tendo eu ido a Portugal (residia ainda em Lourenço Marques), Luís Amaro, de quem me tornara amigo, combinou encontrar-se comigo no seu escritório da Portugália, em Lisboa, e disse-me que o Gaspar Simões mostrara interesse em me conhecer pessoalmente. Ainda de asa ferida – os aleijões literários não se curam facilmente com qualquer pomada - , disse ao Luís Amaro que não me apetecia muito ver o Simões. Porém, no dia aprazado, quando me encontrava a conversar com o Luís, aparece-me de supetão o biógrafo de Eça e Pessoa que, com grande alarde, me abraça e me cobre de simpatia. Ficou, a partir daí, meu amigo fiel. E teve a suprema delicadeza de nunca se referir ao passado. As quatro recensões críticas que depois fez a livros meus foram impecáveis de empatia, penetração e não pouca generosidade. Quando estava a viver em Londres e vinha a Lisboa, João Gaspar Simões fazia sempre questão de me convidar para almoçar. Parafraseando o Artur Portela Filho dos bons tempos, eu e o autor de Pântano por várias vezes desferimos o garfo no Grémio Literário. E tive ocasião de o levar a Londres e a Cambridge, para ali fazer conferências. Devo dizer que, nas viagens de automóvel que por ali fiz com ele e numa ida ao teatro onde o levei a ver uma peça de Tcheckov, Simões falava-me, é claro, de livros e de autores, mas os seus temas preferidos eram, claramente, carros e mulheres. Já rondando os oitenta anos, ainda sofria, proustianamente, de amores mal correspondidos. E, passeando-nos, repousadamente, nas ruas de Londres, passava a vida a inquirir sobre estações de correio onde deitar um postalinho para determinada senhora de sua especial atenção, naquele momento. Acabou por me confessar – como quem se desculpa da sua pouca assiduidade epistolar com os amigos – que escrever só gostava realmente de o fazer a senhoras que o interessavam: tirando isso, a epistolografia não o atraía. Que eu não levasse, pois, a mal escrever-me tão pouco. Mas ia-me enviando para Londres os seus livros e eu retribuía, mandando-lhe boas biografias inglesas, que ele adorava ler, e contos do Isaac Bashevis Singer, de quem se tornou verdadeiro fã. Conto tudo isto, só para dizer que, na história do meu primeiro livro, as relações com o autor de Elói começaram o pior possível e acabaram em tons cor de rosa. Quando faleceu, em 1987, estava eu ainda em Londres, senti que se fazia na crítica portuguesa um buraco e outro se fazia no universo das minhas amizades. Não que o seu ensaísmo ou o seu discurso crítico tivessem muito que ver com os meus ou com os de outros que sempre privilegiei. Nem só de intuição certeira (às vezes) vive o bom ensaísmo. A verdade é que prezei sempre uma aliança íntima e fecunda entre a inteligência, a sensibilidade e o gosto da clareza. Se Simões, com todas as qualidades que inegavelmente tinha, improvisava demasiado, para o meu gosto, também, por outro lado, muito discurso ensaístico prevalecente no mundo académico me deixava crispado, pela opacidade rebuscada, compacta e aparatosamente feia , que sempre me fazem recordar, com algum gozo, a chacota feita pelo historiador Paul Johnson às abstrusas circunvoluções do filósofo inglês, Sir Peter Strawson. Na sua crónica intitulada “Waiting for a few Delphic Utterances”, Johnson cita esta passagem particularmente opaca do filósofo: “Por fim, conquanto seja verdade que, sem um muito elevado grau de regularidade causal, sentiríamos a falta dos próprios conceitos daqueles objectos relativamente persistentes que sustêm a unidade espácio-temporal do mundo, [a verdade é que] o argumento a favor do reino universal da causalidade natural – do determinismo absoluto – permanece inconclusivo”. Todo este charabia estapafúrdio, nota Johnson, para dizer esta coisa luminosamente simples: “As leis da Física são úteis mas podem nem sempre funcionar”. Quanto discurso académico, quanta tese de doutoramento não abunda nesta teratologia estilística que propõe a treva como valor solidamente cambial! A obscuridade sempre me pareceu má conselheira e o seu cultivo sinal de má-fé.
Entre este meu primeiro livro, de 1957, e o segundo, de 1973, decorreram 16 anos. Como se vê, publicar, fazer sair mais um livro, ver-me exposto – não tem sido uma das minhas grandes vocações. Escrever, sim. Publicar, não, necessariamente. O preceito latino nulla dies sine linea esteve sempre comigo e nunca esqueci uma passagem de um livro de Jean Dutourd, segundo o qual, a mão que não escreve todos os dias endurece, tal como endurece a teta da vaca que não é ordenhada diariamente. Simplesmente, a necessidade de escrever não correspondia, em mim, à necessidade de publicar, sobretudo, em forma de livro. Seja como for, de Portalegre, de Vila do Conde, Régio – amigo fiel e implacável – espicaçava-me por carta. Eu sentia, com alguma razão, que, por um lado, tinha uma profissão técnica a desempenhar e, por outro, ou era o mesmo, uma família a sustentar. Mas que continuava, dentro das minhas possibilidades e com alguma obstinação, a trabalhar, publicando em jornais e revistas de Moçambique textos de que me não envergonhava. Sobre André Gide, sobre Montherlant, sobre Thomas Mann , sobre Bertrand