Cândida Ventura |
Cândida Ventura morreu a 16 de Dezembro de 2015. São passados dois meses. Pretexto para a recordar e deixar que as suas memórias nos lembrem quantos lutaram por um mundo melhor. Ideais , ideologias que alimentaram porque se recusavam a aceitar a tirania, a mediocridade, a pobreza e a falta de futuro. A utopia abriu-lhes as portas de um trabalho que durou uma vida e que não foi ainda terminado.
O mundo continua atormentadamente desigual.
Cândida Ventura, mulher culta e de singular coragem, escreveu, em livro, as memórias de um tempo que a fez acreditar num socialismo fraterno, justo e digno onde o Homem fosse o princípio e o objectivo primeiro.
Transcrevemos um dos capítulos desse livro, O «Socialismo» que eu vivi, para que a memória nunca se apague.
À Cândida, com o nosso agradecimento e a infinda saudade.
Por Cândida Ventura
“Os anos 40 – o que denomino por belle époque – foram o tempo do sonho enleado na mentira que tomávamos por verdade. Tudo nos aparecia como um irreversível caminho para a vitória. A guerra fora ganha, sobretudo pela União Soviética. Vinte milhões de russos deram a vida pela nossa causa. A URSS “libertara” os países de Leste. O amor e a admiração pela URSS aumentava e Estaline era, para todos nós, “ o chefe genial”, “ o grande timoneiro do movimento comunista internacional”, o que “ tinha dirigido a resistência e as vitórias dos povos soviéticos”, “ o chefe supremo do glorioso exército soviético que tinha vencido Hitler”. Moscovo continuava a ser a estrada cintilante onde os nossos pensamentos convergiam e sonhavam um dia poder visitar, não com a intenção de compreender ou descobrir a realidade, mas para confirmar tudo aquilo em que acreditávamos e para alimentar a nossa fé. O fim da guerra foi o da certeza de que estávamos no caminho justo : o aparelho clandestino estava consolidado. Através de grandes dificuldades era o tempo da fraternidade e da certeza.
Ao pensar nestes tempos sinto que cometemos uma grande injustiça. Não é só o facto de a imprensa PC nunca ter falado nas vítimas dos outros países, nem no papel que a França, a Inglaterra e os Estados Unidos tiveram na vitória, mas é sobretudo em relação aos anónimos desta luta , sem cujo apoio pouco ou nada poderíamos ter feito. E além dos anónimos, tantos outros tão injustamente esquecidos , alguns injuriados na imprensa clandestina do PC.
Quero lembrar Irene Lisboa, de quem hoje ninguém fala. Encontrava-se muito connosco. Era uma mulher de muito valor, interessada no convívio com a juventude, tal como Aniceto Monteiro, Valadares e outros intelectuais como Agostinho da Silva, Huertas Lobo, ajudando-nos na nossa actividade cultural nas sociedades recreativas , no Poço do Bispo, em Alcântara, em Campo de Ourique, por exemplo.
Bento de Jesus Caraça e António Sérgio exerceram grande influência na minha geração. Embora Caraça pretendesse ser o mentor da juventude, penso que António Sérgio exerceu uma maior influência. Caraça tinha um ar modesto , mas por vezes distante. Sérgio não. Sérgio sabia abeirar-se da juventude. Procurava-nos, falava connosco, ouvia-nos. Caraça esperava que o procurassem e era ele quem falava. António Sérgio reforçou em mim o gosto pelo estudo e por tudo o que estava ligado à pessoa humana.
O nosso trabalho clandestino não se apoiava apenas nos membros legais do partido, os anónimos também fizeram parte desta luta mas deles não se fala.
Quantas e quantas vezes , pessoas sem partido, desconhecendo que éramos clandestinos ou membros do PC, nos ajudaram!
Dos sem-partido , dos antifascistas anónimos não posso deixar de citar um exemplo. Um dia fui a casa de um casal. Ele, membro do PC; ela, uma simples democrata. Disse-lhe que precisava de roupa. Levou-me junto de um armário e abrindo-o, disse–me :” Escolhe o que vires que vos seja útil.”
Quantas e quantas vezes, ao longo da minha vida, pensei na Natércia, mulher a que alguns funcionários se referiam como sendo uma “fútil” e cujos sentimentos valiam mais do que a “coragem” exibida por aqueles que a achavam “fútil”…
Os anos de clandestinidade, forçados a não utilizar os nossos nomes e a não fixar os das pessoas com quem mantínhamos contacto, impedem-me de referir os nomes de todos os anónimos antifascistas que conheci.
Mas não posso deixar de mencionar, porque, não só ao escrever este livro e ao rememorar todos os acontecimentos da minha vida, as suas imagens me apareceram, mas também porque, ao longo da minha vida, sempre estiveram presentes – as “amigas” que viveram comigo em “ casas do Partido” e que muito me ajudaram no meu trabalho e uma, Maria Salvador - a melhor amiga e irmã – que me ajudou no outro aspecto da minha vida : o de mãe. Maria Salvador, que recordo e sempre recordei com muita saudade e estima. E as duas “ amigas", cujos nomes não recordo, que passaram por minha mãe e que foram efectivamente mães. E os outros anónimos, membros legais, como a “Nina”, a nossa Nina, mãe do Rui e Gil Perdigão; o Jorge e a Alcina Delgado, enfim tantos e tantos outros.
Sem a ajuda das Marias, dos Jorges, das Ninas, sem a ajuda dos anónimos antifascistas e do nosso povo, não seria possível o trabalho clandestino.”
Cândida Ventura, in O «Socialismo» que eu vivi, 3ª edição, Editora Bizâncio, Lisboa, Março de 2012, pp. 39-41
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