"Ele está lá, Jorge Amado, nestas páginas, as suas prisões, os seus exílios,as suas farsas e armadilhas, em emoções infindáveis,os seus olhos grandes, o seu riso, a sua mulher tanto amada, Zélia Gattai, o seu gosto pelos mares, o seu meio século de comunismo, os seus 50 romances, como igualmente os negros, os pobres, as prostitutas e os pecadores da sua cidade adorada, Salvador da Bahia de Todos os Santos."
Gilles Lapouge, Qunizaine Littéraire
Gilles Lapouge, Qunizaine Littéraire
“Navegação de Cabotagem,Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei ”, Jorge Amado , 1992, Editora Europa–América, Mem- Martins é um livro surpreendente e memorável, não apenas porque guarda as memórias de Jorge Amado, mas porque representa o exercício retrospectivo de quase um século por um dos maiores escritores universais.
Jorge Amado começou a escrevê-lo em Janeiro de 1986, em Nova Iorque, cidade para onde se deslocara com a sua mulher, Zélia Gattai, a fim de participar no Congresso Internacional do Pen Club. Doente e debilitado por uma pneumonia , não pode comparecer às Conferências e começou a redigir algumas notas à medida que elas afluiam . O registo das memórias, que abrangem um longo período do século XX ( a década de 20 até ao início dos anos 90), terminaria em 1992 , data da publicação do livro.
“Oitenta anos vividos intensa, ardentemente, de face para a vida, em plenitude. Minha criação romanesca decorre da intimidade, da cumplicidade com o povo. Aprendi com o povo e com a vida, sou um escritor e não um literato, em verdade sou um obá em língua iorubá da Bahia obá significa ministro, velho, sábio: sábio da - sabedoria do povo.
Consciente e contente que assim seja, reúno nesta Navegação de Cabotagem lembranças de alguém que teve o privilégio de assistir, e por vezes de participar de acontecimentos em certa medida consideráveis, de ter conhecido e por vezes privado com figuras determinantes. Publico esses rascunhos pensando que, talvez, quem sabe, poderão dar ideia do como e do porque. Trata-se, em verdade, da liquidação em preço reduzido do saldo de miudezas de uma vida bem vivida. Deixo de lado o grandioso, o decisivo, o terrível, o tremendo, a dor mais profunda, a alegria infinita, assuntos para memórias de escritor importante, ilustre, fátuo e presunçoso: não vale à pena escrevê-las, não lhes encontro a graça?”
Consciente e contente que assim seja, reúno nesta Navegação de Cabotagem lembranças de alguém que teve o privilégio de assistir, e por vezes de participar de acontecimentos em certa medida consideráveis, de ter conhecido e por vezes privado com figuras determinantes. Publico esses rascunhos pensando que, talvez, quem sabe, poderão dar ideia do como e do porque. Trata-se, em verdade, da liquidação em preço reduzido do saldo de miudezas de uma vida bem vivida. Deixo de lado o grandioso, o decisivo, o terrível, o tremendo, a dor mais profunda, a alegria infinita, assuntos para memórias de escritor importante, ilustre, fátuo e presunçoso: não vale à pena escrevê-las, não lhes encontro a graça?”
Em 1992, quando terminou o livro, estava com oitenta anos. "O momento histórico, para quem viveu, na infância, o impacto da Primeira Guerra e da Revolução Russa, era avassalador: “O mundo nascido de duas guerras mundiais e da revolução socialista se esboroa e nas ruas se discute e se planeja uma nova carta geográfica e política, quando o impossível acontece, ruem muros, nações, impérios”. Apesar das transformações radicais, Jorge Amado não se mostra saudoso: “Só tenho pena de não me restar o tempo necessário para ver em que tudo isso vai dar. Bem que gostaria”.
Como já referimos em edições anteriores , no ano de 2012 celebra-se o centenário do nascimento de Jorge Amado (1912-2001). Recordá-lo através de um excerto do livro das suas memórias é uma forma antecipada de lhe prestar homenagem.
