"Com excepção
dos nomes e das cores, que se haviam delido no tempo, seriam apenas os barcos –
os mesmos desse dia feliz em que papá decidira levá-la a vê-los de perto pela
primeira vez. Porque lá estavam ainda, emborcados por cima do convés, os mesmos
escaleres cobertos pelas lonas. Estavam as torres, as vigias redondas como
olhos de peixe e as mesmas bóias ressequidas, presas dos ganchos. Quando
largaram da doca – e o focinho cortante das proas rasgou o pano azul das águas
atlânticas, rumo a Lisboa – havia também a mesma chuva ácida do princípio da
noite. Além disso, dera-se a chegada das mesmíssimas vacas ao cais de embarque,
sendo elas destinadas aos matadouros continentais. E o pranto da muita gente
que ali ficou a agitar lencinhos de adeus fora-se logo convertendo num uivo, o
qual acabou por confundir-se com o rumor do vento a alto mar.
Depois um e outro
viram a Ilha ir fenecendo na distância das luzes enevoadas e extinguir-se aos
poucos, submersa pelos véus de cinza que se desprendiam das nuvens. À medida
que os rolos de espuma se distendiam à ré, num risco que espalmava e tornava
liso aquele globo saltitante, a cordilheira vulcânica ia-se lentamente
afundando ao longe. Do lado de cá do vento, e da electricidade que metaliza e
faz correr a noite marítima, a última visão da Ilha é mesmo essa cabeça de égua
aflita, agitando-se na crista da serra a que chamam Pico da Vara. Sabe-se que
naufraga e que o faz num suspiro altivo e superior: as orelhas, de súbito
imóveis, mergulham a pique no fo dessa irresistível lâmina oceânica...
E agora que
os anos confundem a ordem e o rigor das emoções dessa viagem para Lisboa, o
difícil é reconstituir os nomes, o perfil, a sombra dessas formas escuras, que
eram os barcos de então. Mesmo dos que deram lugar aos majestosos paquetes de
cruzeiro, não sobra senão um pormenor obscuro. Nuno e Amélia aludem às
bandeiras bordadas com símbolos náuticos e aos enormes mastros, de cujas hastes
se esticava um cordame de aço amarrado na gávea. Maria Amélia recorda sobretudo
as chaminés azuis e amarelas, ao contrário do irmão. Recorda o som das
caldeiras e o sal dos corrimãos pegajosos que bordejavam os muros do convés, e
pouco mais. Dos tombadilhos oscilantes, não retém mais do que uma lembrança
difusa, ainda e sempre ensombrada pelos malefícios do enjoo. Mas azuis,
amarelas ou dum ocre pouco nítido e já muito mordido pela ferrugem, de pouco
lhe importam as cores. Limita-se a descrevê-los sem paixão. Não quer aliás
recuperar o tempo inútil, nem amargurar a memória que possa ter desses ou de
todos os outros barcos. Nutre por eles um misto de ternura e pavor. Contudo,
não esquece o aspecto desses castelos vivos mas em ruínas – com varandins de
corda, patamares suspensos e enormes âncoras esquecidas junto aos pequenos
motores de bordo. Toda a memória lhe vem das janelas em guilhotina da 1ª
Classe, para onde tantas vezes olhou em vão, na esperança de que viessem
socorrê-la. As irmãzinhas haviam-na abandonado num camarote sem ar e sem
vigias: uma luz mortuária por cima da cabeça, sacos de plástico para o enjoo
arrumados numa bolsinha fatídica, o beliche estreito e a mistura dos cheiros
que só existem nos barcos – salitre, tintas quentes e o amoníaco entorpecente
das latrinas muito próximas. Dos porrões, chegavam-lhe aos ouvidos atordoados o
choro das vacas e das cabras, os urros dos vómitos e o lamento contínuo de
muitas outras mulheres. Depois entrara nela o zumbido que o mar transmite às
paredes trémulas dos barcos. E como um sismo sem princípio nem fim, as
tempestades atlânticas levantavam no ar e depois deixavam cair aquele baú entre
vagalhões cruzados. O mar fazia-o com a mesma facilidade com que outrora um
qualquer de nós era tomado em peso pelo vento e voava: não sendo pássaro,
transformava-se num serzinho alado, cego pela poeira, e aterrava no lodo das
quebradas que sempre haviam cortado os caminhos da infância. No momento
seguinte, mares convulsos voltavam a erguer e a largar aquela segunda arca
bíblica. Abriam-se medonhas crateras e o mar fendia-se para receber a quilha:
uma indescritível chapada na água ensurdecia a noite de pedra – e nunca Deus
estivera tão distante como nos dias dessa solidão infinita. A visão da cidade
do Funchal, numa noite de tréguas a meio da baía, com o presépio das suas casas
ao cimo das falésias, deixou-a semimorta numa cadeira de encosto de alguém que
fora a terra e a deixara vaga no convés. De manhã, largaram dali com levante.
