segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O cão

O cão 
por Teolinda Gersão
"A qualquer momento a mulher ou a sogra poderiam chamá-lo e ele não estaria lá para mudar uma mesa de lugar, abrir uma janela emperrada, soldar um cano roto ou pôr uma anilha numa torneira que pingava.
Àquela hora já costumava estar em casa, pensou apressando o passo, lembrando-se de que a cega podia querer sair e precisar que ele a ajudasse a atravessar a rua. No entanto, nunca lhe tinha ocorrido que esse pudesse ser um papel de cão. Nunca até àquele momento em que ele próprio atravessava a rua pelo meio da faixa, atento ao semáforo, uma tal ideia lhe atravessara o espírito. Mas agora que a pensara, a ideia perseguia-o, parecia caminhar a seu lado, colada aos seus passos como uma sombra.
Olhou com curiosidade os cães que passavam perto: de coleira ao pescoço, presos pela trela. Segura na mão de alguém. De cores e raças diferentes ― não sabia grande coisa sobre cães, sempre se interessara pouco pelo assunto. Até então. Pela primeira vez olhava atentamente os pequenos quadrúpedes que não o olhavam a ele; apenas pareciam apostados em seguir em determinado sentido, atentos à pressão da trela, que uma mão segurava com mais ou menos força.
Ali estava justamente um cego, ao lado do seu cão, ambos esperando a mudança de luz no semáforo em frente. Viu-lhe a cara, assomando debaixo do chapéu: os olhos vítreos, como água podre, a boca entreaberta num esgar, ao canto da boca um resto de saliva.
Atravessar a rua com os cegos, pensou outra vez, era um papel de cão. O que nunca lhe ocorrera, até àquele dia. No entanto, agora que pensava nisso, tudo parecia ficar claro. O cego era ele, como é que não dera conta? Era, ao mesmo tempo, cego e cão. De repente o mundo estava cheio de evidências. Nunca tinha pensado, por exemplo, que daquela vez que insultara o director do departamento esse facto se devera a uma enorme raiva acumulada. Nesse dia, via agora, portara-se como um cão. Só que raivoso. Uivara, ladrara, ganira, mordera. Ou pelo menos arreganhara os dentes, pronto a morder.
O que lhe custara a carreira, para o resto da vida. Nunca mais seria promovido, gritara a cega, torcendo as mãos. E ainda tivera sorte em não ser despedido, com um processo em cima. Não sabia falar, se tinha reclamações?
Não, não sabia, verificava agora. Desaprendera de falar, porque ninguém o escutava. Serviam-se dele apenas, como de um objecto útil, que se põe de parte depois de usado. Falava pouco e muito depressa, como se tivesse medo de que as pessoas se fossem embora. Vendo que bem, na maior parte das vezes iam-se de facto embora. Ele atirava duas ou três palavras para dentro das conversas, mas era sempre demasiado tarde. É verdade em que às vezes pareciam escutá-lo, mas de repente interrompiam-no com outro assunto, como se ele nunca tivesse começado a falar, ou como se nem sequer lá estivesse.
E quando foi transferido nenhum dos colegas pareceu importar-se, e ninguém lhe desejou boa sorte. Como se mudassem para outro escritório uma peça avulsa de mobília, que tanto fazia estar num lado como noutro.
Em casa também ninguém lhe perguntou se a mudança lhe agradava, se o novo lugar era pior ou melhor do que o primeiro. A sogra não fez perguntas, ficou como sempre vigiando e escutando, a cega só quis saber se ganhava mais. Quando soube que ganhava o mesmo ficou decepcionada e gritou que só a ele isso acontecia. O que aliás também ele pensava. De modo que não respondeu, e as coisas ficaram assim.
Continuou a receber as mesmas pequenas quantias, que a cega ia tirando do ordenado que ele recebia ao fim do mês e depositava inteiro nas mãos dela. Ou antes, nas mãos dela e nas da sogra, porque ambas contavam e recontavam, suspirando, para verificarem sempre que era pouco e nunca chegava, apesar dos esforços que faziam.
Talvez por isso nunca lhe davam nada no Natal. Embora ele gostasse de lhes dar presentes. À mulher sobretudo, coisas que ela cobiçava, perfumes, um lenço de pescoço, um par de sapatos caros. Porque a cega gostava de vestir-se e enfeitar-se, ainda que não pudesse ver-se ao espelho. Vestidos novos eram-lhe indispensáveis, mesmo só para ir à mercearia e ao café. Já que nascera cega e a vida fora tão cruel, algo de bom teria também de lhe caber em sorte.
Tens um bom marido, ouviu dizer a sogra. Faz o que pode, coitado.
Mas não sabe mexer-se neste mundo, disse a cega. Vissem o Chinchas, que começara do nada, encostado à parede das esquinas, e agora tinha apartamento, carro e empregados. Para já não falar dos anéis de brilhantes no dedo.
Pois, disse a sogra, mas falava-se de droga e de chulo.
Ora, tornou a cega, eram tudo más-línguas e invejas.
Lá isso, concordou a sogra, o que todos queriam era estar no lugar dele, que era o lugar dos que mandavam.
Há os que mandam e os paus-mandados, suspirou a cega, e a conversa continuou como se ele não estivesse a ouvir. Na verdade nenhuma se preocupara em verificar se ele as ouvia ou não. Estar ou não presente acabava por ser praticamente igual.
A cega falava agora das tristezas da vida: para além de ser invisual, moravam naquele bairro suburbano, onde só se alojava quem não tinha escolha.
De repente ele enfureceu-se com tanta ingratidão, mas não se atreveu a dizer nada. Só pensou. Era cega e ele não casara com ela, apesar disso? Não trouxera logo duas mulheres para casa, em vez de uma?
Sim, porque aceitara trazer também a sogra, quantos homens, no lugar dele, fariam isso?
Então e os lenços, os sapatos e os vestidos? E quantas meias tinha ele, e em que estado estavam os seus fatos e camisas? Disso ela não queria saber, nem perguntava. Até porque não via, desculpava-se. Mas ele também era gente, ora essa. Ou ela pensava que não? Pensava que ele lhe servia para descarregar a raiva de ser cega e pobre e de viver contra o mundo? Que culpa tinha ele das desgraças dela?
Passou a estar muito menos em casa, e a ir de vez em quando ao futebol e ao café. A seguir quis fazer um curso noturno de contabilidade, mas a cega opôs-se. Queixou-se de que ele a deixava sozinha e andava atrás de outras mulheres, que não eram cegas como ela. Recusou todas as refeições e adoeceu. A seguir foi a mãe que adoeceu. Não se levantaram durante quinze dias e ele tinha de vir a correr fazer o jantar e deixar-lhes comida para o dia seguinte, embora a cega tivesse praticamente deixado de comer.
Quando a viu mais calma e a vida se normalizou, começou a fazer um curso de contabilidade por correspondência. No fim do jantar abria os livros e os cadernos na mesa da cozinha e punha tampões nos ouvidos para não ouvir a televisão.
N o entanto a cega encontrava sempre pretextos para o interromper. Chamava-o para colocar um calce no pé da mesa, para descer melhor as persianas, que deixavam frinchas por onde entrava o frio, para lhe ler as legendas dos filmes estrangeiros. Ao fim de três semanas meteu no caixote do lixo os livros e os cadernos e foi beber um copo ao café da esquina, o que a partir daí se tornou um hábito, depois do jantar. Durante os dias em que a cega o consentiu. Porque logo pouco depois passou a enchê-lo de recriminações. Se queria ir ao café, também ela queria. Levasse-a consigo, que era a sua obrigação, não ia ficar em casa, que nem um trapo deitado fora, enquanto ele se divertia com outras. Passou a acompanhá-lo a toda a parte. Mesmo ao cinema, onde ele lhe ia contando o que se passava no ecrã, apesar dos protestos de quem ficava ao lado.
Por vezes ele fugia, ia sozinho ao cinema, marcava encontros com um ou outro amigo, e depois ouvia a cega acusá-lo uma semana inteira. Mas na verdade quase não tinha amigos, porque ela sempre lhe preenchera a vida toda. E porque quase deixara de falar, desaprendera também a conversa. Nem mesmo já rir sabia, verificou com espanto. Em vez do riso, fazia um pequeno som sibilante, como um latido.
Com o tempo desinteressara-se de tudo e deixara de saber o que se passava no mundo. Nem sabia o que ia pelo bairro, quanto mais no mundo.
Fizera-se um bicho de toca, sentado na poltrona, olhando a televisão sem ver nada. Nos intervalos em que a cega não o chamava, para tratar de qualquer coisa. E quando ela chamava, ele ia. Como um cão. Agora via tudo muito claro e sentia-se outra vez raivoso. Como daquela vez, no escritório.
Um cão não morde no dono. E muito menos o mata, pensou. Mas ele não era cão. Era essa a diferença.
Levantou-se e apagou a TV.
Vamos sair, disse com doçura. Põe um vestido bonito. E quando ela perguntou: Aonde? disse apenas: É surpresa. Com a voz alegre como há muito tempo não tinha.
Vem, disse-lhe, atravessando a rua quando a luz ficou vermelha.
Pegou-lhe no braço e abandonou-a de repente, no meio da faixa, quando o carro se aproximou tanto que não seria mais possível, para ela, saltar.
Foi só ele quem saltou, no último instante, e se estatelou, são e salvo, no passeio, caindo de borco, batendo com a cara, ouvindo os gritos, o ruído confuso de vozes, o chiar dos travões do carro que parou ― tarde demais."
Teolinda Gersão , in 'A mulher que prendeu a chuva e outras histórias', Sudoeste Editora, Ld ,1.ª edição, Março de 2007

