terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Painel do Infante D. Henrique de Nuno Gonçalves



Painel do Infante D. Henrique de Nuno Gonçalves
(Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa)
Análise de Rui-Mário Gonçalves

"Este painel faz parte de um políptico constituído por seis painéis que foram encontrados em 1882 no Mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa. O mestre que realizou tão prodigiosas pinturas deve ter sido Nuno Gonçalves (c. 1438-1481), pintor do rei D. Afonso V, entre 1450 e 1472. Foram concebidas, assim como mais algumas, para o retábulo da capela dedicada ao mártir S. Vicente, na Sé de Lisboa, cerca de 1470, e depois transferidas para o Mosteiro de S. Vicente de Fora, por ocasião da ocupação filipina (1580-1640). Dado o estado de abandono em que foram encontradas, tem sido difícil aos especialistas da arte quatrocentista concordarem quanto à sua seriação e até quanto à iconografia. O painel aqui reproduzido tem sido designado por “o painel do Infante D. Henrique”, pois aí aparece a figura do grande empreendedor das descobertas marítimas, tal como aparecera num livro de Gomes Eanes de Zurara “Crónica da Guiné”, com o seu chapéu de abas largas.
Considerando o conjunto das tábuas, verificamos que constituem uma inovadora conceção de retrato coletivo, apresentando seis dezenas de rostos de forte carácter, perfeitamente individualizados, cobrindo uma vasta gama da sociedade portuguesa, príncipes, guerreiros, pescadores, frades e letrados, em veneração do santo. O historiador francês René Huyghe afirmou que “na arte de Nuno Gonçalves e da sua escola, há, além do contributo do seu génio, a realização de uma nova etapa da alma ocidental que parte à conquista de si própria (…), pela primeira vez o homem moderno define-se antes de mais como indivíduo: o homem moderno nasceu (…)".
Pode portanto afirmar-se que, quando, no século quinze, a Europa erudita construía a sua mais peculiar metodologia da representação do mundo visível, os pintores portugueses davam uma contribuição fundamental, avançando na afirmação do valor da vontade humana. E esta é a mensagem que imediatamente se apreende nas tábuas de Nuno Gonçalves, onde se pode observar que assumiram a continuidade da aposta política de 1385, também esse considerado geralmente um acontecimento histórico de notável modernidade.
A nova metodologia pictural europeia não surgiu inopinadamente na sua totalidade. Foi sendo construída lentamente, etapa por etapa, de Giotto a Rafael, em Itália, e por outros, no centro e norte da Europa: a opacidade das figuras e sua sobreposição, a unidade de iluminação e a sugestão de relevos, a cor local e a diferenciação das texturas, a correção anatómica e as proporções naturais, o desenho minucioso e a perspetiva linear… Tudo isto existe já na pintura de Nuno Gonçalves, mas como montagem dos dados das etapas enunciadas e ainda não completamente como unidade “naturalista”. Assim, pode reparar-se que nos três planos em que aparecem os rostos não verificamos a diminuição dos tamanhos aparentes destes, tal como a perspetiva linear exigiria: são rostos sensivelmente do mesmo tamanho, os que estão “longe” e os que estão “perto”. Compare-se o rosto do Infante com os dos que lhe estão atrás. Há uma separação brusca entre o espaço vazio junto ao chão e o espaço todo cheio na parte superior, onde as personagens se conglomeraram. As roupagens do santo estão rebatidas para a frontalidade, destacando os padrões do tecido, em contraste com as volumetrias e relevos das roupagens dos outros. Em suma: como “montagem”, a pintura adquire a nitidez de uma escrita de imagens que não abdica de algumas características góticas para melhor clareza expositiva."
(Obras de referência da Cultura Portuguesa : projecto desenvolvido pelo Centro Nacional de Cultura, com o apoio do Ministério da Cultura)

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