Haveria uma escrita do não escrito.
Um dia isso há-de acontecer.
Uma escrita breve, sem gramática,
Uma escrita apenas com palavras.
Palavras sem gramática a apoiá-las.
Ali, escritas. E logo abandonadas.
Marguerite Duras
O “Magazine littéraire”,nº 513 de Novembro 2011, propõe um dossier consagrado a Marguerite Duras no momento em que a prestigiada colecção “La Bibliothèque de la Pléiade” da Editora Gallimard publica os dois primeiros volumes da sua obra completa. Ser publicado na Bibliothèque de la Pléiade representa o maior reconhecimento literário que se pode prestar a um autor. Marguerite Duras merece-o . Como afirmou « Escrever durante uma vida inteira ensina a escrever. Não salva de nada » mas a invenção literária salvou-a do anonimato e abriu-lhe as portas da imortalidade. A nós, seus leitores, ofereceu-nos instantes indizíveis de graça, momentos de intenso desespero, horas de alegrias iradas em intensas paixões, meses de obstinada vertigem entre a vida e a morte e uma eternidade de fascínio literário.
Escritora, dramaturga, realizadora, resistente, autora de uma imensa obra, Marguerite Duras nasceu em Gia Dinh, na Indochina, no dia 4 de Abril de 1914, e faleceu no dia 3 de Março de 1996, em Paris, com 81 anos de idade. Um dia após a sua morte , Bertrand Poirot-Delpech escreve no jornal "Le Monde": "Quando esse pequeno pedaço de gente com grandes óculos e voz de final de comício participa da resistência ou faz política, quando acredita no comunismo e depois o execra, ela o faz com as suas entranhas, sem moderação nem prudência."
Duras escrevia como vivia: na urgência até ao esgotamento.
" Era mais do que uma escritora: ela encarnava a escrita. Borges : era a erudição. Hugo: a riqueza ,a facilidade e a mania de tudo dizer. Mas havia em Marguerite Duras aquele furor poético, para falar como os antigos, aquela fé na escrita - (e pouco importava onde ela conduzisse) - pois nunca alguém ainda a tinha mostrado e que lhe permitia de confessar, confiante e trémula: : «La solitude, ça veut dire aussi : Ou la mort, ou le livre» (Écrire). "
Em 1950, com ”Uma barragem contra o Pacífico”, Duras esteve muito próxima de ganhar o Prémio Goncourt. Só volvidos 30 anos (1984) a justiça é celebrada com a atribuição do prémio por unanimidade ao romance "O Amante".
Em 1950, com ”Uma barragem contra o Pacífico”, Duras esteve muito próxima de ganhar o Prémio Goncourt. Só volvidos 30 anos (1984) a justiça é celebrada com a atribuição do prémio por unanimidade ao romance "O Amante".
"O Amante" é o relato exacerbado de uma paixão na adolescência inquieta da escritora que a tornou conhecida mundialmente. Este romance teve uma tiragem de aproximadamente três milhões de exemplares, traduções em quarenta línguas, um sucesso mundial, mais tarde foi adaptado para cinema pelo realizador Jean-Jacques Annaud.
“Não podemos fazer mais do que amar - ou execrar - essa pequena mulher provocante, rodeada dos seus fantasmas (...). Essa pequena mulher, que roda sobre ela mesma como uma valsa solitária, terá sido uma senhora? Foi sobretudo uma mulher voraz de uma literatura que é um grito de amor ao longo de todas as páginas. Uma Piaf.” - Jean-François Josselin.
Muito cedo foi tarde demais
“Penso frequentemente nesta imagem que sou a única a ver ainda e de que nunca falei. Está sempre aí no mesmo silêncio, deslumbrante. É de todas, a que me agrada de mim própria, onde me reconheço, onde me encanto.