domingo, 29 de novembro de 2020

Ao Domingo Há Música

Something always brings me back to you.
It never takes too long.
No matter what I say or do 
I'll still feel you here 'til the moment I'm gone. 

 You hold me without touch.
 You keep me without chains.
 I never wanted anything so much 
Than to drown in your love and not feel your rain. 

 Set me free, 
Leave me be. 
I don't wanna fall another moment into your gravity
Here I am and I stand so tall, just the way
I'm supposed to be.
But you're on to me and all over me.

E porque é domingo neste Portugal confinado, as vozes tentam trazer os afectos que existem e não se podem efectivar. Lançam-se, em jeito de desafio, a uma peste que permanece e retém o convívio e a partilha. 
Sara Bareilles, em   Gravity (Live).
Licenciado ao YouTube  porSME  (em nome de Epic);  Adorando Brazil,  LatinAutor, SOLAR Music Rights Management,  LatinAutor - PeerMusic,  Sony  ATV  Publishing, União brasileira de  Editoras  de  Música  -  UBEM, CMRRA,  Warner  Chappell e  16  sociedades  de direitos musicais.
Michael Bublé & Chris Botti , em "A Song For You " .

sábado, 28 de novembro de 2020

Tudo era possível


E TUDO ERA POSSÍVEL

Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer 
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
Ruy Belo, in Homem de Palavra[s], Lisboa, Editorial Presença, 1999 

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Que falta me faz, Mãe

                                               Amamos as nossas mães quase sem o saber e só nos damos conta 
                                                          da profundidade das raízes desse amor no momento da derradeira separação. 
                                                                                                                                       Guy Maupassant

                                                           A suprema felicidade da vida é a convicção de ser amado por aquilo 
                                                           que você é, ou melhor, apesar daquilo que você é. 
                                                                                                             Victor Hugo

Sempre que chega este dia, o dia do seu aniversário, recordo como todos nós gostávamos de a surpreender. Tínhamos aprendido com a Mãe. Cada um de nós, acrescentado pelos seus netos, intentáramos numa oferta que a fizesse sorrir. Não era preciso muito. A Mãe sorria-nos sempre. O seu sorriso era  maravilhoso. E contentava-se apenas com uma frase carinhosa num simples cartão. Quantos cartões fiz eu,  no meu tempo de criança e menina. Colocava-os na sala para serem  encontrados logo pela manhã. E quando estava no colégio, eles vinham pelo correio. Diziam-me  as suas amigas mais chegadas que a Mãe se  comovia muito e chorava. Em si,  a comoção tinha estes dois lados: olhos cheios de lágrimas e um sorriso abundante de ternura. E, Mãe, tenho tanta saudade de a ver comovida. Tenho tanta saudade de si: de a chamar, de a ouvir, de a esperar, de a visitar, de a ter aqui  connosco. Que falta me faz , Mãe. Nem sei , quantas vezes me ouço a chamar por si. A contar-lhe dos sucessos e insucessos dos filhos. E dos netos, Mãe? Já são cinco. A última tem cinco meses. É uma menina . Claro que é linda! De todos lhe falo em surdina. Não sei se me escuta , mas sei que não a esqueço. E dos livros que leio, sei que posso comentá-los consigo. Ensinou-me a gostar de ler. Aliás, todos nós nascemos no reinado dos livros. A Mãe fez-nos crescer lendo-nos. E abriu-nos à descoberta. O mundo vinha nas páginas que se folheavam. A televisão e os telemóveis não faziam parte desse mundo. Quando a televisão chegou , a leitura já não era uma experíência, era uma necessidade. 
E do cinema, quantos filmes vimos juntas. A Mãe partilhava connosco essa paixão. Era um dia luminoso ir consigo à matinée ao Tivoli, ao S. Jorge, ao Condes ou ao Monumental. Começámos crianças nessa aventura . E como perdê-la em adulta? Impossível . O cinema continua a ser uma constante presença  tal como a Música. Não sei como esquecer os sons que enchiam a nossa casa e como nos explicava a respectiva autoria. Era eclética. Havia de tudo: música clássica, música popular , Jazz  , Flamenco . Havia, isso sim Mãe,  alegria e felicidade . Havia vida, Mãe, porque  a vida  era isso. A Mãe ensinava-nos a viver. E consigo tudo era possível. Não havia nuvem que não se desvanecesse. Não era alisar o caminho . Não era fingir um país de maravilhas. Sabíamos de assuntos apenas murmurados. Esses descobrimos mais tarde. Mas ao mostrar-nos o caminho, a Mãe mostrou-nos de que força e de que  sonho éramos feitos. Tudo se nos mostrou possível . A Mãe sabia-o. 
Obrigada , Mãe.
Que falta me faz, Mãe.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Que se passa connosco?


Que se passa connosco? 
Lê-se pouco, muito pouco, aqueles dos autores que nos ensinaram a entender o mundo 
por Baptista-Bastos 
“Deixou de se ler os grandes autores. Há uma confusão latente nas escolhas e nas preferências. No entanto, houve tempo, em Portugal, que a leitura era uma coadjuvante que parecia colmatar as nossas pequenas angústias. Pertenço a esse tempo malfadado. E tudo indica que o revolutear dos anos não conseguiu alterar a urgência que há em ler, em discutir com os amigos o conteúdo das coisas.
O Presidente Marcelo insistiu, há dias, na ausência de interesse pela leitura, e na necessidade de se inverter essa tendência. Lê-se pouco, muito pouco, aqueles dos autores que nos ensinaram a entender o mundo e os homens. E há, em demasia, programas sobre futebol, que constituem enxúndias de destroços morais e mentais.
Os mecanismos do poder moderno e da arte de governar dissolvem as questões essenciais, centradas nos aspectos mais supérfluos do nosso viver. Sei muito bem que o desvio dessas imposições conduz a resultados imprevisíveis.
O meu saudoso amigo Carlos Pinhão contou-me que tentou fazer, n’A Bola, uma inversão de valores. Estávamos, ainda, no rescaldo do 25 de Abril, e as coisas pareciam ter justificação. A intenção daquele querido companheiro gorou-se. E as tiragens do jornal caíram, de tal forma que tiveram de voltar ao costume.
Claro que o assunto escapa a toda a consideração formal do fenómeno político, mas não pode fugir a uma análise, mesmo superficial, dos modos de exercício do poder moderno e das debilidades da crítica de costumes. Para aonde vamos? “
Estive doente durante quinze dias e apercebi-me do vazio inextrincavelmente ligado à ausência de conflito de que as televisões são espelho e regra. O futebol é tido e havido como a custódia das nossas urgências. E, com um mínimo de atenção, verificamos que o futebol tomou conta das nossas vidas, criando uma tensão peculiar que faz com que os seus mais fanáticos utentes e consumidores se ausentem dos aspectos mais prementes e complexos da suas vidas."
Baptista-Bastos, em Crónica publicada no CM de 19 de Outubro de 2016

terça-feira, 24 de novembro de 2020

O MAR

Atlântico
Mar, 
Metade da minha alma é feita de maresia.
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2014)