Russell, sobre Shakespeare, sobre Álvaro Lins, sobre Régio, Fialho , Manuel Laranjeira, Jorge de Sena, Miguel Torga, Irene Lisboa, Fernando Namora, José Craveirinha, Maria Silva Pinto, Ascêncio de Freitas ou Gouvêa Lemos, produzi textos que continuo a prezar. Mas nada disto, até 1973 , se organizara em livro. Porque não me parecia nem urgente, nem importante publicar livros. Régio não se resignava e aconselhava-me a ser “mais profissional”. Tentou mesmo convencer-me a colaborar, com ele, no suplemento cultural de O Comércio do Porto, que tinha, por essa altura, grande prestígio. Aqui, em África, nesta Lourenço Marques em que nascera e estudara (e casara e tivera filhas), nesta África espaçosa, viver, conviver, trabalhar na Voz de Moçambique, no Cine-Clube e, durante algum tempo, no diário A Tribuna, depois devorado, como quase tudo, pelo Banco Nacional Ultramarino, atazanar os poderes vigentes – era-me mais importante do que publicar mais um livro. A boa escrita alimenta-se mais da intensidade da vida que nos devora do que de mais escrita ou de muita escrita. Eu ia “aparecendo”, como dizem os literatos, mas não sob o formato de livro. Em 1969, Régio falecia, com 68 anos, e fugia-me um amigo essencial e um vigilante de peso. E só então, ironicamente, começou, para mim, com mais alguma assiduidade, aquilo a que se costuma chamar, pomposamente, uma “carreira de escritor”. Com o desaparecimento do autor de Histórias de Mulheres, que tanto e tão em vão pugnara pelo meu “aparecimento” mais frequente, veio-me o convite da hoje desaparecida editora Arcádia, para a elaboração do livro José Régio – A obra e o Homem. Ungido de remorsos, por tão mal ter correspondido ao dedicado interesse e afecto do autor de A Velha Casa, aceitei, como quem se redime, o convite, gastei umas férias de verão africano fanaticamente fechado em casa, sem receber amigos nem adjacentes, passei a pente fino a obra vasta e densa do criador da Benilde, enchi de fichas e papéis o tabuleiro amplo da minha secretária feita de madeira “jambir” e, terminadas as férias, suando prodigiosamente sob o clima assassino, usei noites e fins de semana impiedosos, até produzir as quatrocentas e tal páginas do que, sem vergonha de qualquer espécie, considero o que de melhor e mais abrangente e mais cuidadoso se escreveu até hoje sobre o autor do Jogo da Cabra Cega. E foi, realmente, um começo. Entregue à bagunça que era a Arcádia, por essa altura, já em graves dificuldades financeiras, passar-se-iam anos até o livro ser finalmente publicado, quando o novo director, Jorge Martins, que me não conhecia, tomou em mãos a tarefa editorial, fez um novo contrato, para mim mais favorável, e tudo isso me caíu em cima, aqui em Lourenço Marques, num momento turbulento em que se ouvia tiroteio pelas ruas e tudo ameaçava fim, menos o meu livro que ia, enfim, começar. O livro saiu para as livrarias, em Portugal, no momento em que eu passava por Lisboa, a caminho de Estocolmo: Janeiro de 1977. Mais uma vez, a “glória” de me ver exposto – fugia-me: o livro ia ser “visto” nas montras e nos jornais, por outros, mas não por mim, encafuado como me encontrava naquela improvável paisagem nórdica em que a neve me trepava pelas pernas até à altura dos joelhos. Em jornais portugueses que encontrava em bibliotecas municipais de Estocolmo, fui vendo que o livro era acarinhado: desta vez, o João Gaspar Simões embandeirou em arco, o Pedro Támen, no Expresso, disse coisas assaz bonitas e, mais tarde, na Colóquio – Letras, o Pierre Hourcade coroou-me imperador. Os deuses, parecia, estavam fartos de gozar comigo. Depois, as encomendas nunca mais pararam de chegar: quase tudo quanto publiquei foi obra de encomenda. A própria poesia, que escrevia à sucapa, para ninguém ver, me foi pedida, para livro, por uma editora de emigrantes portugueses a residirem na Suíça. A minha esperança era que fosse tão mal distribuída, que ninguém desse por ela. Mas o júri do Prémio Cidade de Lisboa deu mesmo por ela e atribuiu-lhe o galardão: senti-me tão mal com ele, que ofereci o dinheiro ao estimável editor, João David Rosa, homem empreendedor e amigo da cultura, que viria a suicidar-se poucos anos depois. Fora ele quem enviara o livro para efeitos de prémio, na sua qualidade de editor e contra a minha expressa vontade.
De 1973 até hoje, publiquei muito, mas não demasiado. Gosto de ruminar bem as coisas antes de as passar a texto comunicável. Tento que os meus textos sejam duas coisas: claros, isto é, mais vulneráveis ao ataque (e nisto reside a honra de qualquer hipótese digna desse nome), e atraentes, isto é, capazes de seduzir o leitor, ou pela sua energia, ou pela sua música, ou pelo inesperado da sua formulação.
E não gosto de atrelar os meus cavalos aos carros que, de momento, são os mais rentáveis ou os mais seguramente vitoriosos. Há nomes – todos nós sabemos isso – que, em cada momento, são aqueles que “devem” referir-se ou sobre quem se deve falar. Há um código tácito – não necessariamente escrito – que os bons entendedores rapidamente decifram, para seu governo. Eu também o decifro – mas gosto de não lhe obedecer. Estar com quem ganha é um bem pobre recurso.
