Começar
por Eugénio Lisboa
O homem nasce criança,o seu poder é o poder do crescimento.Rabindranath Tagore
"Ponho-me a olhar para trás, para esses dias intensos de uma
Lourenço Marques hoje desaparecida e recordo momentos singulares. Na Rua Norte, no Alto-Mahé, na fronteira entre a cidade
do cimento e a cidade do caniço, lembro-me de instantes desgarrados: o dia em que, vestido com um fato de veludo (teria três, teria
cinco anos?), fomos à “baixa”, ao fotógrafo, para me fazer fotografar. Na Rua Norte, vivíamos (lembro-me!) numa casita manhosa,
só com rés-do-chão, mesmo ao lado da cantina do sr. Almeida.
Contornando esta, para a direita, subíamos, por terrenos de areia,
até à “Padaria Serrano” e à Estrada do Zixaxa, que nos levava ao
Xipamanini (o mercado africano). Era nessa área que viviam brancos
pouco abonados (pequenos operários, polícias, pequenos funcionários), mulatos e negros. Era um reino colorido, informal e apetecido.
Aí se compravam coisas saborosas como a tchintchiva, que se comia,
deixando-nos na boca um travo ácido e um pó fino e alaranjado.
Era um mundo pobre, mas cheio de vida. Vejo momentos
que nunca saíram da memória: a minha mãe, com a caderneta na
mão, a fazer compras na cantina do sr. Almeida, de onde se exalava um cheiro a vinho barato, a cebola, a café e a sacos de batata. Na “Padaria Serrano”, sentia-se o cheiro bom do pão a sair do forno
– o gozo intenso que isso me dava! –: poder comer aquele pão todo!
O apetite pantagruélico que aquele cheiro abria em mim e nos meus
irmãos! Outra imagem: a rua em tumulto, ao fim da tarde e, nos
lábios assombrados de cada um, a exclamação: “Morreu o Torre do
Vale!” Tratava-se de um lendário caçador de elefantes, que fora, por
fim, empalar-se nas presas de marfim de um elefante enfurecido.
Dizia-se que tinha ficado feito em papa... O Torre do Vale simbolizava, para todos, a força imbatível, a certeza, a argúcia, a imortalidade. E, afinal, jogara e perdera. A mortalidade dele tornava-se,
assustadoramente, a nossa. Afinal, éramos frágeis. Afinal, estávamos
só em trânsito! Se até o Torre do Vale... Julgo que foi o meu primeiro
confronto com a fragilidade da vida. Ao fim da tarde, regressado dos
correios, o meu pai regressava sempre. Mas, depois do fim do Torre
do Vale, aquele sempre soava a duvidoso. E se ao meu pai acontecesse alguma coisa? Se fosse atropelado? Se adoecesse subitamente?
Afinal estávamos num mundo tão imprevisível! A morte do Torre do
Vale aproximou-me, insuportavelmente, da possibilidade da minha.
Era só uma questão de tempo. Nesta altura da vida, eu não lia quase
nada, porque não dispunha de livros. Em casa, não havia, nem
telefonia nem telefone. As informações vinham de boca em boca,
quando vinham... Quando havia visitas, eu aproximava-me: queria
ouvir, queria saber coisas. Bebia as conversas, com sofreguidão, e
era assim que conseguia sair um pouco do universo da Rua Norte.
O mais longe que ia era a “casa das tias”, logo no começo (ou no
fim) da Pinheiro Chagas, ali a dois passos. Havia lá as avós (a avó
gorda, que era mesmo avó, e a avó magra, que era tia-avó). E havia
as tias, irmãs do meu pai, e o terrível tio Tropa, de bigodes em riste,
severo, não dando muita confiança a ninguém, muito menos a
putos. Stalinista e anticlerical assumido, perceberia eu mais tarde.
A casa era, para mim, enorme, quase proibitiva, porque tinha rés-do-chão e primeiro andar e, como disse, uma pesada e majestosa porta de madeira trabalhada, a barrar severamente a entrada a putos.