“Aproxima-se a data dos oitenta anos, por que se considera tão curto tempo de vida façanha a celebrar, empreitada a saudar com estrondo e festa? De toda parte, do Brasil e do estrangeiro, chegam convites para comemorações, atropelam-se as notícias, os projetos, programas infindáveis de solenidades, cresce a pressão para que aceite ir aqui, ali e acolá de ceca em meca, ouvir discursos, pronunciá-los, agradecer elogios de corpo presente, participar de atos, seminários, fóruns, almoços e jantares, quanta coisa se inventa para proclamar-se a caduquice. A generosidade dos amigos, o carinho dos leitores me comovem, mas todo esse cerimonial parece-me conter laivo de despedida, tem ar de adeus em necrológio: aqui repousa em paz, epígrafe em mausoléu, letras de ouro em campo santo.
Digo não ao discurso, à medalha, à fanfarra e aos tambores, à sessão solene, ao incenso, à fotografia de fardão ou em mangas de camisa exibindo as pelancas e a dentadura, não sou andor de procissão. Dá-me tua mão de conivência, vamos viver o tempo que nos resta, tão curta a vida!, na medida de nosso desejo, no ritmo de nosso gosto simples, longe das galas, em liberdade e alegria, não somos pavões de opulência nem gênios de ocasião, feitos nas coxas das apologias, somos apenas tu e eu. Sento-me contigo no banco de azulejos à sombra da mangueira, esperando a noite chegar para cobrir de estrelas teus cabelos, Zélia de Euá envolta em lua: dá-me tua mão, sorri teu sorriso, me rejubilo no teu beijo, laurel e recompensa. Aqui, neste recanto do jardim, quero repousar em paz quando chegar a hora, eis meu testamento.
Nasci empelicado, de bunda para a lua, uma estrela no peito, a sorte me acompanha, tenho o corpo fechado à inveja, a intriga não me amarra os pés, sou imune ao mau-olhado. A vida me deu mais do que pedi, mereci e desejei. Vivi ardentemente cada dia, cada hora, cada instante, fiz coisas que Deus duvida, conivente com o Diabo, compadre de Exu nas encruzilhadas dos ebós. Briguei pela boa causa, a do homem e a da grandeza, a do pão e a da liberdade, bati-me contra os preconceitos, ousei as práticas condenadas, percorri os caminhos proibidos, fui o oposto, o vice-versa, o não, me consumi, chorei e ri, sofri, amei, me diverti.
Fujo aos festejos, ao fogo de artifício, ao banquete, fujo ao necrológio, estou vivo e inteiro. Amanhã, passado o obituário de reverências, voltarei ao romance, Bóris, o Vermelho me espera na esquina da máquina de escrever com seu desafio de trapaça e juventude. Obstinado, vou prosseguir com orgulho e humildade a tarefa de emprenhar nos esconsos da cidade, conceber e parir homens e mulheres, capitães da areia, mestres de saveiro, jagunços, vagabundos, putas, são a inocência e a fantasia, nascem de minhas entranhas fecundadas pelo povo, do coração, dos miolos e das tripas, dos culhões.” Jorge Amado , in “ Navegação de Cabotagem, Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei ”, 1992, Editora Europa–América, Mem- Martins
Digo não ao discurso, à medalha, à fanfarra e aos tambores, à sessão solene, ao incenso, à fotografia de fardão ou em mangas de camisa exibindo as pelancas e a dentadura, não sou andor de procissão. Dá-me tua mão de conivência, vamos viver o tempo que nos resta, tão curta a vida!, na medida de nosso desejo, no ritmo de nosso gosto simples, longe das galas, em liberdade e alegria, não somos pavões de opulência nem gênios de ocasião, feitos nas coxas das apologias, somos apenas tu e eu. Sento-me contigo no banco de azulejos à sombra da mangueira, esperando a noite chegar para cobrir de estrelas teus cabelos, Zélia de Euá envolta em lua: dá-me tua mão, sorri teu sorriso, me rejubilo no teu beijo, laurel e recompensa. Aqui, neste recanto do jardim, quero repousar em paz quando chegar a hora, eis meu testamento.
Nasci empelicado, de bunda para a lua, uma estrela no peito, a sorte me acompanha, tenho o corpo fechado à inveja, a intriga não me amarra os pés, sou imune ao mau-olhado. A vida me deu mais do que pedi, mereci e desejei. Vivi ardentemente cada dia, cada hora, cada instante, fiz coisas que Deus duvida, conivente com o Diabo, compadre de Exu nas encruzilhadas dos ebós. Briguei pela boa causa, a do homem e a da grandeza, a do pão e a da liberdade, bati-me contra os preconceitos, ousei as práticas condenadas, percorri os caminhos proibidos, fui o oposto, o vice-versa, o não, me consumi, chorei e ri, sofri, amei, me diverti.