Tem havido quem estranhe que eu, saído de Moçambique, tenha depois dedicado tão pouca da minha atenção às literaturas africanas de língua portuguesa. Como de costume, a estranheza é que é estranha. Nascido em Moçambique e aí tendo vivido um total de 38 anos, terei sido um dos primeiros – mas não seguramente o primeiro – a dedicar alguma atenção crítica e não pouco carinho a textos importantes de uma emergente literatura africana. Mas a minha cultura, como a de quase todos os europeus residentes em África, era uma cultura fundamentalmente portuguesa, europeia e universal no melhor sentido. Nunca me inculquei – porque nem era verdade, nem era a minha verdadeira vocação – como especialista de literatura moçambicana. Estudei-a, sim, e até muito antes de outros que depois se lhe dedicaram em exclusividade. Mas tive, desde muito novo, outras apetências, outros alimentos a que nunca soube, nem quis fugir. Se a África me está no sangue, no imaginário e no coração, a Europa e as Américas não o estão menos. Aluno de engenharia, em Lisboa, a partir de 1947, a minha curiosidade insaciável por nomes como Camões, Pessoa, Vieira, Sá-Carneiro, Eça, Garrett, Camilo, Régio, Gide, Proust, Montaigne, Montherlant, Thomas Mann, Racine, Stendhal, Balzac, Shakespeare, Dickens, George Eliot, Shelley, Wordsworth, Pessoa, Sá-Carneiro, Régio, Lorca, Unamuno, Ortega y Gasset, T.S. Eliot, Sherwood Anderson, Edgar Poe, Hemingway, Faulkner, Pirandello, D’Annunzio, Huxley, Bertrand Russell, Bernard Shaw, o inimitável Oscar Wilde, Tolstoi, Tcheckov, Dostoiewsky ou Fiodor Sologub, [a minha curiosidade por todos estes nomes] nunca cessou de me devorar e estimular no melhor sentido. Se estudei Craveirinha, Luis Bernardo Honwana, Rui Knopfli, Rui Nogar ou Glória de Sant’Ana, que em Moçambique viveram (e, alguns, nasceram, e outros, ainda, nasceram e morreram), se o fiz com um cuidado e uma imparcialidade crítica que nem sempre se tem votado às literaturas africanas, não me senti por isso obrigado a jugular aquelas outras apetências que eram, para mim, vitais. De nada disto me sinto com vontade de pedir desculpa ao povo de Moçambique. Porque o povo de Moçambique tem a grandeza de Moçambique e deve portanto saber alcançar o que está para além de Moçambique. O melhor do que é particular é também universal. Foi para mim um privilégio inconcebível, uma permanente fonte de assombro – e é o assombro que leva a todas as descobertas – ter nascido em Moçambique: aqui descobri os afectos, os saberes, o respeito sagrado pelas crianças e pelos velhos, o Oceano Índico, as praias como não há outras, o amor, a leitura, a ciência, o calor, os mais bonitos outonos e invernos do universo, mas aprendi também – e assim é a humanidade – que se é muitas vezes feliz e cumulado de riquezas no meio de outros que são menos felizes e bem menos municiados pelos alimentos terrestres. Aprendi que existe a injustiça que fere como um espinho que nunca se arranca. E aprendi que a nossa simpatia para com o sofrimento dos injustiçados nos pode marginalizar numa sociedade que se construiu sobre a injustiça e teme a justiça como o fim de privilégios que se habituara a ter como bens de direito divino. Aprendi a sofrer, também, aqui, em Moçambique. E aprendi a deixar de ser feliz daquela maneira inocente de ser feliz que me visitara a infância e a adolescência, mas que a idade adulta foi desassossegando como quem mina fundações que pareciam tão sólidas. Moçambique. Dei-lhe o que podia, sendo eu quem sou. Não lhe dei, talvez, tudo quanto devia. Repito: tenho raízes em mais do que um quintal. Sou rico – e vário. Ao fim de cinquenta anos de escrever e publicar, agora que se aproxima o fim da minha aventura, agradeço do coração a todos os que me enriqueceram com o seu convívio, com as luzes que em mim acenderam, com os acordes que me encantaram os ouvidos. Moçambicanos ou não, o meu temperamento não se dá nem com a rejeição, nem com a exclusão. Dizia Montaigne – e melhor conselheiro do que ele não há! – que a diversidade é a qualidade mais universal que há no mundo. Com ela me dei sempre bem, ao seu calor me aqueci, com o seu estímulo, caminhei. E, aqui, neste Moçambique que visito provavelmente pela última vez e onde descobri, com assombro inextinguível, o milagre de estar vivo e de estar vivo com outros um pouco diferentes de mim, aqui me despeço de vós, com quem aprendi, entre outras coisas, aquilo que há muitos séculos fora já descoberto por um escravo chamado Terêncio: que, sendo humano, a nada do que é humano sou alheio."
Eugénio Lisboa
Voltando à antologia, comecei por gaguejar com a honra que surpreendentemente me visitava e por dizer ao Régio que, sim senhor, me tocava muito o convite, mas que nunca publicara nada (embora rabiscasse un “diário” errático para a gaveta) e que, portanto, não fazia sentido aceitar a oferta. Mas o Régio sabia-a toda. E foi por ali fora, alegando isto e aquilo e ainda que, nas nossas alongadas conversas de café, eu mostrara um conhecimento, em profundidade, da obra dele, como nunca vira em ninguém, que, acrescentava ele, a escrever, é que se aprende a escrever, e que, em suma, ele não tinha qualquer dúvida quanto ao serviço asseado que sairia das minhas mãos. Mas eu iria, poucos meses depois, para África, atirei-lhe, a ver se o dissuadia... Que não fazia mal: acabava o trabalho antes de partir e ele, Régio, comprometia-se a rever, em Portugal, as provas, com todo o cuidado que punha nas suas próprias coisas. O livro – que sairia “jeitoso”, insinuava ele, a seduzir-me – lá me chegaria às mãos na África das minhas origens... Eu havia de lhe tomar o gosto e continuar. O que era preciso era começar. Por fim, sufocado, em pânico, como quem se atira – e sem coragem para continuar a recusar tão incomensurável oferta – disse-lhe que iria tentar, apesar de ter que fazer o livro ao mesmo tempo que os meus estágios de engenharia e relatórios correspondentes.
Parti para Lisboa em fim de Fevereiro de 1955, envaidecido e apavorado. Parecia-me cada vez mais uma enorme loucura ter-me rendido ao desafio do grande escritor. De qualquer modo, pus-me ao trabalho, aboletado, em república, na casa do Rui Serrão, colega e amigo de batalhão, que também se fizera amigo do Régio e do Dr. Falcão e deixara, por acaso, o coração em Portalegre, nas mãos gentis da “bela Helena”, com quem viria a casar. De dia, fazia os estágios e ia preparando os relatórios e, à noite, relia o Régio, tomava notas, escrevia períodos que me pareciam dignos de, mais tarde, se irem encaixar no mítico ensaio-a-haver. E tinha cada vez mais medo de não ser capaz de escrever coisa com coisa. Mas sempre ia descobrindo, na obra do autor de A Velha Casa, recantos que, até então, só mal entrevira: dava-me um estranho gozo interior sentir, às vezes, que acertara, que tocara em algo de profundamente revelador, mas sufocava-me a angústia de ainda não ver o texto em que tudo aquilo se iria inserir. Foi um trabalho longo, minucioso, lento, angustiado, que durou de Março a Maio: três meses suados e bem suados. Acabei, com uma alegria que não há palavras para contá-la, por descortinar o guião geral em que as minhas pérolas singulares se iriam incrustar. Aqueles átomos de descoberta não iriam ficar pendurados, sem se articularem num todo que fizesse sentido. Finalmente eu via o argumento. Mas havia em tudo aquilo um defeito contra o qual não me apetecia lutar: era o meu primeiro livro, mais, era o meu primeiro texto, e era-o sobre um escritor que eu conhecia bem e que me “agarrara” aos quinze ou dezasseis anos, com um livro que nunca mais saíra de mim: Uma Gota de Sangue, primeiro volante de uma vasta e ambiciosa soma romanesca, que viria a ficar incompleta. Como acontece com os primeiros livros, eu queria meter “tudo” logo no primeiro parágrafo: tal era o medo de que se “perdesse” se o não registasse logo ali... Um ou outro período corria assim o risco de sair, não propriamente “rico”, mas sim “atafulhado”...
