Eugénio Lisboa , em Moçambique ,1957 |
As datas servem para isto mesmo: para se tornarem pretextos em que se pendure o nosso desejo de relembrar.
Eugénio Lisboa, "Ler Régio"
Eugénio Lisboa nasceu a 25 de Maio de 1930, em Lourenço Marques, Moçambique. Eis uma data em que um imenso desejo de relembrar é um pretexto inadiável. Eugénio Lisboa completa 93 anos.
Sem nunca ter interrompido uma longa e profícua produção literária, Eugénio Lisboa é o mais importante vulto da Cultura, na actualidade portuguesa. Tem sido uma voz firme, interventiva , sólida em aprofundado saber que tem permitido a várias gerações aceder ao conhecimento de movimentos, inúmeras obras literárias e de tantos outros autores através dos seus mais variados estudos e críticas literárias.
T.S. Eliot afirmou que : "Tal como Democracia , a palavra Cultura precisa não só de ser definida mas também ilustrada , cada vez que a empregamos". Ora, o autor da magnânima "Acta est Fabula" nunca cessou de ser ilustrado. Há depoimentos registados de muitos escritores, analistas sobre a sua obra , o seu profundo saber e singular erudição.
De entre tantos, consideramos extrair um exemplificativo texto , que faz parte , entre muitos, de uma homenagem que foi prestada a Eugénio Lisboa pela Universidade de Aveiro, onde foi Professor, no seu 80º aniversário, registada no livro Eugénio Lisboa, vário, intérprido e Fecundo - Uma Homenagem.
É ab imo core que nos juntamos a esse coro de grande apreço pelo Professor, pelo ensaísta, pelo crítico literário, pelo memorialista, pelo diarista, pelo poeta, pelo homem, pelo amigo para lhe apresentar os nossos mais reiterados votos de felicitações e a nossa profunda gratidão.
EUGÉNIO
LISBOA
- UMA VOZ PRESENTE
por Guilherme D’Oliveira Martins
“Eugénio
Lisboa é um
ensaísta singularíssimo. Ao longo da sua vida tem sido um incansável estudioso
do segundo modernismo português e da nossa cultura, com especial atenção para
José Régio. Contudo, é um escritor multifacetado, com luz própria, com uma
sensibilidade e uma argúcia dignas de referência especial. Com inteligência
fina, tem sabido aliar a grande erudição à capacidade de compreender a
realidade literária, cultural e social, distinguindo o que tem valor do que não
tem. Percebe-se bem que Eugénio Lisboa apreende, com grande lucidez, os valores
seguros, isto é, o que tem condições para ficar para além do sucesso efémero e
passageiro. Há dias, falando de lusofonia, perguntavam-me sobre as grandes
referências da literatura de Moçambique – e não tive dúvidas em referir, com
Craveirinha e Mia Couto, o magistério fundamental de Eugénio Lisboa e de Rui
Knopfli. E se me lembrei da relevância literária de ambos , nomes de primeira grandeza na idiossincrasia moçambicana , não me esqueci ainda da memória saudosa de ffernando Gil, filósofo relevante no panorama contemporâneo , nado e criado no cadinho moçambicano
- UMA VOZ PRESENTE
por Guilherme D’Oliveira Martins
UMA
VOZ INDEPENDENTE
Eugénio desde sempre afirmou-se como uma voz independente, não vulnerável a tendências ou modas. Sendo engenheiro de formação, soube ligar um sentido prático da vida à consideração da cultura como o modo mais sublime de dominar a natureza. Não há, pois, dois compartimentos na vida do intelectual – o engenheiro e o escritor completam-se naturalmente. Conheci-o em Londres e depressa percebi que nos iríamos dar muito bem, o que de facto tem acontecido. Temo-nos encontrado muitas vezes (desde a UNESCO às batalhas da cultura e da cidadania, passando pelos amigos comuns) e a empatia é natural, por convergência de valores e preocupações, de atitude e de obrigação crítica. Desconfio das torres de marfim, e Eugénio Lisboa também. As suas conferências, os seus ensaios, as suas críticas têm sempre algo de muito especial e próprio. Cada citação, cada referência corresponde à ênfase necessária e adequada de um sentido crítico. Nunca vi em Eugénio Lisboa uma concessão ao fácil, ao imediato ou à tendência do momento. E em momentos cruciais, usufruímos do seu acutilante sentido crítico, em termos que conduzem a que o tempo lhe dê razão, apesar das perplexidades imediatamente sentidas. No fundo, é um justo, que procura dizer o que pensa e o que sente, mesmo que não seja compreendido no curto prazo ou surpreenda pela rispidez da crítica. E o certo é que a sua fidelidade a José Régio e à “presença” tem correspondido a um equilíbrio sábio entre o reconhecimento da importância dessa plêiade e a capacidade para perceber quer fragilidades ou limitações quer a força inovadora e a perenidade desse grupo que tornou possível a projecção universal do “Orpheu” e de Fernando Pessoa. Hoje, é natural sentirmos que o primeiro modernismo português se afirmou por si, graças à genialidade do poeta dos heterónimos e à relevância dos seus companheiros, no entanto a qualidade dos animadores da “presença” permitiu a compreensão (e a projecção) da riqueza excepcional do grupo do “Orpheu”. Eugénio Lisboa entendeu-o bem – pondo a tónica na continuidade e na descontinuidade dos dois modernismos: continuidade no assumir da modernidade, descontinuidade na tensão entre os diferentes caminhos dos dois grupos. De facto, a vida é sempre feita do que flui e do que se interrompe , do que segue e do que se transforma. E manda a verdade que se diga que o primeiro modernismo , valendo por si, e pela força vulcânica ,ganhou novo impulso com o segundo movimento que teve Régio como epicentro.
