por Teolinda Gersão
"A qualquer momento a mulher ou a sogra poderiam chamá-lo e ele não estaria lá para mudar uma mesa de lugar, abrir uma janela emperrada, soldar um cano roto ou pôr uma anilha numa torneira que pingava.
Àquela hora já costumava estar em casa, pensou apressando o passo, lembrando-se de que a cega podia querer sair e precisar que ele a ajudasse a atravessar a rua. No entanto, nunca lhe tinha ocorrido que esse pudesse ser um papel de cão. Nunca até àquele momento em que ele próprio atravessava a rua pelo meio da faixa, atento ao semáforo, uma tal ideia lhe atravessara o espírito. Mas agora que a pensara, a ideia perseguia-o, parecia caminhar a seu lado, colada aos seus passos como uma sombra.
Olhou com curiosidade os cães que passavam perto: de coleira ao pescoço, presos pela trela. Segura na mão de alguém. De cores e raças diferentes ― não sabia grande coisa sobre cães, sempre se interessara pouco pelo assunto. Até então. Pela primeira vez olhava atentamente os pequenos quadrúpedes que não o olhavam a ele; apenas pareciam apostados em seguir em determinado sentido, atentos à pressão da trela, que uma mão segurava com mais ou menos força.
Ali estava justamente um cego, ao lado do seu cão, ambos esperando a mudança de luz no semáforo em frente. Viu-lhe a cara, assomando debaixo do chapéu: os olhos vítreos, como água podre, a boca entreaberta num esgar, ao canto da boca um resto de saliva.
Atravessar a rua com os cegos, pensou outra vez, era um papel de cão. O que nunca lhe ocorrera, até àquele dia. No entanto, agora que pensava nisso, tudo parecia ficar claro. O cego era ele, como é que não dera conta? Era, ao mesmo tempo, cego e cão. De repente o mundo estava cheio de evidências. Nunca tinha pensado, por exemplo, que daquela vez que insultara o director do departamento esse facto se devera a uma enorme raiva acumulada. Nesse dia, via agora, portara-se como um cão. Só que raivoso. Uivara, ladrara, ganira, mordera. Ou pelo menos arreganhara os dentes, pronto a morder.
O que lhe custara a carreira, para o resto da vida. Nunca mais seria promovido, gritara a cega, torcendo as mãos. E ainda tivera sorte em não ser despedido, com um processo em cima. Não sabia falar, se tinha reclamações?
Não, não sabia, verificava agora. Desaprendera de falar, porque ninguém o escutava. Serviam-se dele apenas, como de um objecto útil, que se põe de parte depois de usado. Falava pouco e muito depressa, como se tivesse medo de que as pessoas se fossem embora. Vendo que bem, na maior parte das vezes iam-se de facto embora. Ele atirava duas ou três palavras para dentro das conversas, mas era sempre demasiado tarde. É verdade em que às vezes pareciam escutá-lo, mas de repente interrompiam-no com outro assunto, como se ele nunca tivesse começado a falar, ou como se nem sequer lá estivesse.
E quando foi transferido nenhum dos colegas pareceu importar-se, e ninguém lhe desejou boa sorte. Como se mudassem para outro escritório uma peça avulsa de mobília, que tanto fazia estar num lado como noutro.
Em casa também ninguém lhe perguntou se a mudança lhe agradava, se o novo lugar era pior ou melhor do que o primeiro. A sogra não fez perguntas, ficou como sempre vigiando e escutando, a cega só quis saber se ganhava mais. Quando soube que ganhava o mesmo ficou decepcionada e gritou que só a ele isso acontecia. O que aliás também ele pensava. De modo que não respondeu, e as coisas ficaram assim.
Continuou a receber as mesmas pequenas quantias, que a cega ia tirando do ordenado que ele recebia ao fim do mês e depositava inteiro nas mãos dela. Ou antes, nas mãos dela e nas da sogra, porque ambas contavam e recontavam, suspirando, para verificarem sempre que era pouco e nunca chegava, apesar dos esforços que faziam.
Talvez por isso nunca lhe davam nada no Natal. Embora ele gostasse de lhes dar presentes. À mulher sobretudo, coisas que ela cobiçava, perfumes, um lenço de pescoço, um par de sapatos caros. Porque a cega gostava de vestir-se e enfeitar-se, ainda que não pudesse ver-se ao espelho. Vestidos novos eram-lhe indispensáveis, mesmo só para ir à mercearia e ao café. Já que nascera cega e a vida fora tão cruel, algo de bom teria também de lhe caber em sorte.
Tens um bom marido, ouviu dizer a sogra. Faz o que pode, coitado.
Mas não sabe mexer-se neste mundo, disse a cega. Vissem o Chinchas, que começara do nada, encostado à parede das esquinas, e agora tinha apartamento, carro e empregados. Para já não falar dos anéis de brilhantes no dedo.
Pois, disse a sogra, mas falava-se de droga e de chulo.