Escrevia à mão, com letra bem desenhada e, no fim, copiei o texto num caderno de trinta e cinco linhas (salvo erro, não juro, branco), que enviei ao Régio, em Portalegre. Passara as duas últimas noites a escrever, sem dormir, à custa de anfetaminas, de que, depois, nunca mais abusei. E fiquei à espera.
Pelo meio, acabei os estágios, amanhei à pressa e sem grande convicção, os relatórios e recusei, com desenvoltura e alguma leviandade, um bom emprego que me fora lisonjeiramente oferecido, para Alverca: decidira mesmo regressar a África, à minha África, onde tinha espaço, recordações, família, o Nero já enterrado e, quem sabe, amores à espera. Estava farto de Lisboa, de Portugal, da Europa, da pequenez disto tudo. Ir-me-ia embora – o Régio não aprovava – no princípio de Agosto. Entretanto, no meio da agitação que precedia a partida, chegaria a reacção do poeta aos meus trabalhos de Hércules. E, com efeito, com data de 22 de Maio (três dias antes do meu aniversário) veio por fim a carta acusando a recepção do meu manuscrito. Abri-a a tremer. Entre outras coisas, dizia o seguinte, começando com as “cautelas” do protocolo: “Ao fazer um juízo sobre o seu trabalho, tenho de ser muito sóbrio: isto porque – numa certa medida – louvando-o, quase teria a impressão de me estar louvando a mim próprio(...) Só quis dizer que Você é muito amável com as minhas coisas. As restrições também lá estão, por certo, e ainda bem! Mas os meus inimigos dirão que certos aspectos apologéticos excedem em muito as observações restritivas, Mais uma vez passemos adiante. O que não pode ser louvar-me, - é reconhecer eu a penetração, a densidade, o encadeamento lógico, visíveis (e creio que, felizmente, não só a mim!) em todo o seu estudo, e que, aliás, eu já esperava de Você. A forma nem sempre é lapidar, e até possível é que Você não tenha propensão especial para o lapidarismo. Ainda se não vê bem, perante certos seus longos períodos, o que é devido a uma inexperiência natural num jovem escritor, ou o que deriva de uma personalidade. Mas o emprego do termo próprio, justo, já é notável na sua prosa; e devo confessar que, se já esperava de Você as qualidades de inteligência e sensibilidade patentes num estudo tão completo e aprofundado a dentro dos seus limites de extensão, não sabia, por ainda não ter lido nada seu, quais seriam as suas possibilidades de expressão verbal. Vejo que tais possibilidades de expressão já não desmerecem da coisa exprimível. Estou, portanto, e em suma, verdadeiramente satisfeito com o ter escolhido, se me permite falar assim. Quando o livro saia, e me pedir alguém de fora (como já tem sucedido) um estudo que dê uma ideia da minha obra – terei, finalmente, um pequeno volume em que já se diz muito sobre ela.” O elogio, vindo do cauteloso Régio, era de monta. Mas fui particularmente sensível ao facto de ele ter percebido o “encadeamento lógico” do meu texto: sofrera angústias, com o receio de não vir a dar uma articulação de enredo ao conjunto de observações que a obra regiana me suscitara. Temera, sobretudo, produzir um amontoado de “pérolas” sem fio de ligação – e, sem fio, como nota Ortega y Gasset, não há “colar”. A carta de Régio vinha sossegar-me. Quanto à falta provisória de “lapidarismo”, tinha razão. E também pressentira a causa: a inexperiência do principiante que visa meter “tudo quanto sabe” logo no primeiro parágrafo. Eu próprio estava consciente disso. E fiquei grato por mo não ter escondido.
Mas tenho que fazer aqui uma observação que nunca, em vida do poeta, quis fazer para o não ferir. É que parte da “inexperiência” de escrita por ele (e por outros) mencionada se ficou a dever a uma revisão de provas que não fora afinal tão cuidadosa como me prometera o autor de As Encruzilhadas de Deus. Alguma desatenção à pontuação, algum desaparecimento de pontos - e - vírgulas tornaram certos períodos cristalinamente claros em algo dificilmente compreensível... Não era, repito, apenas inexperiência: eram as tais gralhas de que o próprio poeta se queixava num lancinante poema das Encruzilhadas de Deus – e que me crucificaram a mim, logo no meu primeiro livro, o qual tanta simpatia votara às ditas “Encruzilhadas”!
