Nada nos prepara para Nápoles
Por Bruno Ramos
"Nápoles agarra-nos pelas
entranhas e cola-se a todos os sentidos com tremenda ferocidade. A meio de
Agosto, o calor e a humidade acentuam esse abraço visceral da cidade, que faz
cair sobre nós uma realidade sem concessões feita de ruas intrincadas, uma
expressividade física que grita em todas as esquinas, um ritmo frenético que
nos arremessa numa vertigem para logo nos amparar com a sua integridade e
maneira muito própria de ser. É um organismo vivo que pulsa continuamente.Vamos
já dizer as coisas como são: Nápoles
não é o protótipo da cidade turística de postal. É feia,
suja a roçar o infecto, esconsa, labiríntica e escura. Está também longe, muito
longe, de encabeçar a lista de destinos facilmente visitáveis: é complicada,
caótica, bruta e disfuncional. E no entanto transpira uma verdade de que todos,
sem excepção, parecem comungar. Estende-nos uma genuína bondade do cimo da sua
altivez só alcançável àqueles que nada escondem sobre o que são e para o que
ali estão. Por debaixo do sarro assoma uma elegância e nobreza antigas. No meio
das suas ruas de portas abertas acolhe-nos uma beleza despudorada.
Esta também não é a clássica
reportagem que informa sobre os melhores hotéis, restaurantes e bares da cidade
para turistas ready-made.
Foi uma viagem de orçamento controlado, por isso alugámos um pequeno
apartamento e poupámos nas refeições fora. Ao contrário de constituir uma
lacuna, tanto para umas férias de Verão como para um artigo de viagens, acabou
por ser o que nos abriu as portas de Nápoles e do seu dia-a-dia. Percebemos
isso logo no primeiro momento: saímos de manhã para abastecer a casa de
mantimentos e já o calor e a humidade abafavam a cidade, o clamor do trânsito
zumbia por todos os lados e a fauna napolitana vociferava a plenos pulmões.
Em Nápoles, há nichos de santos por todo o lado |
Devemos
ter parecido perdidos e confusos com aquele primeiro impacto. De tal maneira
que um senhor dos seus cinquenta e tal anos deu por nós e, com aquele jeito
italiano de falar com gestos, que no caso dos napolitanos veste uma ginga de
permanente desafio, adoptou-nos com esta simples frase: “Ma, cosa stai cercando? [O
que estão à procura]?” Tomaso di Borbone, assim se apresentou (mais tarde
viemos a encontrá-lo novamente e explicou-nos a origem do seu nome, que se
mistura com a história da cidade) e assim também nos entregou o cartão de
visita dos napolitanos: curiosos, disponíveis, orgulhosos e, principalmente,
sociáveis. “I napoletani
hanno un grande cuore! [Os napolitanos têm um grande coração!]”,
rematou ele este primeiro encontro, batendo no lado esquerdo do peito com
indisfarçável orgulho.
Feios,
porcos e bons
Logo ali,
além de ficarmos a saber onde comprar a melhor fruta e o peixe mais fresco,
percebemos que estávamos a residir em La
Sanità, considerado pela intelligentsia dos operadores
turísticos um dos
bairros perigosos e a evitar, numa cidade onde o alarme
generalizado relativo à segurança ultrapassa claramente, e até de forma
injusta, a realidade.
Futebol, Deus e Maradona |
Em La
Sanità embrenhámo-nos nos seus ritmos, conhecemos os vendedores e metemos
conversa com os que se demoravam na rua no tal dolce far niente. Estabelecemos a nossa
própria vida de bairro com a vizinhança. Ainda que por pouco tempo, fizemos
parte de tudo aquilo. Em Nápoles é fácil que assim seja, pois parece que toda a
cidade é habitada por uma única e alargada família. Todos falam e exprimem-se
da mesma maneira. Nápoles é pobre e é popular.