Viu-se de novo enrolada no beliche, com a cabeça entre os joelhos, e quis Deus
que, ao quinto dia dessa primeira e última morte no mar, viesse finalmente
alguém dizer-lhe que a luminosa, magnífica cidade de Lisboa esperava os
náufragos e as suas almas mortas. Só então conseguiu ressuscitar.
Nuno Miguel
recorda perfeitamente as letras incrustadas nos cascos negríssimos e também
pintadas no dorso das grandes chaminés. Recorda-se de se ter interrogado acerca
dessas legendas, parecendo-lhe que já então os nomes dos barcos eram maiores do
que eles mesmos e do que a sua próxima experiência do mar – por muito que lhe
viessem a custar as cinco futuras viagens entre Lisboa e Ponta Delgada. Em
todas as docas jaziam sempre medas de tábuas, montanhas de toros, contentores
soldados a chumbo e compridos promontórios de sacas de trigo e açúcar. E via-se
sempre um homenzinho sentado no ar, na guarita de cada guindaste, tendo pela
frente um painel com alavancas, fechos e botões luminosos. Daí o outro segredo
dos barcos: durante horas e horas, estando ele ainda do outro lado da cidade,
pudera ouvir a mecânica das roldanas, o deslize cortante das correntes que
içavam plataformas e abriam porões, as cremalheiras onde a roda dentada ia
produzindo um ruído de ossos triturados.
Sentado com o
papá no muro da Avenida Marginal, à espera da hora do embarque, a tarde
inacreditavelmente longa desse primeiro Novembro de mar fora sobretudo o pulsar
dos ferros na distância, a deslocação das engrenagens perras, a bordo, e a voz
dele: nunca tivera jeito para a ternura, por isso mantinha o mesmo tom
imperativo para lhe pedir que comesse alguma coisa e parasse de soluçar:
– Psst, ó
pequeno! Não se chora, homem. E assoa-me esse nariz para o chão!
Ele próprio
gostaria de saber como se chorava, para então poder abraçar aquele pequeno
filho, subitamente aterrorizado ante a proximidade do seu barco. Não saberia
fazê-lo sem parecer ridículo ou diferente do que sempre fora perante os filhos.
Nuno registara no nervo mais sensível da alma a decisão do pai, nessa mesma
manhã. Quando dele fora despedir-se à arribana, papá ficara um momento a
olhá-lo de cima para baixo. A cabeça inclinara-se-lhe um pouco, até ficar
oblíqua, e Nuno viu como os lábios se crispavam e os olhos se tornavam quase doces.
Ia decerto abraçá-lo fortemente contra o peito, sem uma palavra, ou então
limitar-se-ia a repetir a fórmula de dar a bênção – quando de súbito papá
endireitou a cabeça, pegou-lhe pela mão e trouxe-o até à cozinha. Aí, enfrentou
os olhos chorosos de mamã, recebeu o clamor das lágrimas de toda a família e
ordenou:
– Preparem-me
as botas de levar à missa, a jaqueta e umas calças lavadas. Vou-me a levar o
pequeno ao embarque, não vá ele perder-se lá pela Cidade."
João de Melo , in "Gente Feliz com Lágrimas" - Capítulo Primeiro-,1988, Publicações Dom Quixote
"GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS" é um "romance de uma família que se desfaz e refaz pelas paragens mil aonde a levam os bons e maus augúrios que motivam a sua dispersão. Concebida polifonicamente como a descrição dos vários modos de viver a amargura que medeia entre o abandono da terra e o retorno ao domínio do que é familiar, esta peregrinação possível em tempos de escassez de aventura é a definitiva lição de que o regresso se não limita a perfazer um círculo, e constitui uma visão fascinante do Portugal que todos , de uma maneira ou de outra conhecemos."
"Gente Feliz com Lágrimas" foi galardoado com : Grande Prémio de romance e novela do A.P.E., Prémio Fernando Namora, Prémio Eça de Queiroz, Prémio Cristóvão Colombo, Prémio Antena Um.
João de Melo nasceu na ilha de São
Miguel, Açores, em 1949 onde permaneceu até à conclusão da instrução primária. Aos 10 anos de idade, veio para Portugal continental para continuar a estudar. A partir de 1967, fixa residência em Lisboa. É licenciado em Filologia Românica. Foi Professor do ensino Secundário e Universitário e conselheiro
cultural na Embaixada de Portugal em Madrid desde 2001. Tem uma imensa obra literária publicada que se estende pelo romance, novela, conto e análise literária. A mobilização para Angola , no serviço militar português, aquando da guerra colonial, foi pano de fundo de muitas das suas obras.
O escritor João de Melo celebrizou-se com vários livros seus, que revelam uma qualidade literária e um poder de narrativa admiráveis. Porém, "Gente Feliz com Lágrimas" é algo de muito especial, de muito sentido, de muito íntimo, de "muito cá da casa" - como se costumava dizer outrora - uma obra que narra a vida do ilhéu, a vida açoriana na sua maior pujança! Antes dele, e melhor do que ele, só o Mestre Vitorino Nemésio!...
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