Por J.C. Guimarães
"Há cerca de quatro anos tenho procurado participar de oficinas literárias. Em parte para encontrar pessoas com as quais me identifico e estabelecer relações, em parte para aprender a escrever. Inscrevo-me nelas sobretudo para descobrir qual o segredo dos ministrantes para produzir livros de sucesso; escritores como Marcelo Mirisola, Márcia Tiburi, Sérgio Rodrigues e Miguel Sanches Neto. O que há de melhor.
Todos eles propiciam aos participantes boas gargalhadas, horas e horas de seu convívio, muita satisfação, além de partilhar deliciosos mexericos pessoais. São artistas, são irreverentes, são instigantes, ao passo que o público é formado inteiramente por admiradores, sejam também escritores ou apenas curiosos. E os seus ídolos até ministram, cada um à sua maneira, visões particulares sobre o que é literatura. Mas, no fim, nunca se obtém a resposta para a pergunta fundamental: qual o segredo para escrever ficção? Pelo menos não a obtive em oficinas, senão de maneira difusa, subliminar, ao analisar as falas, colá-las e extrair uma visão de conjunto. Somente quando volto aos livros é que fatalmente encontro a resposta para aquela questão, escrita com todas as letras.
Olho a minha estante e namoro as lombadas. Guimarães Rosa. Virgínia Wolf. Proust. Lobo Antunes. Rulfo. Cony. Tolstói. Stendhal. A única resposta satisfatória que encontrei até hoje, mesmo nos livros, é que não existem fórmulas, ou antes: cada escritor junta as coisas e cria a sua própria fórmula. Cada obra bem realizada serve de parâmetro a si mesma. Tem vida própria. Como espelho da vida, a literatura — a arte em geral — é plástica, dinâmica, pulsante. Então, a rigor, porque pedimos uma regra? Há autores que cultivam o enredo, outros o abolem, outros misturam prosa e poesia, outros enfiam tratados ensaísticos na ficção, outros narram aventuras, outros preferem o fluxo da consciência, outros combinam as duas possibilidades, e por aí vai. Não há limites para a imaginação. E não é que tudo isso pode ser aprendido.
Na verdade a questão fundamental, e bem mais difícil, é outra: Escrever Bem. Ou escreve bem ou esquece. Nenhuma fórmula salva um livro mal escrito. Aquele calhamaço que tem guardado no computador não significa nada, se tiver volume, ou estrutura, ou uma história interessante, mas se não se destacar por causa de uma coisa chamada dicção. É tão importante quanto a afinação, para o cantor. Quero dizer que um livro pode ser inteiramente escrito sem agradar. As palavras não nos apanham, não nos seduzem, não nos emocionam ou não nos deixam perplexos, porque estão desafinadas. Como se o texto fosse tão comum que não demandasse um escritor, com seu talento e arte, para escrevê-lo. Ao invés de dizerem algo, as palavras apenas se sucedem. Sem controle da linguagem (que afinal é o instrumento do escritor) um livro de contos, novela ou romance não se salva. Fracassa.
A menos que se trate de um génio consumado, antes de escrever todo aspirante deveria primeiro aprender a ler (isso já foi martelado milhões de vezes!). É por isso que, depois das oficinas, eu sempre retorno aos livros, à procura daquela resposta. Um trecho lido nas entrelinhas vale mais do que uma obra mal lida, na íntegra. Então, é preciso sentir as palavras, entender que são escolhidas a dedo (daí o inferno do tradutor), ouvir as frases — ou será que uma voz afinada não requer um ouvido apurado? Todo grande escritor pode também escrever grandes disparates. Mas o seu esforço permanente é fazer com que as suas palavras tenham o máximo de exactidão possível, uma a uma. Palavra por palavra, frase por frase, período por período, até terminar uma história inteira do tamanho de “Guerra e Paz”. Não é apenas ter o que contar e contar: é como contar. Tão importante quanto a história é a linguagem, porque qualquer a história, para um poeta, é um pretexto para o exercício da palavra.
Qualquer técnica pode ser repassada e aprendida na escola ou em oficinas. Mas isso por si só não cria um escritor, se o aprendiz não tiver o ouvido preparado para escutar. Ler trechos de romances como se lê estrofes de um poema, procurando ressonâncias, significados ocultos, nas entrelinhas. Porque o oculto é que conta, não o óbvio ou o aparente. Mesmo um Graciliano e um Hemingway não são óbvios. Por isso muito se perde quando não se lê adequadamente. Pode-se compreender uma história, mas o que se aprendeu com a sua linguagem? Quantos parágrafos de J.M. Coetzee ou de García Márquez não nos deixam de queixo caído, de tamanha precisão das palavras! É isso! Não se deve contentar com a primeira frase, o primeiro período, apenas porque está sintacticamente coerente. E a semântica? Será que disse tudo o que queria, da forma que queria? Se a resposta é “não”, reescreva. E ouça!
Enfim, todas as técnicas podem mudar ou são descartáveis. Pode-se abolir a aventura. Pode-se abolir o fluxo de consciência. Pode-se abolir o diálogo entre os personagens. Pode-se abolir a divisão por capítulos. Pode-se abolir a voz omnisciente e contar versões conflituantes. Pode-se abolir a descrição. Pode-se abolir o espaço, o tempo. Pode-se abolir o enredo. Aprender tudo isso é de importância secundária. A única coisa que não pode ser abolida, em tempo algum, em lugar nenhum, é a linguagem bem escrita, porque ela é o gene fundamental da ficção. Sua importância para o sucesso, sim — é absoluta."
J.C. Guimarães- Ensaios, Revista Bula, Brasil
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