A rua é
onde tudo acontece e as casas são a sua extensão,
sempre de portas abertas, numa proximidade que tanto raia a promiscuidade como
nos faz sentir gratos e reverentes perante a ternura dos quadros que
vislumbramos de soslaio. Os napolitanos não têm pejo nenhum em fazer-se notar e
partilham com a comunidade os momentos mais importantes da vida. Afixam
cartazes quando alguém morre e colocam fotografias dos falecidos nos inúmeros
nichos religiosos kitsch espalhados
pela cidade. Lançam valentes fogos-de-artifício de cada vez que alguém festeja
um aniversário. Comunicam e insultam-se com papelinhos afixados no interior dos
prédios e na rua. Penduram gigantes chupetas e laçarotes de peluche nos portões
para celebrar o nascimento de mais um filho.
Na
relação com as crianças – e há muitas! – percebe-se o treino familiar e
comunitário de todo e qualquer napolitano. É também onde mais se revela a sua
bondade. O carinho, o deslumbramento e o cuidado que todos partilham pelas
crianças, omissos dos tiques exteriores de autoridade paternal ou até de
exagerados protocolos de bom comportamento, fazem dos putos uns
napolitanozinhos em potência, crescendo num caldo cultural que não poderia
fazer deles outra coisa que não veri
napoletani.
Salvar o
colapso com fita-cola
Uma parte
fundamental do treino para se vir a ser um verdadeiro napolitano é dominar uma scooter - diga-se, em
abono da verdade, que devem ultrapassar largamente em número a população. Vimos
crianças que ainda nem sequer gatinham a serem transportadas num braço enquanto
o outro segura o guiador. É comum verem-se famílias inteiras de um lado para o
outro: o pai à frente, o filho mais pequeno entalado entre ele e a mãe, e o
mais velho atrás agarrado a esta. Mais frequente ainda é ver crianças de chucha
na boca, em pé agarradas ao guiador e encostadas ao banco, enquanto o condutor
ziguezagueia pelo trânsito. Há ainda a versão que transporta cães ou bandejas
ou três e quatro caixas de pizzas equilibradas
num braço. E, finalmente, a scooter de
carga, em que mal se percebem as duas rodas por baixo das caixas e sacos. Tudo
isto em vertiginosa velocidade, sem capacete, a falar ao telemóvel ou
tagarelando de uma mota para outra. É por isso normalíssimo verem-se crianças
de 12, 11 ou mesmo dez anos a guiarem estas motas com natural destreza - as scooters são uma
extensão dos seus próprios corpos.
O
trânsito em Nápoles é uma atracção turística de pleno direito, muito
por causa das scooters que
surgem de todos os lados (o único conselho que o funcionário do rent-a-car nos deu
antes de nos desejar boa sorte foi simplesmente “olhem sempre para a direita”),
mas também porque é uma manifestação da espontânea anarquia da cidade. Apesar
disso, ou talvez por causa disso, não vimos nenhum engarrafamento ou acidente.
Todos buzinam mas ninguém discute. Não há regras, mas todos respeitam o
desrespeito. Ninguém liga às faixas de rodagem, as scooters não querem
saber de semáforos ou sentidos proibidos e, se por acaso foste o primeiro a
enfiar o carro naquele espacinho passando à frente de toda a gente, que bom
para ti, devia ter sido eu a ver isso primeiro. O que em Portugal é considerado
chico-espertice, em Nápoles é uma instituição tácita. Resta dizer que, quase de
forma incongruente, há uma enorme condescendência para com os peões. Embora até
estes tenham de se fazer à vida e atirar-se à estrada se não quiserem ficar o
dia todo à espera de atravessar a rua, mesmo estando especados em cima de uma
passadeira.