UMA ATITUDE SERENA
A propósito da célebre consideração de Eduardo Lourenço sobre o alegado «contra-revolucionarismo» de Régio, Eugénio Lisboa usa com rigor a " broca de análise" e não se deixa arrastar por qualquer simplificação cutânea. E se fala de simplificação do ensaísta de “Labirinto da Saudade”, demarca-se de João Gaspar Simões numa certa obsessão de desagravo, já que para uma polémica ser interessante e rica é preciso que os argumentos sejam sólidos, em lugar de uma interpretação nominalista, mais baseada em supostas intenções do que na exigência crítica… Hoje sabemos que Eduardo Lourenço não quis dar um sentido político (em sentido lato) à sua apreciação, mas quis porventura salientar a diferença entre o carácter radicalmente inovador do “Orpheu” e um sentido de revisitação e de projecção da “presença”.
Eugénio desde sempre afirmou-se como uma voz independente, não vulnerável a tendências ou modas. Sendo engenheiro de formação, soube ligar um sentido prático da vida à consideração da cultura como o modo mais sublime de dominar a natureza. Não há, pois, dois compartimentos na vida do intelectual – o engenheiro e o escritor completam-se naturalmente. Conheci-o em Londres e depressa percebi que nos iríamos dar muito bem, o que de facto tem acontecido. Temo-nos encontrado muitas vezes (desde a UNESCO às batalhas da cultura e da cidadania, passando pelos amigos comuns) e a empatia é natural, por convergência de valores e preocupações, de atitude e de obrigação crítica. Desconfio das torres de marfim, e Eugénio Lisboa também. As suas conferências, os seus ensaios, as suas críticas têm sempre algo de muito especial e próprio. Cada citação, cada referência corresponde à ênfase necessária e adequada de um sentido crítico. Nunca vi em Eugénio Lisboa uma concessão ao fácil, ao imediato ou à tendência do momento. E em momentos cruciais, usufruímos do seu acutilante sentido crítico, em termos que conduzem a que o tempo lhe dê razão, apesar das perplexidades imediatamente sentidas. No fundo, é um justo, que procura dizer o que pensa e o que sente, mesmo que não seja compreendido no curto prazo ou surpreenda pela rispidez da crítica. E o certo é que a sua fidelidade a José Régio e à “presença” tem correspondido a um equilíbrio sábio entre o reconhecimento da importância dessa plêiade e a capacidade para perceber quer fragilidades ou limitações quer a força inovadora e a perenidade desse grupo que tornou possível a projecção universal do “Orpheu” e de Fernando Pessoa. Hoje, é natural sentirmos que o primeiro modernismo português se afirmou por si, graças à genialidade do poeta dos heterónimos e à relevância dos seus companheiros, no entanto a qualidade dos animadores da “presença” permitiu a compreensão (e a projecção) da riqueza excepcional do grupo do “Orpheu”. Eugénio Lisboa entendeu-o bem – pondo a tónica na continuidade e na descontinuidade dos dois modernismos: continuidade no assumir da modernidade, descontinuidade na tensão entre os diferentes caminhos dos dois grupos. De facto, a vida é sempre feita do que flui e do que se interrompe , do que segue e do que se transforma. E manda a verdade que se diga que o primeiro modernismo , valendo por si, e pela força vulcânica ,ganhou novo impulso com o segundo movimento que teve Régio como epicentro.
UMA ATITUDE SERENA
A propósito da célebre consideração de Eduardo Lourenço sobre o alegado «contra-revolucionarismo» de Régio, Eugénio Lisboa usa com rigor a " broca de análise" e não se deixa arrastar por qualquer simplificação cutânea. E se fala de simplificação do ensaísta de “Labirinto da Saudade”, demarca-se de João Gaspar Simões numa certa obsessão de desagravo, já que para uma polémica ser interessante e rica é preciso que os argumentos sejam sólidos, em lugar de uma interpretação nominalista, mais baseada em supostas intenções do que na exigência crítica… Hoje sabemos que Eduardo Lourenço não quis dar um sentido político (em sentido lato) à sua apreciação, mas quis porventura salientar a diferença entre o carácter radicalmente inovador do “Orpheu” e um sentido de revisitação e de projecção da “presença”.
