Eugénio Lisboa tem 89 anos. É a voz maior da critica literária e um dos mais singulares escritores portugueses. Construiu uma obra volumosa que se estende em vários géneros: Ensaio, Crónica, Diário , Memórias , Poesia . Todos são expoentes de um apurado sentido artístico.
Dotado de uma inteligência viva e de uma cultura invulgar soube tecer cada obra com o rigor , a clareza e a sabedoria que caracterizam as obras primas.
Dotado de uma inteligência viva e de uma cultura invulgar soube tecer cada obra com o rigor , a clareza e a sabedoria que caracterizam as obras primas.
Vário, intérprido e fecundo são esses os epítetos que fazem o título de um livro que, publicado em 2011, é uma homenagem a Eugénio Lisboa, promovida pelos colegas da Universidade de Aveiro e inúmeros amigos. Foi com essa fecundidade que publicou, entre 2012 e 2017 , sete volumes de Memórias: "Acta Est Fabula". Um magnum opus que não cessamos de reler.
Revisitámos o IV volume , no momento em que Eugénio Lisboa faz uma pausa para questionar a valia desta obra.
"Faço um intervalo, para me questionar sobre o valor futuro deste livro que agora escrevo. Tem-me dado muito trabalho – de memória, que tento activar, de pesquisa, de selecção, de redacção (e de dactilografia!) – mas constantemente me pergunto: “Para quê? Para quem? Para durar quanto tempo nas memórias em que pouse?” Não são perguntas retóricas ou “coquettes”, são profundamente sentidas. Olho à minha volta e vejo uma ordem de gente que não lê ou, pelo menos, não lê o que eu leio, não tem sensibilidade cultural nem inteligência afinada pela cultura (por “esta” cultura). Vendem-se a granel, nos supermercados, trambolhos ultrajantes, obscenamente anunciados em grandes parangonas, como os “grandes” do momento… A poesia, da Sophia para trás, não existe, e o romance do Eça parece de fazer dormir em pé gente que devora as inépcias literárias dos senhores do petit écran. A grandeza reside toda no “ser muito visto”. Aparecer ou não aparecer na televisão, eis a questão. Entre o José Rodrigues dos Santos e o Alexandre Quintanilha, a escolha é fácil. Grandes figuras da nossa cultura humanista e científica são desprezadas, ou esquecidas ou simplesmente ignoradas. Reportagens feitas na rua para se avaliar o grau de conhecimentos culturais, até de estudantes universitários, dão resultados de nos tirar o sono. Que gente é esta? Que escolas, que pais, que cidadãos são estes? Olho para as listas de classificação de filmes feitas pelos ”especialistas” de jornais de referência e eriçam-se-me os cabelos. Que valores privilegia esta gente? O que os comove? O que os move? Que gente é esta ou, antes, que ando eu a fazer, no meio desta gente? Que mundo se desenha para depois de mim? É a esse mundo que vou legar estas memórias de coisas, estas lições de coisas, estas emoções, ideias, encontros – que me tocaram? Mas tocará isto mais alguém? haverá, dentro de pouco tempo, alguma coisa de comum entre “os meus amores” e aquilo que, para “eles”, é importante? Paul Valéry previa que algumas das obras-primas da literatura dita clássica só conseguiriam, no futuro, ser entendidas, atafulhando de “notas explicativas” o fundo das páginas: por exemplo, uma emoção simples, como o sentimento de fraternidade entre soldados em combate, teria de ser “explicada”, numa época futura de “guerra de premir botões a distância”, em que se não vê nem o rosto do inimigo nem o do camarada que está do seu lado. Presumo que aquilo que deu alegria à minha vida – a descoberta dos livros de papel, do amor casto enquanto se não torna menos casto, o calor da casa materna, a saudade dos bons momentos de uma praia, mesmo sem dinheiro para um bolo, o gozo de um bom almoço de família, ao domingo, mesmo numa casa sem frigorífico, nem telefone, nem telefonia, sem recursos para se ir ao outro cinema da terra – tudo isto será, num futuro próximo ou mesmo já no presente, difícil de partilhar com o leitor, de “explicar”, mesmo com abundantes notas de pé de página… Dizia Baudelaire que tinha memórias que chegavam para mil anos. Eu também! Mas qual a valia delas? O criador de Peter Pan dizia que Deus nos deu memória para podermos ter rosas em Dezembro.
Seja então isso: as minhas memórias servir-me-ão, a mim, para ter rosas no Dezembro da minha vida. Já não é pouco. Mas fica a pergunta: e que ganham os outros com as rosas que só eu conheço? "
Eugénio Lisboa, in"Acta est fabula, Memórias -IV- Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo. Londres. (1976-1995)",Editora Opera Omnia, Outubro de 2014, pp. 195-197
Nota de Livres Pensantes
Por termos a certeza da resposta , podemos afirmar que também nós leitores ganharemos essas rosas , frescas e brilhantes, sempre que mergulharmos na leitura destas Memórias.
Bem haja, Eugénio Lisboa.
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