Muito cedo na minha vida foi tarde demais. Aos dezoito anos era já tarde demais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa direcção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda a gente, nunca perguntei. Parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do tempo que nos fere por vezes quando atravessamos as idades mais jovens, mais celebradas da vida. Este envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos meus traços um a um, alterar a relação que havia entre eles, tornar os olhos maiores, o olhar mais triste, a boca mais definitiva, marcar a fronte de fendas profundas. Em vez de me assustar, vi operar-se este envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura. Sabia também que não me enganava, que um dia ele abrandaria e retomaria o seu curso normal. As pessoas que me tinham conhecido aos dezassete anos aquando da minha viagem a França ficaram impressionadas quando me voltaram a ver, dois anos depois, aos dezanove anos. Conservei esse novo rosto. Foi o meu rosto. Envelheceu ainda, evidentemente, mas relativamente menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e profundas, a pele quebrada. Não amoleceu como certos rostos de traços finos, conservou os mesmos contornos mas a sua matéria está destruída. Tenho um rosto destruído.(...)Eu perguntava-lhe se teria querido que as coisas se passassem assim. Ele quase ria, dizia: não sei, neste momento talvez sim. A sua meiguice tinha ficado inteira na dor. Não falava dessa dor, nunca dissera uma palavra sobre ela. Às vezes o seu rosto estremecia, fechava os olhos e cerrava os dentes. Mas calava-se sempre sobre as imagens que via por trás dos olhos fechados. (...)
Muito cedo na minha vida foi tarde demais. Aos dezoito anos era já tarde demais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa direcção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda a gente, nunca perguntei. Parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do tempo que nos fere por vezes quando atravessamos as idades mais jovens, mais celebradas da vida. Este envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos meus traços um a um, alterar a relação que havia entre eles, tornar os olhos maiores, o olhar mais triste, a boca mais definitiva, marcar a fronte de fendas profundas. Em vez de me assustar, vi operar-se este envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura. Sabia também que não me enganava, que um dia ele abrandaria e retomaria o seu curso normal. As pessoas que me tinham conhecido aos dezassete anos aquando da minha viagem a França ficaram impressionadas quando me voltaram a ver, dois anos depois, aos dezanove anos. Conservei esse novo rosto. Foi o meu rosto. Envelheceu ainda, evidentemente, mas relativamente menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e profundas, a pele quebrada. Não amoleceu como certos rostos de traços finos, conservou os mesmos contornos mas a sua matéria está destruída. Tenho um rosto destruído.(...)Eu perguntava-lhe se teria querido que as coisas se passassem assim. Ele quase ria, dizia: não sei, neste momento talvez sim. A sua meiguice tinha ficado inteira na dor. Não falava dessa dor, nunca dissera uma palavra sobre ela. Às vezes o seu rosto estremecia, fechava os olhos e cerrava os dentes. Mas calava-se sempre sobre as imagens que via por trás dos olhos fechados. (...)
Ela não soube quanto tempo depois da partida da rapariga branca ele executou a ordem do pai, quando fez aquele casamento com a rapariga designada pelas famílias há dez anos, também ela coberta de ouro, de diamantes, de jade. Uma Chinesa, também ela oriunda do Norte, da cidade de Fu-Chuen, que veio acompanhada pela família. (...)
