Há
anos em que não acontece nada, e há anos em que parece que não pode acontecer
mais nada!
por
José Couto Nogueira
“A
actualidade persegue-nos. Mesmo que não queiramos prestar atenção, as situações
entram-nos pela porta dentro e é impossível ignorá-las. Não são só os
acontecimentos em si, mas também aquilo que os acontecimentos sugerem que vai
acontecer a seguir. Um desatino.
Há
quem prefira preocupar-se ou entusiasmar-se com “fait divers”, o custo do
azeite ou o futebol, para evitar interiorizar o que se está a passar à nossa
frente ao vivo e a cores - felizmente, na televisão. para a maioria, por
enquanto. Cidades destruídas, crianças ensanguentadas, homens poderosos a quem
não demos nenhum mandato a extravasar os seus egos provocando desgraças
inauditas; 2023 foi um ano tão repulsivo que até parece que o período
imediatamente anterior da pandemia (2019-21) foi um passeio de barco à vela - solitário e
confinado, mas com vistas idílicas.
Estou
a mostrar-me assustador, exagerado? Digo-lhes já que sou uma pessoa optimista,
que ainda tem aquela ilusão utópica de que a humanidade tem futuro e se há-de
safar dos seus próprios disparates. As coisas que considero más - ou mesmo más
sob qualquer consideração - podem ser vistas como tropeços na caminhada da
espécie para um futuro misterioso mas não inevitavelmente catastrófico.
Além
disso, definir os eventos que marcaram o ano é sempre uma escolha parcial e
deixa de fora áreas que são importantes para uns e inexistentes para outros.
Posto
isto, e seguindo o maior número de fontes que me é possível - ainda são
bastantes - 2023 foi um ano que interrompeu muitas narrativas do correr dos
tempos. Pode ser ou, não ser, um “ano-charneira” entre uma ordem e outra, mas
foi sem dúvida um manancial de surpresas.
O
pano de fundo, impossível de ignorar, são as catástrofes naturais e as
alterações climáticas.
Em
Fevereiro, um dos maiores terramotos do século destruiu cidades inteiras no sul
da Turquia, matando 56 mil pessoas - e mais 6 mil na vizinha Síria. Em
Setembro, outro tremor de terra em Marrocos - o mais devastador na história da
cordilheira do Atlas - reduziu a nada uma quantidade ainda não definida de
vilas e aldeias e matou pelo menos três mil pessoas. O número exacto, muito
maior, nunca se saberá. A incerteza deve-se à resposta miserável das
autoridades marroquinas, que recusaram ajuda internacional e não agiram
atempadamente, nem sequer para fazer o balanço do desastre. Já no final do ano,
e ainda a decorrer, uma série de erupções vulcânicas excepcionais na Islândia
obrigou à evacuação de várias localidades. Como a Islândia é um país civilizado
e está habituada a grande actividade vulcânica, as evacuações preventivas
evitaram vítimas, mas ainda não se sabe o grau de destruição material.
As
alterações climáticas manifestaram-se em temperaturas nunca sentidas - no
Brasil, 44,8ºC perto de Belo Horizonte 42,5 no Rio de Janeiro e 37,8 em São
Paulo; no Mali a temperatura média chegou aos 28,83ºC. No mundo inteiro o calor
médio anual foi de 28,83ºCnão parece muito, mais há que notar que é
uma média, ou seja, inclui as quatro estações. Outubro como um todo foi 1,7°C
mais quente do que uma estimativa da média realizada para o período 1850-1900,
ou seja, o período de referência pré-industrial. O planeta ultrapassou os mais
de 1,5°C de elevação média da temperatura, um valor que só se esperava para 2050.
A
onda de calor provocou estiagem sem precedentes e uma série de incêndios nunca
vistos em Rodes e Corfu (Grécia) além de 18 milhões de hectares de floresta no
Canada, para só falar nos mais divulgados. O fumo vindo das florestas
canadianas chegou a Nova Iorque, a três mil quilómetros de distância! A subida
de temperatura nos oceanos provocou o degelo de grandes massas de gelo nas
calotas norte e e sul, o que por sua vez provocou uma subida da água dos
oceanos. A ilha da Palau, situada na Oceânia, com cerca de 450Km2, já começou a
fazer planos para evacuar os seus 21.000 habitantes. Os tufões (tornados), que
aumentam de intensidade com o calor da superfície da água do mar, também se
multiplicaram este ano. Nos Estados Unidos, o país tradicionalmente mais atingido,
contaram-se mais de 1.200.