Fujo aos festejos, ao fogo de artifício, ao banquete, fujo ao necrológio, estou vivo e inteiro. Amanhã, passado o obituário de reverências, voltarei ao romance, Bóris, o Vermelho me espera na esquina da máquina de escrever com seu desafio de trapaça e juventude. Obstinado, vou prosseguir com orgulho e humildade a tarefa de emprenhar nos esconsos da cidade, conceber e parir homens e mulheres, capitães da areia, mestres de saveiro, jagunços, vagabundos, putas, são a inocência e a fantasia, nascem de minhas entranhas fecundadas pelo povo, do coração, dos miolos e das tripas, dos culhões.” Jorge Amado , in “ Navegação de Cabotagem, Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei ”, 1992, Editora Europa–América, Mem- Martins
Excelente ideia recordar um dos maiores escritores de sempre.
ResponderEliminarMuito!... Jorge Amado interessa-nos sempre muito. Todos os textos para aqui trasladados, espelham essa grande alma que foi Jorge Amado!... Porém, é difícil dizer tanto e de um modo tão profundo, e em tão poucas palavras, como Gilles Lapouge escreveu na "Quinzaine Littéraire", e palvras insertas no início desta página de "Livres Pensantes"!... Desde já, algo mais que possamos acrescentar não vai iluminar muito além Jorge Amado, esta grande Figura de Político e Escritor que pensou, discursou, lutou, sofreu e escreveu na Língua Portuguesa. Um brasileiro que pertence a duas Pátrias, o Brasil e Portugal. Em "Navegação de Cabotagem", o Jorge foi apontamento sobre apontamento, dia a dia, semana a semana, ano a ano, mostrando-se tal como ele era... Sem embuste, sem disfarce, sem rancor, sem despeitos, envolvendo todos os amigos e admiradores num grandioso amplexo, num gesto cheio de sensibilidade e humanidade, com lágrimas e muita comoção a saltarem-lhe da alma, dessa alma GIGANTE!... À parte, o combate de ideias políticas que o fez conhecer como se vivia e sofria por detrás das grades, que o fez procurar com mágoa e saudade o exílio, ele amava todo o seu semelhante, socorria a todos. Nos seus livros - se observarem bem - não há nenhum persagem verdadeiramente mau, intragável, repelente, abominável. E se os houvesse, ele os redimiria! Jorge Amado não concebia ninguém assim, nem mesmo os seus adversários políticos! Uma alma deste quilate, feita de excelência e talento, que punha a Amizade e o Amor acima de tudo o mais, certamente passou - logo que se despediu de nós todos... - passou os umbrais do Paraíso (se é que este lugar existe...), transpôs esses umbrais sem ser chamado a julgamento, não necessitando de comparecer num qualquer Juízo Final perante um Criador que nunca reconheceu. Jorge Amado! Ele idz que não escreveu nenhum livro de memórias?!... Aí, cara, você engana-nos, desculpe! E todos os que me lêem igualmente se enganam! Toda a sua obra literária desde o Quincas Berro de Água, ao Dr. Mundinho, passando pelo Vadinho, até à Teresa Batista Cansada de Guerra e à inolvidável Gabriela, é, são todos e muitos mais o seu grande e disperso Livro de Memórias!... A "Navegação de Cabotagem", apenas migalhas preciosas de inúmeros afectos, excertos nimbados de ternura e emoção, plenos de um contagiante afecto imenso por toda a humanidade. Até breve, Jorge!... E até breve, Zélia!... Jorge Amado! Olha!... Lá como cá, continua, por favor, a escrever, a escrever muito e bem, a contar-nos novas histórias daí. Teremos então uma enormidade de tempo para continuar a ler-te quando nos encontramos novamente aí nesses céus verdejantes, em que tu nunca acredistaste que pudéssemos sentirmo-nos mais felizes. E tu, Mestre, sabes do que falo... Dos teus encontros em Lisboa, da tua alegria repetida em terras portuguesas, com uma saltada à Ericeira para abraçar o oleiro ("o teu colega", como dizias...) e grande artista que foi o José Franco, pois, meu caro, desse teu sair de viagem pela Europa, a passagem pela cidade das sete colinas, por Lisboa, era como se continuasses na tua "casa", na grande casa de todos os portugueses. - V. P.
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