Meio-dia
Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo
Parece bater palmas.
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2014)
O que é o Mar?
“Mãe, o que é que é o mar, Mãe?” Mar era longe, muito longe dali, espécie duma lagoa enorme, um mundo d´água sem fim, Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. 
“Pois, Mãe, então mar é o que a gente tem saudade?”
Guimarães Rosa (1908-1967)

À beira-Mar
"Tenho a impressão de ter sido uma criança brincando à beira-mar, divertindo-me em descobrir uma pedrinha mais lisa ou uma concha mais bonita que as outras, enquanto o imenso oceano da verdade continua misterioso diante de meus olhos."
Isaac Newton (1643-1727)
Canção
– Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

– Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

– O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

– Chorarei quanto for preciso, /
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

– Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
Cecília Meireles (1901-1964)
Sobre o Mar
"O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar."
Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987) 

A água do Mar
A riqueza influencia-nos como a água do mar. Quanto mais bebemos, mais sede temos.
Arthur Schopenhauer (1788 – 1860)
O Mar
Conheço teu agitado marulho
tua voz de barítono
conheço tua zangada pronúncia
tuas lanças arrojadas pelos braços da tormenta
conheço tua suave dança
na onda calma e inumerável
na crista transformada em súbita canção de espumas
conheço-te na beleza da baía amanhecida
na hora melancólica do crepúsculo
e no teu dorso enluarado.

Me deste a paisagem das águas litorâneas
e a espuma se estendendo sobre a areia
me mostraste a nudez e o encanto das praias solitárias
a preamar e a vazante
e o teu perfil de mastros e gaivotas
me deste a magia do horizonte
uma vela solta ao vento
e um barco de papel para os meus sonhos
mas nunca me mostraste
a extensão azul dos teus domínios
e nem um indício sequer dos teus enigmas.

Marinheiro sem mar e sem destino
nunca pude navegar tuas distâncias.
Deste banquete
me deste apenas o paladar salgado dos meus versos
minha sílaba de sal
e a tua própria essência salpicada entre meus dedos
molécula elementar

unânime cristal
para que na minha dieta imprescindível
eu possa provar teu sabor todos os dias.
               Curitiba, abril de 2004
Manoel de Andrade, in "Cantares"

Era o Mar
O vento enchia o Mundo. Mal deixava
lugar para a tremenda voz das ondas.
Mas era o Mar apenas que se ouvia.
Sebastião da Gama (1924-1952)
O pôr do Sol à beira-mar
"Se eu fosse pintor , passava a minha vida a pintar o pôr do Sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos , quando as nuvens tomam todo o horizonte com um ar de ameaça, e outros doirados e verdes(…).Tardes violetas , neste ar tão carregado de salitre que torna a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados…
Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do norte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas – e não quer morrer…
Há na areia uns charcos onde se reflecte o universo –o céu , a luz, o poente. Não bolem e a luz demora-se aí até ao anoitecer. E como o poente é oiro fundido sobre o mar inteiramente verde , que a noite vai empolgar não tarda , os charcos, entre a areia húmida e escura , teimam em guardar a luz concentrada e esquecida.
Em todo o dia , o mar não se viu nitidamente. Névoa esbranquiçada, grandes rolos de poeira e sol misturados , água de que se exala um hálito verde envolvido nas ondas. Por fim, o Sol desceu e um nevoeiro imprevisto entranhou poalha de oiro no mar esverdeado, fantasmagoria e sonho nesta frescura extraordinária.”
Raul Brandão ( 1867-1930)

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A Cegueira


[Entre Junho e Agosto de 1977, Borges proferiu uma série de sete conferências no Teatro Coliseo de Buenos Aires, e dedicou a sétima delas à cegueira. As conferências foram editadas no livro Siete Noches.]


A CEGUEIRA
por Jorge Luis Borges
“Poetas, como os cegos,
podem ver no escuro”
Jorge Luis Borges

"Em 1955, tive a honra de ser nomeado director da Biblioteca Nacional Argentina. Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca. (Outros pensam nele como um jardim ou, talvez, um palácio.) Lá estava eu, no meio de 900.000 livros em vários idiomas. No entanto, quase não conseguia ler-lhes os títulos, as lombadas. Poder-se-ia dizer que, praticamente, para meus olhos cegos, aqueles livros estavam em branco, vazios.
Continuo cego de um olho, mas tenho visão parcial no outro, e consigo distinguir algumas cores. As pessoas pensam que os cegos vivem em total escuridão, mas o seu mundo não é a noite que as pessoas imaginam. Vivemos num ambiente impreciso, no qual poucas cores aparecem. O branco desapareceu ou se transformou em cinzento. No meu caso, ainda existem o amarelo, o azul e o verde. Eu, que tinha o hábito de dormir em completa escuridão, fiquei durante longo tempo perturbado por ter de fazê-lo neste mundo tenebroso, esverdeado ou azulado, o vagamente luminoso nevoeiro no qual os cegos vivem mergulhados.
Assim, uma das cores que os cegos lamentam já não poderem ver é o negro; o mesmo acontece com o vermelho. Tenho a esperança de que um dia, com os tratamentos, eu possa enxergá-lo. Essa magnífica cor brilha na poesia e tem nomes lindos em tantos idiomas: SCHARLACH em alemão, SCARLET em inglês, ESCARLATA em espanhol, ÉCARLATE em francês.
Como havia perdido o amado mundo das aparências, resolvi inventar outra coisa; eu criaria o futuro, aquele que vem depois do mundo visível que desaparecera para mim. Era professor de literatura inglesa na Universidade Argentina. Que poderia fazer para ensinar essa disciplina, que ultrapassa os limites da vida do homem e das gerações?
"Tive uma ideia", disse então a uns alunos que haviam acabado de se bacharelar. "Agora que vocês estão formados, não seria interessante estudar a língua e a literatura inglesas livres da frivolidade dos exames? Vamos começar pelo princípio."
Numa manhã de sábado, reunimo-nos no meu escritório e começámos a ler THE ANGLO-SAXON READER e THE ANGLO-SAXON CHRONICLE. Cada palavra se destacava como se estivesse gravada, como se fosse um talismã. É devido a isso que os versos em língua estrangeira nos parecem em relevo, de um modo que não acontece na própria língua, pois ouvimos e vemos cada palavra, pensamos na sua beleza, força ou simplesmente estranheza.
Quase nos embriagamos com o som de duas palavras: o nome de Londres, LUNDENBURH, LONDRESBURGO, e o de Roma, ROMEBURH, ROMABURGO. Essa sensação ainda se tornou mais intensa quando nos demos conta de que a luz de Roma havia atingido aquelas ilhas boreais perdidas. Penso que fomos para a rua gritando LUNDENBURH, ROMEBURH.
Eu havia substituído o mundo visível pelo audível da linguagem anglo-saxónica. Daí passei para outro ainda, mais rico e mais antigo, o da literatura escandinava; passei para as EDDAS e as sagas. Mais tarde escrevi um ENSAIO SOBRE A ANTIGA LITERATURA GERMÂNICA. Criei muitos poemas baseados nos temas dessa literatura, mas sobretudo o que me encantava era ela própria.
Não permiti que a cegueira me derrotasse. Além disso, meu editor trouxe-me excelentes notícias: se eu lhe entregasse 30 poemas por ano, ele os publicaria em forma de livro. Trinta poemas. Para isso era preciso disciplina, especialmente quando é necessário ditar cada linha. Ao mesmo tempo, porém, eu tinha suficiente liberdade, porque num ano surgem 30 oportunidades para escrever um poema. A cegueira não foi para mim uma desgraça total. Deveria ser considerada como um modo de viver, nem por isso completamente infeliz; um estilo de vida como qualquer outro.
Ser cego tem as suas vantagens. Pessoalmente, devo certas dádivas às sombras: o anglo-saxão e os rudimentos do islandês. Existe também a alegria de muitos poemas, além de ter escrito livros, inclusive um chamado, não sem alguma duplicidade, como se de um desafio se tratasse, O Elogio da Sombra . Os cegos também se sentem cercados de carinho. Todo o mundo tem afecto pelos cegos.
O poeta espanhol frei Luis de León escreveu: 

Quero viver comigo,
Gozar o bem que devo aos céus,
Sozinho, sem testemunhas,
Livre do amor, do ciúme,
Do ódio, da esperança, dos cuidados.

