Mar
"A primeira vez que vi o mar eu
não estava sozinho. Estava no meio de um bando enorme de meninos. Nós tínhamos
viajado para ver o mar. No meio de nós havia apenas um menino que já o tinha
visto. Ele nos contava que havia três espécies de mar: o mar mesmo, a maré, que
e menor que o mar, e a marola, que é menor que a maré. Logo a gente fazia ideia
de um lago enorme e duas lagoas. Mas o menino explicava que não. O mar entrava
pela maré e a maré entrava pela marola. A marola vinha e voltava. A maré enchia
e vazava. O mar às vezes tinha espuma e às vezes não tinha. Isso perturbava
ainda mais a imagem.
Três lagoas mexendo, esvaziando e
enchendo, com uns rios no meio, às vezes uma porção de espumas, tudo isso muito
salgado, azul, com ventos.
Fomos ver o mar. Era de manhã, fazia
sol. De repente houve um grito o mar! Era qualquer coisa de larga, de
inesperado. Estava bem verde perto da terra, e mais longe estava azul. Nós
todos gritamos, numa gritaria infernal, e saímos correndo para o lado do mar.
As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. Ondas grandes,
cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração
apressada, vendo o mar...
Depois o mar entrou na minha infância
e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, os seus ventos,
suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza. Um menino
de calças curtas, pernas queimadas pelo sol, cabelos cheios de sal, chapéu de
palha. Um menino que pescava e que passava horas e horas dentro da canoa, longe
da terra, atrás de uma bobagem qualquer - como aquela caravela de franjas azuis
que boiava e afundava e que, afinal, queimou a sua mão... Um rapaz de catorze
ou quinze anos que nas noites de lua cheia, quando a maré baixa e descobre tudo
e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa roda, amar
perdidamente, eternamente, alguém que passava pelo areal branco e dava
boa-noite... Que andava longas horas pela praia infinita para catar conchas e
búzios crespos e conversava com os pescadores que consertavam as redes. Um
menino que levava na canoa um pedaço de pão e um livro, e voltava sem estudar
nada, com vontade de dizer uma porção de coisas que não sabia dizer - que ainda
não sabe dizer.
Mar maior que a terra, mar do primeiro
amor, mar dos pobres pescadores maratimbas, mar das cantigas do catambá, mar
das festas, mar terrível daquela marte que nos assustou, mar das tempestades de
repente, mar do alto e mar da praia, mar de pedra e mar do mangue... A primeira
vez que sai sozinho numa canoa parecia ter montado num cavalo bravo e bom,
senti força e perigo, senti orgulho de embicar numa onda um segundo antes da
arrebentação. A primeira vez que estive quase morrendo afogado, quando a água
batia na minha cana e a corrente do "arrieiro" me puxava para fora,
não gritei nem fiz gestas de socorro; lutei sozinho, cresci dentro de mim
mesmo. Mar suave e oleoso, lambendo o
batelão. Mar dos peixes estranhos, mar virando a canoa, mar das pescarias
nocturnas de camarão para isca. Mar diário e enorme, ocupando toda a vida, uma
vida de bamboleio de canoa, de paciência, de força, de sacrifício sem
finalidade, de perigo sem sentido, de lirismo, de energia; grande e perigoso
mar fabricando um homem...
Este homem esqueceu, grande mar, muita
coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ara aflita, ora
chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso que audacioso,
incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se
gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa mas há muita coisa que ele
aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele,
no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um
dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso,
como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as
grandes ondas que arrebentavam - um punhado de meninos vendo pela primeira vez
o mar...
Julho, 1938
Rubem Braga, in “200
crónicas escolhidas”, Rio de Janeiro, Record, 1986.
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