A avó gorda andava já a perder gás e lembro-me dela como de uma
figura de mater dolorosa, já muito pisada pela vida. A avó magra era
magra, de altura diminuta, eléctrica, sempre mal disposta e imensamente vituperativa. Revelar-se-me-ia, mais tarde, como solteirona
amarga e irresignada. Perdia a cabeça com os solteirões endurecidos
(mal empregados!) e fazia comentários brejeiros e maldosos, com
insinuações alusivas a órgãos subaproveitados. Nunca a vi que não
fosse a resmungar, movendo-se sempre a alta velocidade, levando a
sua ira a todos os recantos da enorme casa. Estava contra o mundo,
contra as pessoas e, suspeito hoje, contra si própria. Viver no deserto,
sem a mais pequena esperança de oásis, deve ser terrível.
Aos três, aos quatro anos, eu registava tudo isto, mas não percebia tudo isto. Só mais tarde o retrato se foi compondo e fui ligando
uma coisa a outra coisa.
O tio Tropa tinha horror aos padres (a “padralhada”), como
bom republicano da velha apanha, e as suas imprecações eram quase
sempre deste gosto: “Ah, Cristo negro!” Crispava-se todo, quando via
“aqueles homens de saias” e mobilizava, então, um glossário sonoro
(extremamente sonoro!) com tonalidades junqueirianas e altitudes
wagnerianas. Era um espantoso profissional, como marceneiro, um
verdadeiro artista, que poderia ter ganho fortunas, se a sua ética
lho permitisse. Trabalhou toda a vida, até morrer, já com os oitenta
feitos, mas era sempre chapa ganha, chapa gasta, sendo a chapa quase
sempre muito pequena. Lia, como era de regra, Zola, Victor Hugo,
Junqueiro e... o Deão da Cantuária (e Stefan Zweig). E venerava,
sem quaisquer reservas, “o homem dos bigodes” (Staline).
Da Rua Norte, como disse, lembro-me pouco, ou, por outra,
lembro-me com grande nitidez da rua mas não de coisas que lá aconteceram. Apenas de momentos isolados, mas, esses, com grande
clareza, como se fosse hoje. A seguir, mudámo-nos para ali perto, embora um pouco mais longe da “cidade dos brancos”: fomos
para uma casa de alvenaria, no Largo João Albasini. Esta humilde
moradia situava-se num nível muito inferior ao do Largo e ruas que
nele desembocavam, sendo o acesso a ela feito por meio de uma
rampa tosca. Do Largo, saía-se para a Estrada do Zixaxa (que levava
ao Xipamanini), para a Latino Coelho, para o Alto-Mahé... O proprietário da modesta moradia era um velho colono, antigo combatente, em Moçambique, na primeira Guerra Mundial (a Grande
Guerra): o Silva Maneta – dizia-se que perdera a mão, em combate,
daí a alcunha pouco generosa.
Tinha uns portentosos bigodes republicanos e pouco aparecia por ali. A casa tinha um só piso, mas ficava sobreelevada,
acedendo-se-lhe por uma íngreme escadaria. Possuía uma grande e
escura cave selvagem, onde crescia o capim e onde suspeitávamos
que houvesse cobras. E um pequeno quintal, escondido das vistas,
apropriado para as “brincadeiras proibidas” com as raparigas da
vizinhança. Quando perguntámos a uma delas – uma mulata lindíssima – quantas vezes poderíamos “brincar” com ela, respondeu,
ladinamente, que um número de vezes igual ao número de cruzes
que iria traçar na parede: e desatou a encher a parede altíssima
da casa e os compridíssimos muros em volta de cruzes a nunca
mais acabar... Ficámos em ânsias, com mais olhos que barriga!
Havia também uma vizinha loira, a Fantina, maria-rapaz fogosa e
sempre prestável: “Como é que queres fazer?”, perguntava, com ar
dadivoso, “Deitados ou de pé?” Estava sempre disponível, de puro
desejo de agradar.
