PARA LER EM FORMA INTERROGATIVA
Viste
verdadeiramente viste
a neve, os astros, os passos aveludados da brisa…
Tocaste,
de verdade tocaste
o prato, o pão, a face dessa mulher que tanto amas…
Viveste
como um golpe frontal,
o instante, o arfar, a queda, a fuga…
Soubeste
com cada poro da pele, soubeste
que teus olhos, tuas mãos, teu sexo, teu brando coração,
teria que tirá-los
teria que chorá-los
teria que inventá-los outra vez.
Júlio Cortázar, in “De Presencia (1938) “.Tradução: Elson Fróes, em Torre de Babel 6
Tocadora de Palavras
Ó leve feiticeira de palavras
teu gosto de escrever, se o beijasse,
não beijando as mãos que nelas lavras,
era como se, partindo, eu ficasse.
O gesto puro que em ti havia
o perfil rumoroso de recusa
o traço doce de melancolia
que puro obedece ao rigor da musa,
não poder eu prendê-los, tê-los meus,
não poder eu tocá-los, não tocando,
enquanto me vigiam olhos teus.
teu gesto, feiticeira, vai passando:
beijo-lhe a passagem e os desvãos,
ouvindo a música das tuas mãos.
Eugénio Lisboa, in A Matéria Intensa, Editora Peregrinação, 1985
Ó leve feiticeira de palavras
teu gosto de escrever, se o beijasse,
não beijando as mãos que nelas lavras,
era como se, partindo, eu ficasse.
O gesto puro que em ti havia
o perfil rumoroso de recusa
o traço doce de melancolia
que puro obedece ao rigor da musa,
não poder eu prendê-los, tê-los meus,
não poder eu tocá-los, não tocando,
enquanto me vigiam olhos teus.
teu gesto, feiticeira, vai passando:
beijo-lhe a passagem e os desvãos,
ouvindo a música das tuas mãos.
Eugénio Lisboa, in A Matéria Intensa, Editora Peregrinação, 1985
Frémito do meu corpo a procurar-te
Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doído anseio dos meus braços a abraçar-te,
Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!
E vejo-te tão longe! Sinto tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me amas...
E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...
Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas", Maison Editora
no coração da noite
debruço-me sobre ti e interrogo
a sombra da tua pele.
Pergunto com o olhar, depois
os lábios movem-se,
toco-te, todo um ciclo
recomeça.
Que gesso aprisiona o sangue
que nos morde? Que navio espero
no final dos meus gestos?
O importante é saber
onde dói.
Egito Gonçalves, in " Fósforo na palha", Publicações Dom Quixote, Abril de 1970
XIX Amálgama
Contempla-te,
entra, desnuda-te no arco-íris:
penetra
no interior de uma gota de água.
António Osório, in Décima Aurora , Na Regra do Jogo, 1982
A tua sombra
A terra me sabes,
à luz das manhãs
lisas de verão,
ao calor das pedras
achadas nas dunas.
Apetece cantar
nos gomos, nas luas,
nas colinas breves
do teu corpo nu;
cantar ou correr
na água, na seiva
dos ombros, dos braços,
no azul secreto
da concha das pernas.
Ó sabor eterno,
ó mortal sabor
das fontes da terra,
materno, solar,
rumor de alegria:
apetece morrer,
morrer ou cantar.
Eugénio de Andrade, in Mar de Setembro, Limiar, Actividades gráficas, Março 1981
De amor nada mais resta que um Outubro
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
Natália Correia, in Poesia Completa, Publicações Dom Quixote
debruço-me sobre ti e interrogo
a sombra da tua pele.
Pergunto com o olhar, depois
os lábios movem-se,
toco-te, todo um ciclo
recomeça.
Que gesso aprisiona o sangue
que nos morde? Que navio espero
no final dos meus gestos?
O importante é saber
onde dói.
Egito Gonçalves, in " Fósforo na palha", Publicações Dom Quixote, Abril de 1970
XIX Amálgama
Contempla-te,
entra, desnuda-te no arco-íris:
penetra
no interior de uma gota de água.
António Osório, in Décima Aurora , Na Regra do Jogo, 1982
A tua sombra
A terra me sabes,
à luz das manhãs
lisas de verão,
ao calor das pedras
achadas nas dunas.
Apetece cantar
nos gomos, nas luas,
nas colinas breves
do teu corpo nu;
cantar ou correr
na água, na seiva
dos ombros, dos braços,
no azul secreto
da concha das pernas.
Ó sabor eterno,
ó mortal sabor
das fontes da terra,
materno, solar,
rumor de alegria:
apetece morrer,
morrer ou cantar.
Eugénio de Andrade, in Mar de Setembro, Limiar, Actividades gráficas, Março 1981
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
Natália Correia, in Poesia Completa, Publicações Dom Quixote
PRESIDIO
Nem todo o
corpo é carne… Não, nem todo.
Que dizer
do pescoço, às vezes mármore,
às vezes
linho, lago, tronco de árvore,
nuvem ou
ave, ao tacto sempre pouco?…
E o ventre,
inconsistente como o lodo?…
E o morno
gradeamento dos teus braços?
Não. Meu
amor… Nem todo o corpo é carne:
é também
água, terra, vento, fogo…
É sobretudo
sombra à despedida;
onda de
pedra em cada reencontro;
no parque
da memória o fugidio
vulto da
primavera em pleno Outono…
Nem só de
carne é feito este presídio,
pois no teu
corpo existe o mundo todo!
David Mourão-Ferreira, in Lira
de Bolso, Publicações Dom Quixote
Meu Amor!
Para sempre há agora em cada veia
um barco nocturno com festa a bordo
um grande tumulto azul no coração
do mar
para sempre sei agora mudar
no teu olhar a luz das estações acolher
húmidas asas aos teus cabelos quando já
imóveis nossas mãos marginam a fadiga
para sempre agora o sol se ergue
do horizonte ainda escurecendo
a tua nuca se confunde no sonho
com o rumor da tua respiração.
Sebastião Alba, Amor confuso ,in O ritmo do presságio, Edições 70
Para sempre há agora em cada veia
um barco nocturno com festa a bordo
um grande tumulto azul no coração
do mar
para sempre sei agora mudar
no teu olhar a luz das estações acolher
húmidas asas aos teus cabelos quando já
imóveis nossas mãos marginam a fadiga
para sempre agora o sol se ergue
do horizonte ainda escurecendo
a tua nuca se confunde no sonho
com o rumor da tua respiração.
Sebastião Alba, Amor confuso ,in O ritmo do presságio, Edições 70
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