O livro levaria dois longos anos a ser produzido, alegando o editor problemas financeiros – o que devia, em parte, ser verdade. Em África, primeiro em Lourenço Marques (um ano), depois na Beira (outro ano) fui esperando. Sem grande impaciência, diga-se. Outros problemas mais prementes (mais urgentes, mais “interessantes”) me ocupavam e desviavam do livro longínquo: profissionais, pessoais (amores contrariados), culturais, políticos, geográficos... Por fim, dois anos após ter entregue o manuscrito, chegou-me à Beira – onde a vida me era, simultaneamente, estimulante e frustrante – a encomenda com alguns exemplares do livrinho. Vinha bonito, elegante, escorreito, com uma bela fotografia do Régio na capa – ao lado desta, causando-me uma infindável estranheza, o “por Eugénio Lisboa”. Das 200 páginas do livro, 80 eram ocupadas pelo meu texto e notas. Dava para ficar de cauda perpendicular, como dizia o Eliot, falando de gatos. Mas não sofri, com esse primeiro livro, os tais pudores de me “ver exposto”, de que falava o Régio no posfácio aos Poemas de Deus e do Diabo. Não creio que o livro tenha chegado à livrarias da Beira e, em Portugal, se esteve nas montras de Lisboa ou do Porto, confesso que não sei – não estava lá para o verificar e nunca fui pessoa de perguntar essas coisas...Ego, sim, mas devagar. Mas sempre fui mostrando o voluminho aos amigos do Cine-Clube da Beira (o primeiro a aparecer em Moçambique), os quais, tudo gente de esquerda, tiveram a generosidade de produzir ruídos de apreço: que me tocaram fundo, sabendo eu as reservas que “aquela” esquerda sempre pôs à terrível independência do Régio. Enfim, tornara-me uma espécie de celebridadezinha local, quase exótica, quase repreensível, publicando ruminações sobre obsessões umbilicais de um rebelde de Vila do Conde... É preciso um pouco de tudo para fazer um mundo. O Joaquim Elias, o Noronha Marques, o Álvaro Simões, tudo bons amigos da Beira, lamentavam, por certo, a minha mania do Régio mas, como eram amigos, davam-me pancadinhas ternurentas, ainda que irónicas – e tingidas de alguma pena. É claro – e é humano – que, como todos os escritores, eu esperava a consagração absoluta. Vira no Régio – achava eu – coisas que mais ninguém vira, alinhavara, sobre elas, períodos que me pareciam perfurantes. Que podia, pois, esperar, senão uma estrondosa aclamação? Foi, neste ponto, que os deuses resolveram, como fazem muitas vezes, gozar comigo. O ataque, fulminante, impiedoso, sem atenuantes, partiu do próprio director da colecção em que o livrinho se inseria. Podia, desde logo, parecer estranho: o responsável oficial pela série, demolia, de alto a baixo, o texto que aceitara para a colecção que dirigia... E era, de facto, bizarro. Mas o Régio, fino psicólogo, logo lançou bálsamo na minha ferida: tudo fora desfavorável, explicou-me ele, ao orgulho de João Gaspar Simões: o poeta escolhido para segundo volume da série fora-lhe imposto pelo editor: Régio, com quem Simões estava de relações frias ou mesmo cortadas; o ensaísta escolhido para estudar Régio fora imposto ao director da série pelo próprio homenageado; e eu, pelo meu lado, recusara-me a atender ao pedido diplomático de Régio, no sentido de salpicar com alguns adjectivos mais lisonjeiros o percurso crítico de Simões, de quem falara, de passagem, como director da revista presença (ou, em alternativa, como parece que preferia Simões, não o mencionar pura e simplesmente, visto ser ele o director da colecção – o que também julguei inaceitável). O autor de O Mistério da Poesia, que por essa altura se via atacado de todos os quadrantes da rosa dos ventos da literatura nacional, encontrando-se portanto em carne viva, reagiu mal a esta falta de veneração de um jovem principiante de vinte e poucos anos. A sua recensão crítica foi, como disse, demolidora e aleijou-me por muito tempo: comparava-me com tudo quanto era gente grande, no ensaísmo literário lusíada, para não ver, em mim, nenhuma das componentes virtuosas que via neles. De principiante canhestro, para baixo, chamou-me tudo. Não foi, porém, só a humilhação sofrida às suas mãos que me chocou. Foi um pouco como se tivesse, por fim, perdido, de modo doloroso, a minha inocência, no reino turbulento dos costumes literários: ver um homem, apesar de tudo prestigiado, criticar ,e ainda por cima tão negativamente, um autor publicado numa colecção por ele dirigida ultrapassou tudo quanto pudesse ter imaginado. Na minha ingenuidade, eu teria suposto que um director de colecção deveria simplesmente abster-se de fazer crítica aos autores a cuja edição preside. Mas até o mais impensável acha sempre forma de acontecer debaixo do sol que a todos nos alumia e aquece...
Não foi, no entanto, Simões o único a ferir o meu incipiente orgulho literário – no Brasil, Casais Monteiro receberia uma carta acerba de Régio por ter feito uma leitura “displicente” do meu texto. Houve risco de zanga séria. Como nunca fui de assinar “recortes” de jornais, confesso que não tenho nenhuma ideia muito nítida de como reagiu a crítica lusíada, em geral. Mas tive duas grandes consolações, uma delas, inesperada e quase intrigante. A primeira veio do David Mourão-Ferreira que, no Diário Popular, se desunhou em elogios, num generoso esforço de leitura simpatizante (embora não deixasse, também, de fazer alguns reparos justos). A segunda – a tal inesperada – veio do Porto, da pena de António Ramos de Almeida, neorealista de fundamentação marxista e admirador cheio de reticências de Régio e da presença. Pois, mesmo assim, o António Ramos de Almeida viu, no meu textinho, maravilhas de penetração e de não sei que mais. Vou só citar, para vosso entretenimento e gozo, uma passagem da surpreendente recensão do neorealista Ramos de Almeida: “Eugénio Lisboa, um nome desconhecido, um jovem ignorado nas lides literárias, ganha neste «Ensaio [José Régio –Col. «Poetas de Ontem e de Hoje»]”, ainda inexperientemente escrito, foros a ser considerado e tratado como um dos temperamentos críticos mais desassombrados e penetrantes que ultimamente surgiram no tablado das nossas letras. (...) O «Exame Crítico» de Eugénio Lisboa recai exclusivamente sobre a obra poética de Régio, mas deixa-nos algumas penetrações subtis e ousadas sobre o mundo estético, ético e psicológico do Poeta (...) O subjectivismo, mais, o egocentrismo de Régio é sondado desta vez sem qualquer «parti-pris»...” Vindo de quem vinha – e o meu texto não deixava dúvidas quanto à fundamentação