Se concordarmos que entre as benesses que nos são enviadas pelos céus está a escuridão, quem poderá viver melhor consigo próprio, quem será capaz de se conhecer melhor, como disse Sócrates, do que um cego?
Gostaria de evocar aqui outros casos ilustres. Não sabemos se Homero existiu mesmo; talvez não houvesse um só Homero mas muitos gregos escondidos sob esse nome. Eles, porém, gostavam de imaginar que o poeta era cego, para realçar o facto de que a poesia é antes de tudo música, e a faculdade visual poder ou não estar presente num poeta.
A cegueira de John Milton foi propositada. Ele estragou sua visão escrevendo panfletos em defesa da execução do rei pelo parlamento. Costumava dizer que havia perdido a vista em defesa da liberdade. Ele falava dessa nobre tarefa e não se queixava por ser cego. Compunha versos e a sua memória melhorou. Após cegar, Milton passava muito tempo sozinho. Escreveu um longo poema, Paraíso  Perdido,  sobre o tema de Adão, pai de todos nós. Embora cego, Milton conseguia manter na cabeça 40 ou 50 hendecassílabos, que depois ditava às pessoas que vinham visitá-lo. Foi assim que escreveu Paraíso Perdido.
Vamos lembrar outro exemplo, o de    James Joyce. A quase infinita língua inglesa, que tantas possibilidades oferece ao escritor, não lhe era suficiente. O irlandês Joyce lembrou-se de que Dublin havia sido fundada por vikings dinamarqueses. Assimilou o norueguês, depois estudou grego e latim. Aprendeu muitos idiomas, e acabou escrevendo num idioma que ele próprio inventou, difícil de entender, mas que possui uma estranha musicalidade. E declarou corajosamente: "De todas as coisas que me aconteceram, a menos importante foi a cegueira." Parte da vasta obra que deixou foi escrita na escuridão, trabalhando as frases de memória, às vezes passando um dia inteiro preocupado com uma única frase.
Um escritor, um artista ou qualquer pessoa deveria ver nas coisas que lhe sucedem como  uma ferramenta, deveria pensar que tudo lhe é dado com alguma finalidade. O que lhe acontece, inclusive as humilhações, fracassos, desgraças, é-lhe dado como uma argila, como matéria para sua arte. É preciso tentar beneficiar-se disso. Tais coisas nos foram destinadas para as transformarmos, a fim de que, a partir das circunstâncias dolorosas de nossas vidas, possamos fazer algo de eterno ou que aspire a sê-lo. Se um cego pensar dessa maneira, estará salvo. A cegueira é uma dádiva.
Pense no crepúsculo. Ao cair da noite, as coisas mais próximas desaparecem, exactamente como o mundo visível se afastou de mim, talvez para sempre. A cegueira não é uma desgraça total. É mais um instrumento que o destino ou a sorte colocou em nosso caminho."
 Jorge Luis Borges, in " Borges Oral &Sete Noites" , Companhia das Letras

domingo, 22 de novembro de 2020

Ao Domingo Há Música

Andrà Tutto Bene
 
In questa notte buia 
Sento solo il mio cuore che batte 
Ascoltando il respiro che si perde nel cielo 
Sta cambiando il mondo
 Ma a me non va di cambiarlo 
La città sembra vuota
Ma è piena d'amore 
Andrà tutto bene 
Non sentiamoci divisi 
C'è ancora tempo per amare 
Andrà tutto bene 
Siamo distanti ma uniti 
Dal desiderio di tornare
Tornare liberi 
Quando finirà tutto
Ci troveremo davanti a un tramonto
Sentiremo più forte la magia di un momento 
Tra i colori del mare e di un ponte che ci porta altrove 
Troveremo le parole, romperemo il silenzio 
Andrà tutto bene
Non sentiamoci divisi
 C'è ancora tempo per amare
 Andrà tutto bene
 Siamo distanti ma uniti 
Dal desiderio di tornare 
Tornare liberi 
E quando arriva la primavera
Rinasceremo come un fiore 
Torneremo a cantare 
Andrà tutto bene
Non sentiamoci divisi 
C'è ancora tempo per amare 
Andrà tutto bene
Siamo distanti ma uniti´
Dal desiderio di tornare
Tornare liberi 

Quando chegar a Primavera , renasceremos como uma flor,  voltaremos a cantar. Canta assim Jack Savoretti nesta canção  lançada em tempo de confinamento , quando a Peste nos apanhou a todos , incautos e desprevenidos. Agora  repete-se, neste Outono crísico, uma segunda e mais dura pandemia. É porém, neste tempo tão denso e obscuro , que se faz ouvir a esperança . Jack Savoretti lança-a de novo, com a certeza de que na próxima Primavera,  todos estaremos unidos pela música e libertos para a vida. Andrà tutto bene.

Jack Savoretti, em  Andrà Tutto Bene
Breaking The Rules

Taking the chance, walking away, breaking the rules
Nobody here can tell me what to do
"
I'm out on my own, making my way 
Trying to be someone that I can be proud of one day
I'm out on my own
Doing it my way 
Doing it my way

Jack Savoretti, em  Breaking The Rules (Live Acoustic). 
 
Only You

Together this world feels like home 
Walk beside me now until the end of time 
Without you I feel so alone 

Only you is all I need
Only you know where to go to get to me 
Only you can break me free 
Stop me living, yes, stop me living, now 
Stop me living, behind the lines of enemies

Jack Savoretti, em  'Only You' , no Hammersmith Apollo.