Se é
certo que não presenciámos nenhum acidente de trânsito, também é verdade que o
estado do parque automóvel é revelador do estilo de condução dos napolitanos e
da dificuldade de o fazerem naquelas intrincadas ruas. Não há um único carro ou
mota sem mossas, raspões, um retrovisor pendurado, fios descarnados e outros
componentes à beira do colapso. E assim seria, não fosse a fita-cola. Tudo ali
se resolve com ela. Aliás, a própria cidade passa uma sensação periclitante e
sustém-se não se percebe bem como. Com os seus prédios de arquitectura
decadente, teias de fios emaranhados, ruas tão estreitas onde dificilmente
entra o sol, e paredes que ameaçam ruir a qualquer o momento, toda ela só se
mantém graças a uma inventiva engenhosidade: estendais amarrados de uma varanda
à outra, rodas de bicicleta a fazer de roldanas puxando baldes com compras,
vassouras armazenadas nas paredes exteriores e outras serventias seguras com
fita-cola, sempre ela, dizem bem da panóplia de expedientes a que os
napolitanos recorrem para resolver qualquer situação. E funciona!
Um golfo,
um vulcão, seiscentas igrejas
Geograficamente,
há dois factores que sempre marcaram a história da cidade: o golfo de Nápoles e o Vesúvio. Este
ficou dramaticamente famoso por em 79 a.C., após uma violenta explosão, ter
soterrado Pompeia, Herculano e outras vilas romanas circundantes sob cinzas
incandescentes. Visitámos Pompeia à noite e a experiência é marcante, não tanto
pela atracção voyeurista da tragédia que ali aconteceu, mas antes porque
caminhamos por entre as ruas ainda calcetadas, casas, templos, lojas e outros
locais que faziam da cidade o que ela era. É muito fácil imaginarmo-nos a fazer
parte desse dia-a-dia. Se esquecermos que o Vesúvio é ainda um vulcão activo e
um dos mais imprevisíveis (nesse aspecto pior do que o Etna, na Sicília), olhar
Nápoles a partir do seu largo horizonte de terra em meia-lua por onde entram,
calmas e cálidas, as águas do mar Tirreno e sobre as quais se ergue como um
sentinela o imponente vulcão, já faz valer a viagem. É obrigatório descer ao
fim do dia até à beira-mar de Chiaia e aí ficar a beber uma cerveja, Moretti,
de preferência, enquanto o sol desliza no horizonte... e depois mergulhar ali
mesmo no porto, ainda que só tenhamos trazido boxers vestidos.
Compreende-se,
então, que a vantajosa localização da cidade tenha favorecido a fixação de
povos e civilizações aqui desde muito cedo. Nápoles começou por ser grega e
depois romana. Essa influência é ainda bastante evidente no desenho urbano da
cidade. No centro histórico, os Decumani Maggiore e Inferiore são ruas que vêm
da costa e irrompem rectilíneas pela cidade adentro. Uma delas, conhecida como
Spaccanapoli (literalmente “Divide Nápoles”), é uma rua imensa e vertiginosa.
São interligadas por uma numerosa teia de pequenas ruas chamadas Cardini.
Percebe-se também, principalmente depois de visitar a costa Amalfitana, que os
romanos encarassem esta localização maioritariamente como um local de ócio, aí
instalando moradias para os seus momentos de prazer. Talvez por isso, no
fabuloso Museu Arqueológico Nacional, além da estatuária e dos bem preservados
mosaicos e frescos resgatados às cinzas de Pompeia e Herculano, exista também
uma rica e variada colecção de artefactos e pinturas eróticas, isoladas na
Sala do Segredo.
O centro
histórico, Património da Humanidade da UNESCO, é o
epicentro turístico por excelência, e onde a gincana se torna quase um acto de
sobrevivência para nos desviarmos das scooters,
da multidão e do vibrante comércio. É aqui que estão alguns dos monumentos mais
emblemáticos de Nápoles, principalmente igrejas – houve quem nos asseverasse
que a cidade tem 600 igrejas, o que, carecendo de comprovação, nos pareceu
bastante plausível, tal é a religiosidade das suas gentes – e onde a vida
nocturna se concentra à volta da Piazza Bellini.