não-marxista que lhe presidia -, a accolade quase me consolou das diatribes simónicas. Mas, ao fim e ao cabo, Simões, mesmo acirrado por todos os quadrantes, continuava a ser o mais influente crítico literário português e exemplar único de crítico sistemático, isto é, semanalmente presente. E, com todos os seus erros e improvisações desastradas, tinha atrás de si uma obra que testemunhava de um quase infalível faro literário. Ora ele, no fundo, mandara-me mudar de vida. Pois é: mas o que é não menos verdade é que a vingança se serve fria. E foi assim mesmo – extremamente fria – que eu involuntariamente lha servi, três anos depois. De facto, em 1960, em edição belíssima da Imprensa Nacional de Moçambique, viram a luz os Poemas de Reinaldo Ferreira, malogrado grande poeta, falecido em Lourenço Marques com 37 anos. O livro foi organizado, a partir de um desorganizadíssimo espólio, por um grupo de amigos e admiradores, de que eu fazia parte. A introdução, não assinada, era de minha autoria e correspondia ao texto de uma pequena palestra que fizera, meses antes, na Câmara Municipal de Lourenço Marques. Enviado o livro para jornais e revistas de Moçambique e da metrópole (como então se dizia), João Gaspar Simões deu-lhe a sua atenção crítica no Jornal Português de Economia e Finanças, elogiando sem reservas, o anónimo prefaciador. Mas fez mais: tendo-se encontrado com Régio, com quem as suas relações estavam menos frias, desatou a exaltar entusiasticamente os talentos ensaísticos do anónimo prefaciador. Pérfido, o Régio, que sabia muito bem quem era o autor do prefácio, foi propondo dúvidas: então o João achava aquilo assim tão bom? Não estaria a exagerar? Simões, quanto mais se via “travado” pelo autor do “Cântico Negro”, mais se derramava em elogios: que penetração, que cultura, que qualidade de escrita! Que revelação! Até que o Régio lhe perguntou se ele tinha alguma ideia de quem era o autor do texto assim tão elogiado. Não, Simões não tinha ideia nenhuma. Então o autor de Jogo da Cabra Cega, especialista consumado em jogos da cabra cega, disse-lhe: “O autor é aquele rapaz que fez a minha antologia para o Tavares Martins e de quem tu disseste tanto mal...” Simões, obviamente, salvou a face: que não havia dúvida, o jovem melhorara muito, de então para cá! Esta história tenho-a, em primeira mão, porque me foi contada pelo próprio Régio. Mas não termina aqui. Havia nobreza em Simões. Anos depois, tendo eu ido a Portugal (residia ainda em Lourenço Marques), Luís Amaro, de quem me tornara amigo, combinou encontrar-se comigo no seu escritório da Portugália, em Lisboa, e disse-me que o Gaspar Simões mostrara interesse em me conhecer pessoalmente. Ainda de asa ferida – os aleijões literários não se curam facilmente com qualquer pomada - , disse ao Luís Amaro que não me apetecia muito ver o Simões. Porém, no dia aprazado, quando me encontrava a conversar com o Luís, aparece-me de supetão o biógrafo de Eça e Pessoa que, com grande alarde, me abraça e me cobre de simpatia. Ficou, a partir daí, meu amigo fiel. E teve a suprema delicadeza de nunca se referir ao passado. As quatro recensões críticas que depois fez a livros meus foram impecáveis de empatia, penetração e não pouca generosidade. Quando estava a viver em Londres e vinha a Lisboa, João Gaspar Simões fazia sempre questão de me convidar para almoçar. Parafraseando o Artur Portela Filho dos bons tempos, eu e o autor de Pântano por várias vezes desferimos o garfo no Grémio Literário. E tive ocasião de o levar a Londres e a Cambridge, para ali fazer conferências. Devo dizer que, nas viagens de automóvel que por ali fiz com ele e numa ida ao teatro onde o levei a ver uma peça de Tcheckov, Simões falava-me, é claro, de livros e de autores, mas os seus temas preferidos eram, claramente, carros e mulheres. Já rondando os oitenta anos, ainda sofria, proustianamente, de amores mal correspondidos. E, passeando-nos, repousadamente, nas ruas de Londres, passava a vida a inquirir sobre estações de correio onde deitar um postalinho para determinada senhora de sua especial atenção, naquele momento. Acabou por me confessar – como quem se desculpa da sua pouca assiduidade epistolar com os amigos – que escrever só gostava realmente de o fazer a senhoras que o interessavam: tirando isso, a epistolografia não o atraía. Que eu não levasse, pois, a mal escrever-me tão pouco. Mas ia-me enviando para Londres os seus livros e eu retribuía, mandando-lhe boas biografias inglesas, que ele adorava ler, e contos do Isaac Bashevis Singer, de quem se tornou verdadeiro fã. Conto tudo isto, só para dizer que, na história do meu primeiro livro, as relações com o autor de Elói começaram o pior possível e acabaram em tons cor de rosa. Quando faleceu, em 1987, estava eu ainda em Londres, senti que se fazia na crítica portuguesa um buraco e outro se fazia no universo das minhas amizades. Não que o seu ensaísmo ou o seu discurso crítico tivessem muito que ver com os meus ou com os de outros que sempre privilegiei. Nem só de intuição certeira (às vezes) vive o bom ensaísmo. A verdade é que prezei sempre uma aliança íntima e fecunda entre a inteligência, a sensibilidade e o gosto da clareza. Se Simões, com todas as qualidades que inegavelmente tinha, improvisava demasiado, para o meu gosto, também, por outro lado, muito discurso ensaístico prevalecente no mundo académico me deixava crispado, pela opacidade rebuscada, compacta e aparatosamente feia , que sempre me fazem recordar, com algum gozo, a chacota feita pelo historiador Paul Johnson às abstrusas circunvoluções do filósofo inglês, Sir Peter Strawson. Na sua crónica intitulada “Waiting for a few Delphic Utterances”, Johnson cita esta passagem particularmente opaca do filósofo: “Por fim, conquanto seja verdade que, sem um muito elevado grau de regularidade causal, sentiríamos a falta dos próprios conceitos daqueles objectos relativamente persistentes que sustêm a unidade espácio-temporal do mundo, [a verdade é que] o argumento a favor do reino universal da causalidade natural – do determinismo absoluto – permanece inconclusivo”. Todo este charabia estapafúrdio, nota Johnson, para dizer esta coisa luminosamente simples: “As leis da Física são úteis mas podem nem sempre funcionar”. Quanto discurso académico, quanta tese de doutoramento não abunda nesta teratologia estilística que propõe a treva como valor solidamente cambial! A obscuridade sempre me pareceu má conselheira e o seu cultivo sinal de má-fé.