sábado, 21 de novembro de 2020

Coisas que só eu sei IV

Coisas que só eu sei ( conclusão)
por Camilo Castelo Branco
IX
“Li a tua carta, Carlos, com os olhos cheios de lágrimas, e o coração de reconhecimento. Não esperava tanto da tua sensibilidade. Fiz-te a injustiça de te julgar infeccionado deste marasmo de egoísmo que entorpece o espírito, e calcina o coração. E, demais, supunha-te insensível pelo facto de seres inteligente. Eis aqui um disparate, que eu não ousaria balbuciar na presença do mundo. O que vale é que as minhas cartas não serão lidas pelas mediocridades, que se acham em concílio permanente para condenar, em nome de não sei que tolas conveniências, as heresias do génio.
Deixa-me dizer-te francamente o juízo que eu formo do homem transcendente em génio, em estro, em fogo, em originalidade, finalmente em tudo isso que se inveja, que se ama, e que se detesta, muitas vezes.
O homem de talento é sempre um mau homem. Alguns conheço eu que o mundo proclama virtuosos e sábios. Deixá-los proclamar. O talento não é sabedoria. Sabedoria é o trabalho incessante do espírito sobra a ciência. O talento é a vibração convulsiva de espírito, a originalidade inventiva e rebelde à autoridade, a viagem extática pelas regiões incógnitas da ideia. Agostinho, Fénelon, Madame de Staël e Bentham são sabedorias. Lutero, Ninon de Lenclos, Voltaire e Byron são talentos. Compara as vicissitudes dessas duas mulheres e os serviços prestados à humanidade por esses homens, e terás encontrado o antagonismo social em que lutam o talento com a sabedoria.
Porque é mau o homem de talento? Essa bela flor porque tem no seio um espinho envenenado? Essa esplêndida taça de brilhantes e ouro porque é que contém o fel, que abrasa os lábios de quem a toca?
Aqui tens um tema para trabalhos superiores à cabeça de uma mulher, ainda mesmo reforçada por duas dúzias de cabeças académicas!
Lembra-me ouvir dizer a um doido que sofria por ter talento. Pedi-lhe as circunstâncias do seu martírio sublime, e respondeu-me o seguinte com a mais profunda convicção, e a mais tocante solenidade filosófica : os talentos são raros, e os estúpidos são muitos. Os estúpidos guerreiam barbaramente o talento : são os vândalos do mundo espiritual. O talento não tem partido nesta peleja desigual. Foge, dispara na retirada um tiroteio de sarcasmos pungentes, e, por fim, isola-se, segrega-se do contacto do mundo, e curte em silêncio aquele fel de vingança, que, mais cedo ou mais tarde, cospe na cara de algum inimigo, que encontra desviado do corpo do exército.
Ai tem, - acrescentou ele - a razão por que o homem de talento é perigoso na sociedade. O ódio inspira-lhe e eloquência da tracção. A mulher que lhe ouve o astucioso hino das suas apaixonadas lamúrias, acredita-o, abandona-se, perde-se, e retira-se, por fim, gritando contra o seu algoz, e pedindo à sociedade que grite com ela.
Agora, diz-me tu, Carlos, até que ponto devemos acreditar este doido. Eu por mim não me satisfaço com o seu sistema, todavia sinto-me propensa a aperfeiçoar o prisma do doido, até encontrar as cores inalteráveis do juízo.
Seja o que for, eu creio que és uma excepção e não sofra com isto a tua modéstia. A tua carta fez-me chorar, e acredito que sofrias, escrevendo-a. Hás-de continuar a visitar-me espiritualmente na minha Tebaida, sem cilícios, sim?
Agora conclua-se a história, que leva seus visos de folhetim filosófico, moral, social, e não sei que mais por aí se diz, que não vale nada.
Contraí amizade com a filha do visconde do Prado. Não era ela, porém, tão íntima que me levasse a declarar-lhe que Vasco de Seabra não era meu irmão. Por ele me fora imposto, como preceito, o segredo de nossas relações. Bem longe estava eu de compreender este zelo de virtuosa honestidade, quando a mão de um demónio me tirou a venda dos olhos.
Vasco amava Laura!! Eu pus dois pontos de admiração, mas acredita que foi uma urgência retórica, uma composição artística, que me obrigou a admirar-me, escrevendo, de coisas que me não admiram, pensando.
Que é o que levou tão depressa este homem a aborrecer-me, pobre mulher, que desprezei o mundo, e me desprezei a mim própria para satisfazer-lhe o capricho de alguns meses? Foi uma miséria que ainda hoje me envergonha, suposto que esta vergonha devesse ser um reflexo das faces dele… Vasco amava a filha do visconde do Prado, a Laura de alguns meses antes, porque a Elisa de hoje era a herdeira de não sei quantos centos de contos de réis.
Devo envergonhar-me de ter amado este homem, não é verdade, Carlos? Não devo sofrer um instante a perda de um miserável, que eu vejo daqui com uma grilheta de ouro algemada a uma perna, tapando em vão os ouvidos para não ouvir-lhe o ruído… a sentença do forçado que o segue até ao fim de uma existência farta de opróbrio, e célebre de infâmias!
E não sofro, Carlos! Tenho aqui no seio uma úlcera que não tem cura… Choro, porque é intensa a dor que ela me causa… Mas, olha, não tenho lágrimas que não sejam remorsos… Não tenho remorsos que não sejam picados pela afronta que fiz a minha mãe, e a meu irmão… Não me dói o meu próprio aviltamento, não! Se em minha alma cabe algum entusiasmo, algum desejo, é o entusiasmo da penitência, é o desejo de torturar-me…
Fugi tanto da história, meu Deus!… Desculpa estes desvios, meu paciente amigo!… Eu queria correr muito sobre o que falta, e hei-de consegui-lo, porque não posso parar, e temo de me converter em estátua, como a mulher de Loth, quando olho com atenção para o meu passado…
O visconde do Prado convidou Vasco de Seabra a ser seu genro. Vasco não sei como recebeu o convite; o que eu sei é que os vínculos destas relações estreitaram-se muito, e Elisa, desde esse dia, expandiu-se comigo em intimidades do seu passado, todas mentirosas. Estas intimidades eram o prólogo de outra que tu avaliarás. Foi ela a própria que me disse que esperava ainda poder chamar-me irmã! Isto é uma atrocidade sublime, Carlos! Diante dessa dor calam-se todas as agonias possíveis! O insulto não podia ser mais despedaçador! O punhal não podia entrar mais dentro no virtuoso coração da pobre amante de Vasco de Seabra!… Agora, sim, que eu quero a tua admiração, meu amigo! Tenho direito à tua compaixão, se não podes estremecer de entusiasmo diante do heroísmo de uma mártir! Ouvi este anúncio dilacerante!… Senti fugir-me o entendimento… Aquela mulher sufocou-me a voz na garganta… Horrorizei-me não sei se dela, se dele, se de mim… Nem uma lágrima!… Acreditei-me doida… Senti-me estúpida daquele idiotismo pungente que faz chorar os estranhos, que nos vêem nos lábios um sorriso de imbecilidade…
Elisa parece que recuou aterrada da expressão da minha fisionomia… Fez-me não sei que perguntas… Não me lembro mesmo se aquela mulher permaneceu diante de mim… Basta!… Não posso prolongar esta situação…
Na tarde desse mesmo dia, chamei uma criada da hospedaria. Pedi-lhe que me vendesse algumas jóias de pouco valor que eu possuía; eram minhas; minhas não… Eram um roubo que eu fiz a minha mãe.
Na manhã do dia seguinte, quando Vasco, depois do almoço, visitava o visconde do Prado, escrevi estas linhas :
“Vasco de Seabra não pode gloriar-se de ter desonrado Henriqueta de Lencastre. Esta mulher sentia-se digna de uma coroa de virgem, virgem do coração, virgem na sua honra, quando abandonava um vilão, que não pôde infectar da sua infâmia o coração da mulher que arrastou ao abismo da sua lama, sem lhe salpicar a cara. Foi a Providência que a salvou!”
Deixei este escrito sobre as luvas de Vasco, e fui à estação dos caminhos de ferro.
Dois dias depois entrava um paquete.
Ao ver a minha pátria, cobri o rosto com as mãos, e chorei… Era a vergonha e o remorso. Diante do Porto senti uma inspiração do céu. Saltei numa catraia, e pouco depois achava-me nesta terra, sem um conhecimento, sem o apoio e sem subsistência para muitos dias.
Entrei em casa de uma modista, e pedi obra. Não ma negou. Aluguei uma água-furtada, onde trabalho há quatro anos; onde, há quatro anos, comprimo bem aos rins, segundo a linguagem antiga, os cilícios do meu remorso.
Minha mãe e meu irmão vivem. Julgam-me morta, e eu peço a Deus que não haja um indício da minha vida. Sê-me tu fiel, meu generoso amigo, não me denuncies, pela tua honra e pela sorte de tuas irmãs.
Tu sabes o resto. Ouviste, no teatro, Elisa. Foi ela a que me disse que o seu marido a abandonara, chamando-lhe Laura. Aquela está punida…
Sofia… (lembras-te de Sofia?) Essa é uma pequena aventura, que aproveitei para tornar menos insípidas aquelas horas em que me acompanhaste… Foi uma rival que não honra ninguém… Uma Laura com os respeitos públicos, e as considerações que se barateiam a corpos ulcerosos, contando que se vistam de veludos matizados. Ainda eu era feliz, quando o infame amante dessa mulher me dava aquele anel, que viste, como oblação de sacrifício que me fazia de um rival…
Escreve-me.
Hás-de ouvir-me no próximo Carnaval.
Por último, Carlos, deixa-me fazer-ta uma pergunta : Não me achas mais defeituosa que o nariz daquela andaluza da história que te contei?
Henriqueta.”
X
É natural a exaltação de Carlos, depois de erguido o véu, em que se escondiam os mistérios de Henriqueta. Alma apaixonada pela poesia do belo e pela poesia da desgraça, Carlos não teve nunca impressão na vida que mais lhe incendiasse uma paixão.