Ora, tornou a cega, eram tudo más-línguas e invejas.
Lá isso, concordou a sogra, o que todos queriam era estar no lugar dele, que era o lugar dos que mandavam.
Há os que mandam e os paus-mandados, suspirou a cega, e a conversa continuou como se ele não estivesse a ouvir. Na verdade nenhuma se preocupara em verificar se ele as ouvia ou não. Estar ou não presente acabava por ser praticamente igual.
A cega falava agora das tristezas da vida: para além de ser invisual, moravam naquele bairro suburbano, onde só se alojava quem não tinha escolha.
De repente ele enfureceu-se com tanta ingratidão, mas não se atreveu a dizer nada. Só pensou. Era cega e ele não casara com ela, apesar disso? Não trouxera logo duas mulheres para casa, em vez de uma?
Sim, porque aceitara trazer também a sogra, quantos homens, no lugar dele, fariam isso?
Então e os lenços, os sapatos e os vestidos? E quantas meias tinha ele, e em que estado estavam os seus fatos e camisas? Disso ela não queria saber, nem perguntava. Até porque não via, desculpava-se. Mas ele também era gente, ora essa. Ou ela pensava que não? Pensava que ele lhe servia para descarregar a raiva de ser cega e pobre e de viver contra o mundo? Que culpa tinha ele das desgraças dela?
Passou a estar muito menos em casa, e a ir de vez em quando ao futebol e ao café. A seguir quis fazer um curso noturno de contabilidade, mas a cega opôs-se. Queixou-se de que ele a deixava sozinha e andava atrás de outras mulheres, que não eram cegas como ela. Recusou todas as refeições e adoeceu. A seguir foi a mãe que adoeceu. Não se levantaram durante quinze dias e ele tinha de vir a correr fazer o jantar e deixar-lhes comida para o dia seguinte, embora a cega tivesse praticamente deixado de comer.
Quando a viu mais calma e a vida se normalizou, começou a fazer um curso de contabilidade por correspondência. No fim do jantar abria os livros e os cadernos na mesa da cozinha e punha tampões nos ouvidos para não ouvir a televisão.
N o entanto a cega encontrava sempre pretextos para o interromper. Chamava-o para colocar um calce no pé da mesa, para descer melhor as persianas, que deixavam frinchas por onde entrava o frio, para lhe ler as legendas dos filmes estrangeiros. Ao fim de três semanas meteu no caixote do lixo os livros e os cadernos e foi beber um copo ao café da esquina, o que a partir daí se tornou um hábito, depois do jantar. Durante os dias em que a cega o consentiu. Porque logo pouco depois passou a enchê-lo de recriminações. Se queria ir ao café, também ela queria. Levasse-a consigo, que era a sua obrigação, não ia ficar em casa, que nem um trapo deitado fora, enquanto ele se divertia com outras. Passou a acompanhá-lo a toda a parte. Mesmo ao cinema, onde ele lhe ia contando o que se passava no ecrã, apesar dos protestos de quem ficava ao lado.
Por vezes ele fugia, ia sozinho ao cinema, marcava encontros com um ou outro amigo, e depois ouvia a cega acusá-lo uma semana inteira. Mas na verdade quase não tinha amigos, porque ela sempre lhe preenchera a vida toda. E porque quase deixara de falar, desaprendera também a conversa. Nem mesmo já rir sabia, verificou com espanto. Em vez do riso, fazia um pequeno som sibilante, como um latido.
Com o tempo desinteressara-se de tudo e deixara de saber o que se passava no mundo. Nem sabia o que ia pelo bairro, quanto mais no mundo.
Fizera-se um bicho de toca, sentado na poltrona, olhando a televisão sem ver nada. Nos intervalos em que a cega não o chamava, para tratar de qualquer coisa. E quando ela chamava, ele ia. Como um cão. Agora via tudo muito claro e sentia-se outra vez raivoso. Como daquela vez, no escritório.
Um cão não morde no dono. E muito menos o mata, pensou. Mas ele não era cão. Era essa a diferença.
Levantou-se e apagou a TV.
Vamos sair, disse com doçura. Põe um vestido bonito. E quando ela perguntou: Aonde? disse apenas: É surpresa. Com a voz alegre como há muito tempo não tinha.
Vem, disse-lhe, atravessando a rua quando a luz ficou vermelha.
Pegou-lhe no braço e abandonou-a de repente, no meio da faixa, quando o carro se aproximou tanto que não seria mais possível, para ela, saltar.
Foi só ele quem saltou, no último instante, e se estatelou, são e salvo, no passeio, caindo de borco, batendo com a cara, ouvindo os gritos, o ruído confuso de vozes, o chiar dos travões do carro que parou ― tarde demais."
Teolinda Gersão , in 'A mulher que prendeu a chuva e outras histórias', Sudoeste Editora, Ld ,1.ª edição, Março de 2007
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