Entre este meu primeiro livro, de 1957, e o segundo, de 1973, decorreram 16 anos. Como se vê, publicar, fazer sair mais um livro, ver-me exposto – não tem sido uma das minhas grandes vocações. Escrever, sim. Publicar, não, necessariamente. O preceito latino nulla dies sine linea esteve sempre comigo e nunca esqueci uma passagem de um livro de Jean Dutourd, segundo o qual, a mão que não escreve todos os dias endurece, tal como endurece a teta da vaca que não é ordenhada diariamente. Simplesmente, a necessidade de escrever não correspondia, em mim, à necessidade de publicar, sobretudo, em forma de livro. Seja como for, de Portalegre, de Vila do Conde, Régio – amigo fiel e implacável – espicaçava-me por carta. Eu sentia, com alguma razão, que, por um lado, tinha uma profissão técnica a desempenhar e, por outro, ou era o mesmo, uma família a sustentar. Mas que continuava, dentro das minhas possibilidades e com alguma obstinação, a trabalhar, publicando em jornais e revistas de Moçambique textos de que me não envergonhava. Sobre André Gide, sobre Montherlant, sobre Thomas Mann , sobre Bertrand Russell, sobre Shakespeare, sobre Álvaro Lins, sobre Régio, Fialho , Manuel Laranjeira, Jorge de Sena, Miguel Torga, Irene Lisboa, Fernando Namora, José Craveirinha, Maria Silva Pinto, Ascêncio de Freitas ou Gouvêa Lemos, produzi textos que continuo a prezar. Mas nada disto, até 1973 , se organizara em livro. Porque não me parecia nem urgente, nem importante publicar livros. Régio não se resignava e aconselhava-me a ser “mais profissional”. Tentou mesmo convencer-me a colaborar, com ele, no suplemento cultural de O Comércio do Porto, que tinha, por essa altura, grande prestígio. Aqui, em África, nesta Lourenço Marques em que nascera e estudara (e casara e tivera filhas), nesta África espaçosa, viver, conviver, trabalhar na Voz de Moçambique, no Cine-Clube e, durante algum tempo, no diário A Tribuna, depois devorado, como quase tudo, pelo Banco Nacional Ultramarino, atazanar os poderes vigentes – era-me mais importante do que publicar mais um livro. A boa escrita alimenta-se mais da intensidade da vida que nos devora do que de mais escrita ou de muita escrita. Eu ia “aparecendo”, como dizem os literatos, mas não sob o formato de livro. Em 1969, Régio falecia, com 68 anos, e fugia-me um amigo essencial e um vigilante de peso. E só então, ironicamente, começou, para mim, com mais alguma assiduidade, aquilo a que se costuma chamar, pomposamente, uma “carreira de escritor”. Com o desaparecimento do autor de Histórias de Mulheres, que tanto e tão em vão pugnara pelo meu “aparecimento” mais frequente, veio-me o convite da hoje desaparecida editora Arcádia, para a elaboração do livro José Régio – A obra e o Homem. Ungido de remorsos, por tão mal ter correspondido ao dedicado interesse e afecto do autor de A Velha Casa, aceitei, como quem se redime, o convite, gastei umas férias de verão africano fanaticamente fechado em casa, sem receber amigos nem adjacentes, passei a pente fino a obra vasta e densa do criador da Benilde, enchi de fichas e papéis o tabuleiro amplo da minha secretária feita de madeira “jambir” e, terminadas as férias, suando prodigiosamente sob o clima assassino, usei noites e fins de semana impiedosos, até produzir as quatrocentas e tal páginas do que, sem vergonha de qualquer espécie, considero o que de melhor e mais abrangente e mais cuidadoso se escreveu até hoje sobre o autor do Jogo da Cabra Cega. E foi, realmente, um começo. Entregue à bagunça que era a Arcádia, por essa altura, já em graves dificuldades financeiras, passar-se-iam anos até o livro ser finalmente publicado, quando o novo director, Jorge Martins, que me não conhecia, tomou em mãos a tarefa editorial, fez um novo contrato, para mim mais favorável, e tudo isso me caíu em cima, aqui em Lourenço Marques, num momento turbulento em que se ouvia tiroteio pelas ruas e tudo ameaçava fim, menos o meu livro que ia, enfim, começar. O livro saiu para as livrarias, em Portugal, no momento em que eu passava por Lisboa, a caminho de Estocolmo: Janeiro de 1977. Mais uma vez, a “glória” de me ver exposto – fugia-me: o livro ia ser “visto” nas montras e nos jornais, por outros, mas não por mim, encafuado como me encontrava naquela improvável paisagem nórdica em que a neve me trepava pelas pernas até à altura dos joelhos. Em jornais portugueses que encontrava em bibliotecas municipais de Estocolmo, fui vendo que o livro era acarinhado: desta vez, o João Gaspar Simões embandeirou em arco, o Pedro Támen, no Expresso, disse coisas assaz bonitas e, mais tarde, na Colóquio – Letras, o Pierre Hourcade coroou-me imperador. Os deuses, parecia, estavam fartos de gozar comigo. Depois, as encomendas nunca mais pararam de chegar: quase tudo quanto publiquei foi obra de encomenda. A própria poesia, que escrevia à sucapa, para ninguém ver, me foi pedida, para livro, por uma editora de emigrantes portugueses a residirem na Suíça. A minha esperança era que fosse tão mal distribuída, que ninguém desse por ela. Mas o júri do Prémio Cidade de Lisboa deu mesmo por ela e atribuiu-lhe o galardão: senti-me tão mal com ele, que ofereci o dinheiro ao estimável editor, João David Rosa, homem empreendedor e amigo da cultura, que viria a suicidar-se poucos anos depois. Fora ele quem enviara o livro para efeitos de prémio, na sua qualidade de editor e contra a minha expressa vontade.