As cartas a Ângela Micaela eram o desafogo do seu amor sem esperança. Os mais ferventes êxtases da sua alma de poeta, imprimiu-os naquelas cartas escritas debaixo de uma impressão que lhe roubava a tranquilidade do sono, e o refúgio de outros afectos.
Henriqueta respondera concisamente às explosões de um delírio que nem sequer a fazia tremer pelo seu futuro. Henriqueta não podia amar. Arrancaram-lhe pela raiz a flor do coração. Esterilizaram-lhe a árvore dos belos frutos, e envenenaram-lhe de sarcasmo e ironia os instintos do carinho brando, que acompanham a mulher até a sepultura.
Carlos não podia suportar uma repulsa nobre. Persuadira-se que havia um escalão moral para todas. Confiava no seu ascendente em não sei que mulheres, entre as quais lhe não fora penoso nunca fixar o dia do seu triunfo.
Homens assim, quando encontram um estorvo, apaixonam-se seriamente. O amor-próprio, angustiado nos apertos de uma impossibilidade invencível, adquire uma nova feição, e converte-se em paixão, como as paixões primeiras, que nos sopram a tempestade no límpido lago da adolescência.
Carlos, em último recurso, precisava saber onde morava Henriqueta. No lance extremo de um desafogo, iria ele, audacioso, humilhar-se aos pés daquela mulher, que a não poder amá-lo, choraria com ele ao menos.
Estas preciosas futilidades escaldavam-lhe a imaginação, quando lhe ocorreu a astuciosa lembrança de surpreender a morada de Henriqueta surpreendendo a pessoa que no correio lhe tirava as cartas, subscritas a Ângela Micaela.
Conseguiu o comprometimento de um empregado do correio, Carlos empregou nesta missão um vigia insuspeito.
No dia do correio, uma velha, mal trajada, pediu a carta n° 628. O que a entregou fez um sinal a um homem que passeava no corredor, e este homem seguiu de longe a velha até ao campo de Santo Ovídio. Feliz das vantagens que lucrara em tal comissão, correu a encontrar-se com Carlos. É ocioso descrever a precipitação com que o enamorado mancebo, espiritualizado por algumas libras, correu à indicada casa. Em honra de Carlos, é necessário dizer que aquelas libras representavam a eloquência com que ele tentaria mover a velha em seu favor, por isso que, à vista das informações que tivera da pobreza da casa, concluiu que não era ali a residência de Henriqueta.
Acertou.
A confidente de Henriqueta fechava a porta da sua baiúca, quando Carlos se aproximou, e muito urbanamente lhe pediu licença para dizer-lhe duas palavras.
A velha, que não podia recear alguma agressão traiçoeira aos seus virtuosos oitenta anos, franqueou os umbrais da sua pocilga, e prestou ao seu hóspede a cadeira única do seu camarim de tecto de vigas e pavimento de lajes.
Carlos principiou como devia o seu ataque. Lembrado da chave com que Bernardes manda fechar os sonetos, aplicou-a à abertura da prosa, e conheceu de pronto as vantagens de ser clássico, quando convém. A velha, quando viu cair no regaço duas libras, sentiu o que nunca sentira a mais carinhosa das mães, com dois filhinhos no colo. Luziram-lhe os olhos, e dançaram-lhe os nervos em todas as evoluções dos seus vinte e cinco anos.
Feito isto, Carlos precisou a sua missão nos seguintes termos :
“Esse pequeno donativo, que lhe faço, há-de ser repetido, se vossemecê me fizer um grande serviço, que pode fazer-me. Vossemecê recebeu, há pouco, uma carta, e vai entregá-la a uma pessoa, cuja felicidade está nas minhas mãos. Estou certo que vossemecê não há-de querer ocultar-me a morada dessa senhora, e privá-la de ser feliz. O serviço que tenho a pedir-lhe, e a pagar-lhe bem, é este; pode fazer-mo?”
A frágil mulher, que não se sentia bastante heroína para ir de encontro à legenda que D. João V fez gravar nos cruzados, deixou-se vencer, com mais algumas reflexões e denunciou o santo asilo das lágrimas de Henriqueta, segunda vez atraiçoada por uma mulher, frágil à tentação de ouro, que lhe roubara um amante, e vem agora devassar-lhe o seu sagrado refúgio.
Poucas horas depois, Carlos entrava numa casa da Rua dos Pelames, subia a um terceiro andar, e batia a uma porta, que lhe não foi aberta. Esperou. Momentos depois, subia um rapaz com uma caixa de chapéu de senhora : bateu; perguntaram de dentro quem era, o rapaz falou, e a porta foi imediatamente aberta.
Henriqueta estava sem dominó na presença de Carlos.
Foi sublime esta aparição. A mulher que Carlos viu, não saberemos nós pintá-la. Era o original dessas esplêndidas iluminuras que o pincel do século XVI fazia saltar da tela, e consagrava a Deus, denominando-as Madalena, Maria Egipcíaca e Margarida de Cortona.
O homem é fraco, e sente-se mesquinho perante a majestade da beleza! Carlos sentiu-se dobrar nos joelhos; e a primeira palavra que balbuciou foi “Perdão”!
Henriqueta não pôde receber com a firmeza que devia supor-se-lhe uma tal surpresa. Sentou-se e limpou o suor que lhe correra de improviso todo o corpo.
A coragem de Carlos desmereceu do muito em que ele a tinha. Sucumbiu, e nem ao menos lhe deixou o dom dos lugares-comuns. Silenciosos, olhavam-se com uma simplicidade infantil, indigna de ambos. Henriqueta revolvia no pensamento a indústria com que o seu segredo fora violado. Carlos invocava ao coração palavras que o salvassem daquela crise, que o materializava por ter tocado o extremo do espiritualismo.
Não nos faremos cargo de satisfazer as despóticas exigências do leitor, que pede contas das interjeições e das reticências de um diálogo.
O que podemos garantir-lhe, debaixo da nossa palavra de folhetinista, é que a musa das lamentações desceu à invocação de Carlos, que, por fim, desenvolveu toda a eloquência da paixão. Henriqueta ouviu-o com a seriedade com que uma rainha absoluta escuta um ministro da fazenda, que lhe conta os chatíssimos e maçudos negócios das finanças.
Sorria-se, às vezes, e respondia com um ressaibo de mágoa e de ressentimento, que matava, no nascedouro, os transportes do seu infeliz amante.
As suas últimas palavras, essas sim, são signas de se arquivarem para escarmento daqueles que se julgam herdeiros dos raios de Júpiter Olímpico, quando se empavonam de fulminar as mulheres que tiveram a desventura de se queimarem, como as mariposas, no lume eléctrico de seus olhos. Foram estas as suas palavras:
— “Sr. Carlos! Até hoje os nossos espíritos viveram ligados por umas núpcias que eu pensei não perturbarem a nossa cara tranquilidade, nem escandalizarem a caprichosa opinião pública. De ora em diante, um solene divórcio entre os nossos espíritos. Estou punida de mais. Fui fraca e talvez má, em prender-lhe a sua atenção num baile mascarado. Perdoe-me, que sou, por isso, mais desgraçada do que pensa. Seja meu amigo. Não me envenene esta santa obscuridade, este círculo estreito da minha vida, em que a mão de Deus tem derramado algumas flores. Se não pode avaliar o travo das minhas lágrimas, respeite cavalheiramente uma mulher que lhe pede com as mãos erguidas o favor, a piedade de a deixar sozinha com o segredo da sua desonra, que eu prometo nunca mais alargar a minha alma nestas revelações, que morreriam comigo, se eu pudesse suspeitar que atraía com elas a minha desgraça…”
Henriqueta continuava, quando Carlos, com lágrimas de uma dor sincera, lhe pedia ao menos a sua estima, e lhe entregava as suas cartas, debaixo do sagrado juramento de nunca mais a procurar.
Henriqueta, entusiasmada pelo patético desta nobre rogativa, apertou ansiosamente a mão de Carlos, e despediram-se.
E nunca mais se viram.
Mas o leitor tem o direito a saber mais alguma coisa.
Carlos, um mês depois, partiu para Lisboa, colheu as necessárias informações, e entrou em casa da mãe de Henriqueta. Uma senhora, vestida de luto, e encostada a duas criadas, veio encontrá-lo numa sala.
— “Não tenho a honra de conhecer…” - disse a mãe de Henriqueta.
— “Sou um amigo…”
— “De meu filho?!…” - interrompeu ela. - “Vem-me dar parte do triste acontecimento?… Eu já o sei!… Meu filho é um assassino!…”
E prorrompeu num choro, que a não deixava articular palavras.
— “O filho de V. Exa assassino!…” - interpelou Carlos.
— “Sim… Sim… Pois não sabe que ele matou em Londres o sedutor da minha desgraçada filha?!… da minha filha… assassinada por ele…”
— “Assassinada, sim, mas só na sua honra” - atalhou Carlos.
— “Pois minha filha vive!… Henriqueta vive!… Oh meu Deus, meu Deus, eu vos agradeço!…”
A pobre senhora ajoelhou, as criadas ajoelharam com ela, e Carlos sentiu um calafrio nervoso, e uma exaltação religiosa, que quase o fizeram ajoelhar com aquele grupo de mulheres, cobertas de lágrimas.
Dias depois, Henriqueta era procurada no seu terceiro andar, por seu irmão, e choravam ambos abraçados com toda a expansão de uma dor represada.
Houve aí um drama de agonias grandiosas, que a linguagem do homem não saberá descrever nunca.
Henriqueta abraçou sua mãe, e entrou num convento onde pede incessantemente a Deus a salvação de Vasco de Seabra.
Carlos é o íntimo amigo desta família, e conta este lance da sua vida como um heroísmo digno de outras épocas.
Laura, viúva de quatro meses, contrai segundas núpcias, e vive feliz com o seu segundo marido, digno dela.
Acabou o conto."
Camilo Castelo Branco, in "Coisas que só eu sei", Editora Relógio D'Água.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Coisas que só eu sei III

