Essencial
também é parar para viver
por
Anselmo Borges
“Olhamos
e perguntamos: “Que anda esta gente toda a fazer?” A resposta é simples, sempre
a mesma: “A viver.” É isso: a viver.
O
problema é este: são tantas as vezes em que se não dá por isso: o milagre que é
viver! Assim, numa sociedade na qual o perigo maior é a alienação - viver no
fora de si -, quando a política se tornou um espectáculo tantas vezes
indecoroso, quando a mentira e a corrupção imperam, quando Deus foi substituído
pelo Dinheiro e o mundo se tornou globalmente perigoso, com a Terceira Guerra
Mundial em curso, embora ainda só “aos pedaços”, como diz Francisco, é
essencial parar, fazer uma pausa. Porquê e para quê? Como disse Juan Ramón
Jiménez: “Devagar, não tenhas pressa, porque aonde tens de ir é a ti mesmo".
E
lembrei-me do meu querido amigo jesuíta Juan Masiá, professor de Filosofia em
Tóquio, e de um dos seus livros, precisamente com o título: Vivir.
Espiritualidad en pequeñas dosis. “Deixo-me acariciar pela brisa, saboreio
a experiência de estar vivo, sentir palpitar a minha vida. E penso: viver, que
maravilha e que enigma! Paro em silêncio a saborear esta vivência. Estou vivo,
mas a minha vida supera-me: não é só minha, nem a controlo. Viver é ser
vivificado pela Vida que nos faz viver.” A Vida vive-te, vive na Vida!
E
aí estão as tarefas para a espiritualidade: dar-se conta do viver; agradecer
por a Vida nos fazer viver, nos vivificar: vivemos graças à Fonte da Vida;
darmos vida uns aos outros, na compaixão e na ajuda mútua para nos libertarmos.
“O que é o mar? O que permite o peixe nadar. O que é o ar? O que permite o
pássaro voar. O que é o Nada e o Vazio? A Vida que te faz viver. Vejo a ervita
entre as gretas do pavimento. Donde lhe virá a força para abrir passagem entre
o asfalto? Palpo aqui uma Presença latente. Não sei quem é. Mas brotam lágrimas
de agradecimento.” Então, morrer não é senão sair para dentro da Vida
verdadeira, definitiva e eterna: “Vida no seio da Vida da vida.”
No
meio do rebuliço estonteante, é decisiva a pausa e o silêncio. Chama-se cultura
da pausa à tradição oriental de dar importância aos silêncios numa conversa,
aos intervalos entre as palavras, aos vazios nas letras, aos espaços livres na
arquitectura, ao não dito na mensagem, à receptividade na contemplação. Parar
para ouvir o silêncio e contemplar: em vez de olhares para ti e olhar para mim,
deixemo-nos olhar ambos pela “Realidade-Assim-Sempre-Presente, cuja aura comum
nos envolve”.
Deixa
o eu superficial, transcende, descendo até ao eu profundo e ao
“Assim-Sempre-Presente”, que se manifesta. Sem pausas de silêncio, como
poderíamos ouvir uma mensagem ou uma sinfonia? Sem intervalos, margens e vazios
nas letras e entre as frases, como poderíamos ler e entender? E verdadeiramente
viver?
O
que é a liberdade? “Agir de acordo com o melhor de si mesmo.” Mas eu não sou eu
sozinho. Perguntou ao jesuíta o monge budista: “Em que é que a sua religião e a
nossa se parecem?” E respondeu: “Vós falais do amor de Deus e nós da compaixão
do Buda. Mas nem vós, nem nós praticamos. É nisso que mais nos parecemos.”
E
como se reza? “Crer, viver e conviver” era o lema de um encontro de meditação e
espiritualidade inter-religiosa, sendo um terço dos participantes budistas, a
maioria sem ligação religiosa, e uma minoria católicos. E ali se elaborou, com
todos de acordo, colocando em duas colunas o “Pai Nosso” cristão e uma
paráfrase do partilhar a espiritualidade inter-religiosa, a “Oração à Vida, a
partir da vida”: “Fonte da Vida, que estás na vida, que estás na minha vida,
que estás em toda a parte, vivificando tudo. Que nos demos conta de que o
Reinado da Vida vem e o construamos, vivificando-nos, dando vida uns aos outros
e em tudo dando um sim à Vida. Que recebamos força de viver, fortaleza de corpo
e espírito com pão de vida e esperança. Que nos capacitemos para conviver em
reconciliação, recebendo e dando perdão, e para conviver com as pessoas mais
desfavorecidas, com quem é diferente e com quem nos mostra inimizade. Que
sejamos libertos de todo o mal: do mal no nosso interior e do mal que vulnera
as relações humanas. Que dê fruto o trabalho pela libertação do mal social.”
Jesus ensinou: “Quando rezardes, dizei: Obrigado, Abbá, Pai e Mãe nossa. Dá-nos
o pão do futuro no presente. Reconcilia-nos e livra-nos do mal.”
E
também me lembrei da oração de Fernando Pessoa:
“Senhor,
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre
no Céu e na Terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para
trabalhar em teu nome.
Torna-me
puro como a água e alto como o Céu. Que não haja lama nas estradas dos meus
pensamentos, nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu
saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
Minha
vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha
alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me
grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a
Lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu
te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor,
protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.”
Ah! E não vou esquecer o Nobel da Literatura Juan Ramón Jiménez: “Devagar, não
tenhas pressa, porque aonde tens de ir é a ti mesmo.” E lá no fundo de ti é o
Mistério, o mistério da Vida.
Anselmo Borges, Padre e professor de Filosofia, em artigo publicado no DN de 20
de Janeiro de 2024
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