Piazza Bellini |
O bairro
espanhol, outro dos situ
non grato à noite para qualquer guia de viagem, merece bem uma
visita sem destino ou mapa na mão, não só porque se torna praticamente impossível
destrinçar a apertada malha urbana, mas porque o que verdadeiramente importa em
Nápoles é deixarmo-nos levar ao sabor do espanto. E ele torna-se estranhamente
constrangedor quando percebemos que este bairro, dos mais pobres da cidade,
vive paredes meias com a Via Toledo, onde estão instaladas algumas das lojas de
marca mais caras. Desembocar subitamente de uma quelha recolhida e íntima do
bairro espanhol para o mar de glamour e
cacarejo social desta via exige um exercício de estômago que dificilmente se
apazigua. Ajuda continuar a descer essa rua e vermo-nos surpreendentemente
desafogados na enorme Praça do Plebiscito, aceitando então que Nápoles também é
isto, esta crueza bruta de contrastes que nos deixa rendidos ao seu charme de
ser outra coisa que nunca vivemos até aqui termos chegado.
Praça do Plebiscito |
Futebol,
Deus e Maradona
Ao fim do
terceiro dia a dizermos que éramos portugueses sem nunca surgir o maior
desbloqueador internacional de conversas – Cristiano Ronaldo – indicava que
algo estava podre no reino napolitano. Foi só quando vimos as paredes
garatujadas com impropérios cabeludos à Juventus e rolos de papel higiénico
decorados com a cara de CR7 é que percebemos de onde vinha o cheiro. O ódio à
Juventus só é ultrapassado pelo amor ao Nápoles e a Maradona, que, tal como
Deus e os santos, merece inúmeros nichos de verdadeira devoção religiosa
espalhados um pouco por todo o lado.
A que horas fecha a
praia A
costa Amalfitana merece todos os elogios que lhe possamos dispensar, pela sua
íngreme beleza, pelo permanente namoro entre o mar e o céu, pelo prazer de
conduzir nas suas serpenteantes estradas costeiras, enfim, pela promessa de
praias recônditas e únicas. E o problema é mesmo esse: fica-se maioritariamente
pela promessa. Em Agosto o trânsito é impraticável, o estacionamento
inexistente, tudo se paga, até a entrada nas praias, e há mesmo aquelas que têm
horário de abertura e fecho. Restou-nos um daqueles momentos em que a divina
providência iluminou um casal carregando toalhas de praia que saltava um muro
no meio da estrada. Foi encostar o carro de imediato, saltar o mesmo muro e
descer muitas dezenas de degraus até ao paraíso. Não, não se pagava. E não,
também não vamos
dizer qual o nome dessa praia, cada um tem de procurar e
merecer o seu próprio momento de sonho
O favor
Só falta
mesmo falar do elefante na sala. Quando toca a Nápoles, é impossível não pensar
imediatamente na Camorra, nome dado à máfia na região de Campania. Escondida a
violência e remetida ao folclore no imaginário de qualquer não italiano, o que
se sente de forma subliminar nas conversas com os napolitanos é uma tendência
indelével e inata para uma hierarquia baseada no favor. Até o arrumador de
carros à beira de uma praia, que nos arranjou um lugar e nos deu algumas dicas,
fez questão de demonstrar o seu ascendente sobre nós fazendo-nos anunciar de
forma bem audível aos rapazes que guardavam a concessão da praia: “Ó fulano,
está tudo bem, estes estão comigo!”, disse-lhes. São estas e outras pequenas solicitudes,
tão espontâneas naquela maneira de evidenciar o domínio sobre alguém ou uma
situação, que fazem subentender onde se funda a pirâmide."Bruno Ramos(Texto
e Fotos), Público, 09.02.2019
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