Coisas que só eu sei (cont.)
por Camilo Castelo Branco
VII
“Cumpro religiosamente as minhas promessas. Tu não avalias o sacrifício que faço. Não importa. Como não quero cativar a tua gratidão, nem, mesmo ainda, mover a tua piedade, basta-me a consciência do que sou para ti, que é (medita bem) o mais que posso ser…
A história… não é assim? Principia agora.
António Alves era um pobre amanuense do escritório de um tabelião de Lisboa. O tabelião morreu, e António Alves, privado dos escassos lucros de amanuense, lutou com a fome. A mulher por um lado com a filhinha ao colo, e ele pelo outro com as lágrimas da indigência, conseguiram algumas moedas, e com elas a passagem do pobre marido para o Rio de Janeiro.
Foi, e deixou entregues à Providência a mulher e a filha.
Josefa esperava todos os dias carta de seu marido. Nem carta, nem um indício da sua existência. Julgou-se viúva, vestiu-se de preto e viveu de esmolas, pedidas à noite na praça do Rossio.
A filha chamava-se Laura, e crescera bela, não obstante as angústias da fome, que transformam a formosura do berço.
Aos quinze anos de Laura, já sua mãe não mendigava. A desonra proporcionara-lhe abundância que uma honrosa mendicidade lhe não dera. Laura era amante de um rico, que cumpria fielmente com a mãe as condicionais estipuladas na escritura de venda da filha.
Um ano depois, Laura explorava outra mina. Josefa não sofria com as vicissitudes da filha, e continuava a gozar os fins da vida à sombra de tão fecunda árvore.
A indigência e a sociedade fizeram-lhe compreender que só há desonra na fome e na nudez.
Outro ano depois, a radiosa Laura declarou-se o prémio do cavaleiro que mais airoso entrasse no torneio.
Concorreram muitos gladiadores, e parece que todos foram premiados, porque todos esgrimiam galhardamente.
Desgraça foi para Laura, quando os melhores campeões se retiraram fatigados da liça. Os que vieram depois eram bisonhos no jogo das armas, e viram que a dama das justas já não valia a pena de perigosos botes de lança e de arreios muito custosos de pedraria e ouro.
Pobre Laura, apeada do seu pedestal, olhou-se a um espelho, viu-se ainda bela com vinte e cinco anos, e perguntou à sua consciência a baixa do preço com que corria no leilão de mulheres. A consciência respondeu-lhe que descesse da altura das suas ambições, que viesse para onde a chamava a lógica de sua vida, e continuaria a ser rainha num reino de segunda ordem, já que a exautoravam de um trono que tivera na primeira.
Laura desceu, e encontrou uma sociedade nova. Aclamaram-na soberana, reuniu-se uma corte tumultuosa na antecâmara desta odalisca fácil, e não houve grande nem pequeno a quem se baixassem os reposteiros do trono.
Laura viu-se um dia abandonada. Viera uma outra disputar-lhe a sua legitimidade. Os cortesãos voltaram-se para o sol nascente, e apedrejaram, como os Incas, o astro que se escondia para alumiar os antípodas de um outro mundo.
Os antípodas de um outro mundo eram uma sociedade inculta, sem a inteligência da arte, sem o culto à formosura, sem as opulências que o ouro cria nas altas regiões da civilização, e, finalmente, sem algum dos atributos que Laura amara tanto nos mundos onde fora soberana duas vezes.
A infeliz tinha descido ao derradeiro grau de aviltamento; mas era bela ainda. Sua mãe, enferma num hospital, pedia a Deus, como esmola, a sua morte. A desgraçada foi punida.
No hospital, viu passar a sua filha diante do seu leito; pediu que a deitassem ao pé de si; o enfermeiro riu-se, e entrou com ela noutra enfermaria, onde o anjo do pudor e das lágrimas cobriam o rosto na presença da úlcera mais esquálida e mas lastimosa do género humano.
Laura principiava a sondar a profundidade do abismo em que caíra.
A sua mãe recordava as fomes de outro tempo, quando a filha, virgem ainda, chorava e suplicava, com ela, uma esmola ao passageiro.
As privações de então eram semelhantes às privações de agora, com a diferença, porém, que a Laura de hoje, desonrada e repelida, não podia já prometer o futuro da Laura de então.
Agora, Carlos, vejamos o que é o mundo, e pasmemos diante das evoluções ginásticas dos acontecimentos.
Aparece em Lisboa um capitalista, que chama a atenção dos capitalistas, a consideração do Governo, e, por via de regra, desafia inimizades políticas e invejas, que procuram o seu princípio de vida para denegrir-lhe o luzimento da sua afrontosa opulência.
Este homem compra uma quinta na província do Minho, e, mais barato ainda, compra o título de visconde do Prado.
Um jornal de Lisboa, que traz entre os dentes venenosos da política o pobre visconde, escreve um dia um artigo, onde se acham, entre muitas, as seguintes alusões :
'O Sr. Visconde do Prado adscreveu à imoralidade do Governo a imoralidade de sua fortuna. Como ela foi adquirida, di-lo-iam as costas de África se os sertões contassem os horrorosos dramas da escravatura, em que o Sr. Visconde foi herói.
O Sr. Visconde do Prado era António Alves há 26 anos, e a pobre mulher que deixou em Portugal, com uma tenra filhinha ao colo, ninguém dirá em que rua morreu de fome sobre as lajes, ou em que água-furtada curtiam ambas as agonias da fome, enquanto o Sr. Visconde medrava cinicamente na hidropisia do ouro, com que hoje vem arrotar moralidades no teatro das suas infâmias de esposo e de pai.
Melhor fora que o Sr. Visconde indagasse onde repousam os ossos de sua mulher e de sua filha, e nos pusesse aí um padrão de mármore, que possa atestar ao menos o remorso de um infame contrito…'
Este insulto directo, e fundamentado, ao visconde do Prado, fez ruído em Lisboa. As edições do jornal espalharam-se, e leram-se e comentaram-se com frenética maldade.
Às mãos de Laura chegou este jornal. A sua mãe, ouvindo lê-lo, delirou. A filha cuidou que sonhava; e a situação de ambas perderia muito se eu tentasse roubar-lhe as cores vigorosas da tua imaginação.
No dia seguinte, Josefa e Laura entravam no palacete do visconde do Prado. O porteiro respondeu que S. Exa não estava ainda a pé. Esperaram. Às 11 horas saía o visconde, e, ao saltar para a carruagem, viu duas mulheres que se aproximavam. Meteu a mão ao bolso do colete, e tirou doze vinténs que lançava na mão de uma das duas mulheres. Olhou admirado para elas, quando viu que a esmola lhe era recusada.
— “Que querem” - interrompeu ele, com soberba indignação.
— “Quero ver meu marido que não vejo há 26 anos…” - respondeu Josefa.
O visconde estacou ferido de um raio. O suor gotejava-lhe na testa em bagas frias. Laura aproximou-se, em atitude de beijar-lhe a mão…
— “Pois quê?…” - interpelou o visconde.
— “Sou sua filha…” - respondeu Laura com humilde respeito.
O visconde, aturdido e parvo, voltou as costas à carruagem, e mandou às duas mulheres que o seguissem.
O resto no correio seguinte. Adeus, Carlos.
Henriqueta.”
VIII
“Carlos, tenho quase tocado a extrema desta minha peregrinação. A minha Ilíada está no último canto. Quero dizer-te que é esta a minha penúltima carta.
