quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Por entre as ruínas

Holland House,em Londres, bombardeada em 22 de Outubro de 1940
                                                              Apesar das ruínas e da morte,
                                                             Onde sempre acabou cada ilusão,
                                                          A força dos meus sonhos é tão forte,
                                                           Que de tudo renasce a exaltação
                                                     E nunca as minhas mãos ficam vazias. 
                                                        Sophia de Mello Breyner Andresen


«Mas o que é afinal esta emoção?» pergunta Rebecca West depois de ler o Rei Lear
«Qual é o impacto de obras de arte de alta qualidade na minha vida, que me faz sentir tão feliz?» Não o sabemos: lemos com ignorância. Lemos em movimentos lentos e longos, como se andássemos à deriva no espaço, sem peso. Lemos cheios de preconceito e malevolência. Lemos com generosidade, procurando desculpas para o texto, preenchendo lacunas, remediando erros. E, por vezes, quando temos sorte, lemos com a respiração sustida, com um estremecimento, como numa assombração, como se de súbito a memória tivesse sido resgatada de um lugar fundo dentro de nós — o reconhecimento de algo que não sabíamos existir em nós ou de algo que vagamente sentíramos como uma chama bruxuleante ou uma sombra, cuja forma fantasmagórica se configura e regressa a nós antes de podermos ver do que se trata, deixando-nos mais velhos e mais sábios.
Esta leitura tem uma imagem. Uma fotografia tirada em 1940, durante um bombardeamento de Londres na Segunda Guerra Mundial, mostra os restos de uma biblioteca destruída. Através do telhado desfeito podem avistar-se edifícios fantasmagóricos e no centro da biblioteca encontra-se um monte de traves e mobiliário estragado. Mas as estantes mantiveram-se firmes e os livros que nelas se alinham parecem incólumes. Encontram-se três homens entre os destroços: um deles, como se hesitando que livro escolher, aparenta estar a ler os títulos nas lombadas; um outro, de óculos, está a pegar num livro; o terceiro está a ler um livro aberto nas mãos. Não estão a voltar as costas à guerra nem a ignorar a destruição que ela provoca. Não estão a escolher livros em vez da vida lá fora. Estão a tentar persistir contra todas as expectativas; estão a afirmar o direito comum de fazer perguntas; estão a tentar encontrar mais uma vez — por entre as ruínas, no reconhecimento surpreendente que a leitura por vezes proporciona — uma compreensão.»
Albert Manguel, in Uma História da Leitura , Editora Presença, Lisboa, 1998

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