Um momento muito vivo na minha memória: à noite, ao
jantar, uns amigos de meus pais, regressados de férias em Portugal, a
contarem-nos coisas pavorosas da guerra civil espanhola.
Eu andaria, por esta altura, na casa dos sete anos de idade ou
coisa por aí. Mas a descrição viva de casos acontecidos, de coisas impensáveis, para uma criança, perturbou-me, de modo intenso,
a imaginação. Começava-se a ver que o ofício de viver não era a
brincar. Pouco tempo depois, já mudados para a Estrada do Zixaxa
(cada vez mais longe da “cidade dos brancos”), vir-nos-ia bater à porta
um velho pianista espanhol – Pagès Rosès – fugido à guerra civil,
por ser republicano. Oferecia lições de solfejo em troca de dinheiro
ou de habitação. Dinheiro, meu pai não o tinha: ofereceu-lhe uma
garagem, onde se arrumavam malas velhas e alguns tarecos sem
valor. O pianista aceitou gulosamente e ali se acomodou. Dava lições
a domicílio, escarranchado numa bicicleta a cair de podre, ganhava
uns magros cobres com que confeccionava umas refeições sobre o
pobre e aceitava, sem orgulho, mas com dignidade espanhola, uma
ou outra oferta de refeição, que os meus pais, condoídos, lhe faziam.
Com a crueldade própria dos muito novos, gozávamos o pobre
pianista, que assumia, para o nosso gosto, um formato demasiado
ridículo. Quando, ao fim da tarde, vinha ensinar-nos o solfejo, escondíamo-nos dentro de casa e não respondíamos ao seu bater à porta.
Insistia, durante algum tempo, depois, desistia, resmungando um
“Bueno...”, meio amargo, meio áspero. E ia-se embora, tristemente
rejeitado. Há um momento pungente, que hoje me visita a memória
e me fere como um remorso: um dia, ao partir para a sua ronda de
lições, saiu da garagem, montou na velha bicicleta e, ao começar a
pedalar, a corrente, já podre, partiu-se: “Oiga, está podrida!” Eu e
meus irmãos desatámos a rir. O ser humano, ao contrário do que
pretendia Rousseau, não é naturalmente bom!
Algum tempo depois, soubemos que o velho Pagès fora viver em
Angola: o Estado Novo permitia a refugiados como ele a estadia, não
na metrópole, mas, sim, numa das colónias – e sempre por tempo
limitado em cada uma delas. Quem me dera ter podido reencontrar
o pianista, para lhe pedir perdão pela nossa cruel irreverência! Mesmo
assim, ainda pude dar-lhe uma alegria: um dia, vendo-me a ler uma
decrépita edição brasileira da História da Filosofia, de Will Durant, cobiçou-ma. Emprestei-lha e autorizei-o a sublinhá-la onde lhe apetecesse. Foi como se lhe tivesse dado o melhor presente do mundo:
sempre que nos víamos, desfazia-se em agradecimentos e lia-me
passagens, que, de alguma forma, o impressionavam e confortavam
dos desastres da vida. Foi, para mim, a primeira demonstração, ao
vivo, de como a filosofia pode servir para nos compensar dos males
do mundo! Pudesse ser esta a recordação que de mim levou aquele
pobre destroço de uma revolução! Já velho, como era, e sem grandes
condições de sobrevivência (má alimentação, higiene precária, habitação rudimentar em climas assassinos...), não é provável que tenha
vivido muito tempo. Mas tem vivido dentro de mim, com toda a
força de um remorso. Fora, parece – a julgar pelos programas de concertos seus, que nos mostrava – um pianista de alguma fama internacional, aclamado na Europa e nas Américas."
Eugénio Lisboa, in " Acta est Fabula. Memórias - I - Lourenço Marques ( 1930-1947)", Editora Opera Omnia, Novembro de 2012, pp.21-26
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