A «contra-revolução» é nitidamente metafórica ou
literária, sem o alcance pejorativo que Gaspar Simões julgou. E Eugénio
Lisboa entendeu-o com clareza, defendendo, assim, muito mais eficazmente José
Régio. “Comparando o ‘Orpheu’ e a ‘presença’, (diz Eugénio Lisboa) poderíamos
resumir o confronto numa fórmula talvez sumária mas com algo de verdadeiro: o
primeiro modernismo foi um momento de convulsão e o segundo um momento de
reflexão e consolidação” («José Régio ou a Confissão Relutante», s.d., 1988). Depressa percebemos que é fundamental não misturar planos nem ferver em pouca água.
A convulsão e a consolidação são diferentes , disso não há dúvidas, mas uma e outra ligam-se e completam-se, mesmo que a distância seja grande. E se ligarmos o ‘Orpheu’ e a ‘presença’, temos de dizer , sem grandes hesitações , que as síntese são muito ricas.
ORIGINALIDADE E SINCERIDADE
Eugénio Lisboa procura ser fiel (com inteligência e sem cedências quanto à independência crítica) a uma preocupação de Régio, bem patente no citadíssimo artigo de fundo do primeiro número da “presença” (“Literatura Viva”) – “pretendo aludir (…) a dois vícios que inferiorizam grande parte da nossa literatura contemporânea, roubando-lhe esse carácter de invenção, criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade”. Enquanto a originalidade tem a ver com “dizer aquilo que nós realmente pensamos”, a sinceridade é um corolário dessa atitude fundamental, em nome da coerência entre pensamento e arte.
E manda a verdade que se diga que Eugénio
Lisboa é um mestre da clareza, ( valor fundamentalíssimo, num tempo em que tanta gente se esquece das ideias claras e distintas), que nos ensina e ler e a dizer o que se pensa do
que se leu, em vez de fazer exercícios de estilo («acrobacias neogongóricas ou
sistemáticos estupros») para dissimular ou esconder – porque se não leu,
ou porque não se compreendeu. E os dois vícios, contra os quais Eugénio Lisboa
se tem erguido, são muito mais comuns do que se possa julgar. Por isso, a
primeira lição do mestre, parte do que dizia Spitzer – a regra de ouro da
análise crítica é “ler, ler e ler” - «ler com atenção despreconcebida. Ler
aguardando, sem a malícia de um programa prévio» (in Pórtico de «As Vinte e
Cinco Notas do Texto», INCM, 1987).
E este entendimento é fundamental, uma vez
que através de Eugénio Lisboa sabemos com o que contamos. Sabemos que é um
leitor criterioso, que nos dá a sua perspectiva, exigindo que ao lermos sejamos
fiéis a um sentido crítico pessoal e próprio. Percebe-se, pois, porque insisto que
não há dois Eugénios, escritor e engenheiro, há uma personalidade coerente e rigorosa, em que o
engenheiro e o homem de cultura formam um só carácter.
E sobre essa coerência ( que tanto preza , e nós nele) oiçamo-lo ainda: “há hoje uma espécie de receio neurótico da clareza, que anda,
penso eu, a pedir diagnóstico. Dizia Vauvenargues que a clareza é a boa fé dos
filósofos, que é como quem diz: quem não deve não teme. Eu diria, com maior
atrevimento, que o desejo da clareza é a pedra de toque da boa fé de quem quer
que se exprima” (Idid.).
E António Sérgio vem à baila, com a conhecida afirmação
de pedagogo: “Não confundamos. Um eclipse do sol é uma escuridão; mas a teoria
dos eclipses é uma doutrina clara”… Se o poeta pode ser obscuro, o crítico tem
de ser claríssimo. E neste mês em que assinalamos os cem anos da morte de
Tolstoi, podemos citar o escritor russo: “Não alcançamos a liberdade, buscando
a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim, mas uma
consequência”. O ofício de ler é a grande exigência de Eugénio Lisboa, que o
tempo tem revelado como lição perene e necessária. Insistir em ler é, contudo, pedir o essencial, para que a rama não ocupe o âmago da vida. E que melhor ensino podemos
tirar de um mestre senão o culto das ideias claras e distintas? Muitos parabéns
Querido Amigo! "
Lisboa, Janeiro de 2010
Guilherme d'Oliveira Martins
Lisboa, Janeiro de 2010
Guilherme d'Oliveira Martins
Texto
publicado, em Eugénio Lisboa, vário, intérprido e Fecundo - Uma Homenagem, organização de Otília Martins
e Onésimo Teotónio Almeida, Editora Opera Omnia, Outubro de
2011, pp.151-155