Não
existem mais dúvidas na comunidade científica de que as subidas de temperatura
se devem à a acção humana - dai que 2023 seja o terceiro ano de um novo período
da Terra, chamado Antropoceno, nome que significa que, pela primeira vez na
História do mundo, há um novo período geológico provocado pela acção do Homem.
O
grande motor das alterações climáticas é o uso dos combustíveis fósseis - sobre
isso também já não há dúvidas na comunidade científica - mas 2023 assistiu à
maior palhaçada na pseudo-reacção a essas alterações - o COP28, a cimeira
internacional para lidar com um problema que ameaça a extinção da espécie. Como
já falei aqui noutra altura, decorreu num país produtor de petróleo, dirigida
pelo director da petrolífera nacional, e com a presença de mais lobistas
pró-pretróleo do que delegados nacionais. À última hora conseguiu-se uma
declaração dúbia em que se fala de “transição” da energia fóssil para outros
tipos não poluentes em 2050 - daqui a 27 anos. É a altura de lembrar que todos
os objectivos acordados nos COP anteriores não foram alcançados, e assim
caminhamos para o abismo com um sorriso hipócrita, incapazes de abdicar dos
confortos que os produtos pretolíferos nos proporcionam.
Então,
o ambiente é o cenário do espectáculo deste ano. É a altura de passar aos
protagonistas. Ao nível internacional, os mais salientes foram, sem dúvida,
Vladimir Putin, a sua nemésis Volodymyr Zelensky, o inevitável Donald Trump e o
“enfant terrible” Mohammed bin Salman Al Saud. Fora estes, a lista depende
muito dos interesses de quem a faça. Basta vasculhar a Internet para encontrar
listas para todos os gostos. Por exemplo, uma delas, do site Legit coloca Cristiano Ronaldo em primeiro lugar. A
revista Time, fez uma lista dos “100 mais influentes” do ano que inclui pessoas como o actor Michael B. Jordan,
o cantor Shervin Hajipour e dezenas de outros que, para a maior parte do mundo,
são desconhecidos. E houve figuras que encheram as manchetes durante parte do
ano, como o líder russo Yevgeny Prigozhin e depois desapareceram (no caso dele,
literalmente) e que para o ano já ninguém se vai lembrar.
Melhor
do que avaliar o ano pelos protagonistas, é lembrar os acontecimentos. Como
sempre, as guerras são os mais importantes; não há maneira de nos livrarmos
delas. Há sempre algumas a decorrer, todos os anos - aliás, todos os dias - mas
as duas que marcaram 2023, transitam para 2024 e nunca mais serão esquecidas,
são, obviamente, a da invasão da Ucrânia pela Federação Russa e a destruição da
faixa de Gaza por Israel. As duas produziram imagens que já não esperávamos ver
no mundo - não esperávamos pela ingenuidade de pensar que o Homem tinha
evoluído o suficiente para não destruir cidades à bomba, matar pessoas à fome e
outras barbaridades à escala industrial.
Nem
vou registar aqui os massacres que ocorreram um pouco por toda a parte durante
2023, do Darfur à China (os Uhigur), as guerras civis, os tiroteios que ocorrem
diariamente nos Estados Unidos, os genocídios em Mianmar e Ruanda - nada disto
será lembrado para o ano, quer continue, que acabe.
Atípica,
em 2023, é a coincidência de pelo menos duas guerras com repercussões
internacionais. Atípica é a crispação do radicalismo dentro dos países, quer
seja por causa dos imigrantes, decadência dos serviços públicos e divergências
políticas. Em 2023, todos os dias, quando ligávamos a televisão, acontecia
alguma coisa nova e esquisita, senão deprimente, senão terrível. Políticos que
venderam a cara para ficar no poder (como Pedro Sanchez em Espanha), dirigentes
incompetentes que não se sentiam obrigados a demitir-se (como Kevin McCarthy
nos Estados Unidos ou João Galamba em Portugal, para dar dois exemplos nas
antípodas)
Para
mim, 2023 foi o ano em que percebi que “isto” - o meu país, o mundo de todos
nós - não vai melhorar, só pode piorar. Já devia ter percebido há mais tempo,
os sinais estavam todos lá, mas, não sei porquê, aconteceu este ano. Situações
que não se podiam imaginar e, pior, não se vê como se poderão resolver. 2023
foi o ano em que o bom senso se extinguiu oficialmente.
Feliz
Ano Novo! “
José
Couto Nogueira, em Artigo
de Opinião , Sapo ( Madremedia), 23.12.2023
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