De 1973 até hoje, publiquei muito, mas não demasiado. Gosto de ruminar bem as coisas antes de as passar a texto comunicável. Tento que os meus textos sejam duas coisas: claros, isto é, mais vulneráveis ao ataque (e nisto reside a honra de qualquer hipótese digna desse nome), e atraentes, isto é, capazes de seduzir o leitor, ou pela sua energia, ou pela sua música, ou pelo inesperado da sua formulação.
E não gosto de atrelar os meus cavalos aos carros que, de momento, são os mais rentáveis ou os mais seguramente vitoriosos. Há nomes – todos nós sabemos isso – que, em cada momento, são aqueles que “devem” referir-se ou sobre quem se deve falar. Há um código tácito – não necessariamente escrito – que os bons entendedores rapidamente decifram, para seu governo. Eu também o decifro – mas gosto de não lhe obedecer. Estar com quem ganha é um bem pobre recurso.
Tem havido quem estranhe que eu, saído de Moçambique, tenha depois dedicado tão pouca da minha atenção às literaturas africanas de língua portuguesa. Como de costume, a estranheza é que é estranha. Nascido em Moçambique e aí tendo vivido um total de 38 anos, terei sido um dos primeiros – mas não seguramente o primeiro – a dedicar alguma atenção crítica e não pouco carinho a textos importantes de uma emergente literatura africana. Mas a minha cultura, como a de quase todos os europeus residentes em África, era uma cultura fundamentalmente portuguesa, europeia e universal no melhor sentido. Nunca me inculquei – porque nem era verdade, nem era a minha verdadeira vocação – como especialista de literatura moçambicana. Estudei-a, sim, e até muito antes de outros que depois se lhe dedicaram em exclusividade. Mas tive, desde muito novo, outras apetências, outros alimentos a que nunca soube, nem quis fugir. Se a África me está no sangue, no imaginário e no coração, a Europa e as Américas não o estão menos. Aluno de engenharia, em Lisboa, a partir de 1947, a minha curiosidade insaciável por nomes como Camões, Pessoa, Vieira, Sá-Carneiro, Eça, Garrett, Camilo, Régio, Gide, Proust, Montaigne, Montherlant, Thomas Mann, Racine, Stendhal, Balzac, Shakespeare, Dickens, George Eliot, Shelley, Wordsworth, Pessoa, Sá-Carneiro, Régio, Lorca, Unamuno, Ortega y Gasset, T.S. Eliot, Sherwood Anderson, Edgar Poe, Hemingway, Faulkner, Pirandello, D’Annunzio, Huxley, Bertrand Russell, Bernard Shaw, o inimitável Oscar Wilde, Tolstoi, Tcheckov, Dostoiewsky ou Fiodor Sologub, [a minha curiosidade por todos estes nomes] nunca cessou de me devorar e estimular no melhor sentido. Se estudei Craveirinha, Luis Bernardo Honwana, Rui Knopfli, Rui Nogar ou Glória de Sant’Ana, que em Moçambique viveram (e, alguns, nasceram, e outros, ainda, nasceram e morreram), se o fiz com um cuidado e uma imparcialidade crítica que nem sempre se tem votado às literaturas africanas, não me senti por isso obrigado a jugular aquelas outras apetências que eram, para mim, vitais. De nada disto me sinto com vontade de pedir desculpa ao povo de Moçambique. Porque o povo de Moçambique tem a grandeza de Moçambique e deve portanto saber alcançar o que está para além de Moçambique. O melhor do que é particular é também universal. Foi para mim um privilégio inconcebível, uma permanente fonte de assombro – e é o assombro que leva a todas as descobertas – ter nascido em Moçambique: aqui descobri os afectos, os saberes, o respeito sagrado pelas crianças e pelos velhos, o Oceano Índico, as praias como não há outras, o amor, a leitura, a ciência, o calor, os mais bonitos outonos e invernos do universo, mas aprendi também – e assim é a humanidade – que se é muitas vezes feliz e cumulado de riquezas no meio de outros que são menos felizes e bem menos municiados pelos alimentos terrestres. Aprendi que existe a injustiça que fere como um espinho que nunca se arranca. E aprendi que a nossa simpatia para com o sofrimento dos injustiçados nos pode marginalizar numa sociedade que se construiu sobre a injustiça e teme a justiça como o fim de privilégios que se habituara a ter como bens de direito divino. Aprendi a sofrer, também, aqui, em Moçambique. E aprendi a deixar de ser feliz daquela maneira inocente de ser feliz que me visitara a infância e a adolescência, mas que a idade adulta foi desassossegando como quem mina fundações que pareciam tão sólidas. Moçambique. Dei-lhe o que podia, sendo eu quem sou. Não lhe dei, talvez, tudo quanto devia. Repito: tenho raízes em mais do que um quintal. Sou rico – e vário. Ao fim de cinquenta anos de escrever e publicar, agora que se aproxima o fim da minha aventura, agradeço do coração a todos os que me enriqueceram com o seu convívio, com as luzes que em mim acenderam, com os acordes que me encantaram os ouvidos. Moçambicanos ou não, o meu temperamento não se dá nem com a rejeição, nem com a exclusão. Dizia Montaigne – e melhor conselheiro do que ele não há! – que a diversidade é a qualidade mais universal que há no mundo. Com ela me dei sempre bem, ao seu calor me aqueci, com o seu estímulo, caminhei. E, aqui, neste Moçambique que visito provavelmente pela última vez e onde descobri, com assombro inextinguível, o milagre de estar vivo e de estar vivo com outros um pouco diferentes de mim, aqui me despeço de vós, com quem aprendi, entre outras coisas, aquilo que há muitos séculos fora já descoberto por um escravo chamado Terêncio: que, sendo humano, a nada do que é humano sou alheio."
Este texto foi lido na Escola Portuguesa de
Moçambique, em 7 de Junho de 2007
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