Não sou tão independente como pensava. A não serem os poetas, ninguém gosta de contar as suas mágoas ao vento. É belo dizer-se que um gemido nas asas da brisa vai da terra em dorido suspirar até ao coro dos anjos. É bonito conversar com a fonte suspirosa, e contar à avezinha gemedora os segredos do nosso pensar. Tudo isto é delicioso de uma puerilidade inofensiva; mas eu, Carlos, não tenho alma para estas coisas, nem engenho para estes artifícios.
Vou contando as minhas penas a um homem que não pode zombar de minhas lágrimas, sem trair a generosidade do seu coração, e a sensibilidade do talento. Sabes qual é o meu egoísmo, o meu estipêndio neste trabalho, nesta franqueza de alma, que ninguém te pode disputar como único em merecê-la? Eu te digo. Quero uma carta tua, dirigida a Angélica Micaela. Diz-me o que a tua alma te disse; não tenhas pejo em denunciá-la; associa-te um momento à minha dor, e diz-me o que farias se tivesses sido Henriqueta.
Aqui tens o prólogo desta carta; agora vamos espreitar o lance extraordinário daquele encontro, em que deixamos o visconde e a… Como hei-de chamar-lhe?… A viscondessa, e a sua Exma Filha D. Laura.
— “Pois é possível existires?” - perguntava o visconde, sinceramente admirado, a sua mulher.
— “Pois não me conheces, António?” - respondia ela com estúpida naturalidade.
— “Tinham-me dito que morreras…” - tornou ele com desasada hipocrisia. - “Tinham-me dito, há dezassete anos, que tu e nossa filha tínheis sido vítimas da cólera-morbo…”
— “Felizmente que lhe mentiram” - interrompeu Laura com afectada meiguice. - “Não é que lhe tínhamos rezado por alma, e nunca deixámos de pronunciar o seu nome em saudosas lágrimas.”
— “Como tendes vivido?” - perguntou o visconde.
— “Pobre, mas honradamente” - respondeu Josefa, dando-se uns ares austeros, e pondo os olhos em branco, como quem invoca o céu por testemunha.
— “Ainda bem!” - tornou o visconde - “mas que modo de vida tem sido o vosso?”
— “O trabalho, meu querido António, o trabalho de nossa filha tem sido o amparo da sua honra e da minha velhice. Tu abandonaste-nos com tamanha crueldade!… Que mal te fizemos-nós?”
— “Nenhum, mas não vos disse eu que vos considerava mortas?” - respondeu o visconde a sua mulher, que tivera a habilidade de arrancar duas volumosas lágrimas, tanto a propósito.
— “O passado, passado” - disse Laura, afagando carinhosamente as mãos paternas, e dando-se uns ares de inocência capazes de iludir S. Simão Estilista. - “Quer o pai saber” (prosseguiu ela com sentimento) “qual tem sido a minha vida? Olhe, meu pai, não se envergonhe da posição social em que encontra sua filha… Tenho sido modista, tenho trabalhado incessantemente… Tenho lutado com as tentações da penúria, e tenho feito consistir em minhas lágrimas o meu triunfo…”
— “Bem, minha filha” - interrompeu o visconde com sincera contrição - “esqueçamos o passado… De hora em diante será a abundância o prémio da tua virtude… Ora diz-me : o mundo sabe que tu és minha filha?… Disseste a alguém que era teu marido, Josefa?”
— “Não, meu pai.” - “Não, meu Antoninho.” - responderam ambas, como se tivessem previsto e calculado as perguntas e as respostas.
— “Pois bem,” - continuou o visconde - “vamos a conciliar com o mundo as nossas posições presentes, passadas e futuras. De hora avante, Laura, és minha filha, és filha do visconde do Prado, e não podes chamar-te Laura. Serás Elisa, compreendes-me? É necessário que te chames Elisa…”
— “Sim, meu pai… Eu serei Elisa” - atalhou a inocente modista com impetuosa alegria.
— “É necessário abandonar Lisboa” - prosseguiu o visconde.
— “Sim, sim, meu pai… Vivamos num sertão… Quero gozar, sozinha, na presença de Deus a felicidade de ter pai…”
— “Não iremos para um sertão… Vamos para Londres; mas… atendam-me… é preciso que ninguém as veja, nestes primeiros anos, principalmente em Lisboa… A minha posição actual é muito melindrosa. Tenho muitos inimigos, muitos invejosos, muitos infames, que procuram perder-me no conceito que pude comprar com o meu dinheiro. Estou farto de Lisboa; partiremos no  primeiro paquete… Josefa, repara em ti, e vê que és Viscondessa do Prado. Elisa, a tua educação foi desgraçadamente mesquinha para te poderes mostrar qual eu quero que sejas na alta sociedade. Voltaremos um dia, e terás então suprido com a educação prática a rudeza que indispensavelmente tens.”
Não progrido, neste diálogo, Carlos. O programa do visconde foi rigorosamente cumprido.
Aqui tens os precedentes que prepararam o meu encontro, em Londres, com esta família. Vasco de Seabra, quando viu, pela primeira vez, a filha do visconde atravessar um corredor do hotel, fixou-a com pasmo, e veio dizer-me que acabava de ver, elegantemente trajada, uma mulher que conhecera em Lisboa, chamada Laura.
Acrescentou várias circunstâncias da vida desta mulher, e acabou por mostrar vivos desejos de saber o tolo opulento a quem tal mulher estava associada.
Vasco pediu a lista dos hóspedes, e viu que os únicos portugueses eram Vasco de Seabra e sua irmã, e o visconde do Prado, a sua mulher, e sua filha D. Elisa Pimentel.
Redobrou o seu pasmo, e chegou a convencer-se de uma ilusão.
No seguinte dia, o visconde encontrou-se com Vasco, e alegrou-se de ter encontrado um patrício, que lhe explicasse aqueles gritos bárbaros dos serventes do hotel, que lhe davam água por vinho. Vasco não duvidou em ser intérprete do visconde, contanto que as suas luzes em língua inglesa pudessem chegar ao esconderijo donde nunca mas vira sair a suposta Laura.
Correram as coisas à medida do seu desejo. Na noite desse dia, fomos convidados para tomar chá, na saleta do visconde. Eu hesitei, sem saber ainda se Laura seria familiar do visconde. Vasco, porém, despreveniu-me deste temor, afiançando-me que se tinha iludido com a semelhança das duas mulheres.
Fui. Elisa pareceu-me uma menina bem educada. Nunca o artifício tirou maior partido das maneiras adquiridas em hábitos libertinos. Elisa era uma mulher de corte, com os ademanes fascinantes dos salões, onde a imoralidade do coração passeia de braço dado com a ilustração do espírito. O som da palavra, a escolha da frase, a compostura airosa da mímica, o tom sublime em que as suas ideias eram voluptuosamente lançadas na torrente de uma conversação animada, tudo isto me fez crer que Laura era a primeira mulher que eu tinha encontrado, talhada à feição do meu espírito.
Quando agora pergunto à minha consciência como estas transições se fazem, descreio da educação, lamento os anos consumidos no cultivo da inteligência, e chego a persuadir-me que a escola da devassidão é a antecâmara por onde mais fácil se entra no mundo da graça e da civilização.
Perdoa-me o absurdo, Carlos; mas há mistérios na vida que só pelo absurdo se explicam.
Henriqueta.”
Camilo Castelo Branco, in "Coisas que só eu sei", Editora Relógio DÁgua.