Anos depois da guerra, depois dos casamentos, dos filhos, dos divórcios, dos livros, ele veio a Paris com a mulher. Telefonara-lhe. Sou. Ela reconhecera-o logo pela voz. Ele dissera: queria só ouvir a sua voz. Ela dissera: sou eu, bom dia. Ele estava intimidado, tinha medo como dantes. A sua voz tremia de repente. E com o tremor, de repente, ela voltara a encontrar a pronúncia da China. Ele sabia que ela tinha começado a escrever livros, soubera-o pela mãe dela que voltara a ver em Saigão. E depois dissera-lho. Dissera-lhe que era como dantes, que ainda a amava, que nunca poderia deixar de a amar, que a amaria até à morte.Néauphle-le-hateau – Paris
Fevereiro-Março de 1984 "
Marguerite Duras, in “O Amante”, DIFEL, Difusão Editorial.Lda, Lisboa
Marguerite Duras por arc
Marguerite Duras!... Escritora, panfletária, jornalista, política activa, resistente "sem sono", mulher indomável e corajosa, especialmente quando a sua pátria, referimo-nos à França, esteve ocupada pelas forças nazis. Ganhou devido à sua frontalidade, à sua iniciativa inadiável, à concretização dos seus projectos, à sua abnegação e ao desprezo pelos perigos de vida que correu, ganhou inimigos, como não podia deixar de ser!... Porém...Fez igualmente - através da sua destemida e arriscada postura perante as adversidades e os momentos graves e incertos - também inúmeros amigos, especialmente quando os seus ideais políticos, sociais e patrióticos o exigiam. Marguerite Duras desencadeou paixões (desde a Indochina, por esses tempos Colónia Francesa,... até aos confins do mundo), desencadeou paixões arrebatadas nos que sempre a viram como líder, e arrojada combatente. Os homens de um modo geral sentiam por ela uma relação simultânea de amor e ódio, e tinham-na como uma "espécie" à parte, tal o respeito que lhes infundia, o impulso com que os projectava para a linha da frente da vida. Mulher gigante em tantos momentos de medo, de pânico geral, embora fisicamente de baixa estatura, sem aparência robusta, rosto - tal como ela se achava... - precocemente envelhecido, rosto que traduzia uma maturidade intelectual precoce e acelerada, uma antevisão inverosímel dos factos, do futuro dos dias, que causava espanto entre os mais íntimos. Lembro agora - neste momento - com uma certa nostalgia, François Mediterrant, Robert Antelme, especialmente este último, vítima da Guerra, pombo-correio da Resistência Francesa, que veio a ser prisioneiro dos alemães de Hitler nos Campos de Concentração, e de onde conseguiram libertá-lo transformado num verdadeiro farrapo humano, muito débil fisicamente, tanto que receavam que a todo o momento o seu corpo se apagasse para a vida... Aqui igualmente Marguerite agarrou nele,encorajou-o, prodigalizou-lhe todos os cuidados de saúde para o recuparar, para que ele sobrevivesse mais uns tempos, como assim veio a acontecer. Marguerite Duras!... Uma mulher que nunca se negou à luta, ao combate, à polémica, ao amor, à amizade, ao grito que acorda as consciências desanimadas, quer através dos seus inflamáveis discursos na praça pública, quer no silêncio conspirativo, na passagem da "senha" boca a ouvido, parecendo estar em todo o lado onde a sua presença era necessária e em lado nenhum quando o eclipse da sua figura assim o exigia para segurança dos seus, dos seus muitos admiradores, incondicionais seguidores (que temiam e elogiavam o seu génio, a sua personalide forte, o seu querer feito de fortaleza e alma também!...). Igualmente, ei-la, Marguerite-Mulher, nas noites de incerteza e temor, na conspiração forjada, planeada na mais esquecida das salas da sua casa da Rua Saint Benôit em Paris!.... Laura Adler retratou-a para a posteridade de uma forma admirável, revelando-a generosa, impulsiva, genial para todo o sempre!... Marguerite finou-se fisicamente em 1996. Mas, o seu espírito forte, o seu poder de decisão nas horas de sangue sob os tenebrosos bombardeamentos nazis, sob o sibilar dos tiros ecoando nos cantos das ruas e provindos das armas dos franceses "vendidos" que atraiçoaram o espírito da Resistência imparável, e ainda a lenda da sua heroicidade, da sua determinação, da sua coragem contínua, tal como a capacidade criativa como escritora,como romancista enaltecendo o amor, a traição, a sinceridade, o respeito pelas ideias, essa lenda viva continua, para exemplo de todos nós! Lembrar Marguerite Duras é lembrar tudo quanto uma mulher, cidadã do seu país pode fazer por ele ,sem esperar que a su França faça algo por si. - V. P..
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