quinta-feira, 24 de outubro de 2024

No centenário de António Ramos Rosa

António Ramos Rosa

António Ramos Rosa - Biografia 
[Faro,17.10.1924 - Lisboa, 23.09. 2013]

"António Ramos Rosa frequentou em Faro os estudos secundários, que não concluiu por motivos de saúde. Trabalhou como empregado de escritório, desenvolvendo simultaneamente o gosto pela leitura dos principais escritores portugueses e estrangeiros, com especial preferência pelos poetas. Em 1945 vai para Lisboa e dois anos depois volta a Faro, tendo integrado as fileiras do M.U.D. Juvenil, onde militou activamente. Regressado a Lisboa, foi professor de Português, Francês e Inglês, ao mesmo tempo que estava empregado numa firma comercial, e começou a fazer traduções para a Europa-América, trabalho que nunca mais abandonaria e no qual veio a atingir notável qualidade.
O continuado interesse pela actividade literária levou-o a relacionar-se com um grupo de escritores que o incentivaram na publicação dos seus poemas e artigos de crítica, tendo colaborado em numerosos jornais e revistas. Com alguns desses escritores, fundou em 1951 a revista Árvore, que veio a ser uma das mais marcantes da década, procurando divulgar os textos dos poetas e prosadores portugueses mais significativos no tempo, bem como os grandes nomes da literatura estrangeira. Co-dirigiu também as revistas Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia.
A crescente importância que a actividade literária foi tomando na sua vida levou-o a certa altura a abandonar o emprego no escritório em que trabalhava, para a ela se dedicar exclusivamente, com todas as consequências que tal decisão acarretava.
A atitude crítica que permanentemente exercitou sobre a sua própria palavra como sobre a palavra alheia faz de A.R.R. um dos mais esclarecidos críticos portugueses contemporâneos, o que se manifesta em inúmeros artigos e recensões sobre poetas portugueses e estrangeiros, bem como na publicação de vários ensaios centrados na temática da poesia. A.R.R. tem, no entanto, o cuidado de separar de uma forma muito nítida a sua actividade de crítico, em que não pode deixar de utilizar critérios e referências racionais, da sua actividade criadora: enquanto poeta faz da ignorância e da radical suspensão de todos os saberes e hábitos adquiridos o único método para a eclosão da sua palavra poética. Na verdade, a procura da palavra justa para dizer as «coisas nuas» e a reflexão sobre a realidade e a possibilidade dessa palavra é, talvez, o único tema desta poesia, na qual é, no entanto, possível assinalar diferentes fases: recortando-se duma problemática neo-realista de solidariedade para com o destino dos homens e do mundo, O Grito Claro (1958) e Viagem Através de Uma Nebulosa (1960) utilizam uma linguagem e uma vivência ainda devedoras dessa estética, combinadas com uma imagética herdada do surrealismo. Mas encontramos já de uma forma incipiente nessas primeiras recolhas algumas das constantes da obra do poeta: um enraizamento pelo corpo na Terra, não numa Terra utópica e futura, mas na materialidade mais originariamente primitiva da natureza; uma libertação, pela palavra mais solitária, de todas as prisões e constrangimentos que a poderiam cercear; uma permanente atenção à materialidade da própria linguagem poética, que a desliga tanto da sua função representativa como da sua função expressiva (pois não se trata já de exprimir um real subjectivo, tão caro aos poetas líricos). Esta particular concepção da Poesia irá ser retomada mais tarde quer pelo grupo «Poesia 61», quer pelos poetas experimentalistas.
Após um decisivo encontro com a poesia de Éluard, A.R.R. abandona definitivamente a retórica e a imagística neo-realista e surrealista, para se concentrar numa palavra solar, pura e rigorosa, podemos dizer mesmo elementar, à medida que a exigência de um retorno à origem se tornará numa das suas obsessões. Exigência que lhe pedirá até para substituir à sua própria voz uma verdadeira voz inicial (título de uma recolha de 1960), memória da criação mais remota, que se ergue de um território onde se indistinguem sujeito e objecto. Como nota Eduardo Lourenço, a poesia de A.R.R. nunca mais abandonará esse porto «anterior a todos os portos». Esta poética do puro início expande-se a todo o espaço e a toda a matéria, através dum erotismo mediado pelo corpo próprio, pelo corpo da mulher, pelo corpo da terra, pelo corpo da palavra. Da apropriação destes espaços através da palavra poética, nunca dada a priori mas conquistada através de um desejo, de um esforço, de uma viagem, nasce uma felicidade exultante e viva que frequentemente nos é transmitida por metáforas de claridade.
O contraponto desta plenitude meridional é a dificuldade com que o poeta se debate ao tomar consciência da sombra que nasce da raíz de toda a realidade e da realidade de toda a palavra. A luta entre a luz e as trevas, que é central em Sobre o Rosto da Terra, vai invadindo gradualmente de negatividade a poesia subsequente, até lhe ameaçar toda a arquitectura em A Pedra Nua (1972), onde a plenitude solar dos primeiros livros é substituída pela inquietante suspeição sobre o poder dessa mesma palavra, num território cada vez mais calcinado, até ao limite dum dizer que perde o fio e se transforma num quase ininteligível balbuciar (Declives, 1980).
A partir de Volante Verde (1986) assistimos no entanto a uma espécie de «reconciliação com as palavras» através duma certa forma de integração da ausência, já não combatida mas incluída como forma estruturante da própria poesia. O poeta encontra então um novo fôlego, através da «enigmática profusão da terra», numa exaltação da natureza que adquire uma feição animista. O universo poético de A.R.R., jogando com um número relativamente restrito de vocábulos e de temas, dá predominância às palavras substantivas e elementares tais como: pedra, água, árvore, cal, mão, muro, e mesmo às formas mais ínfimas e humildes: unha, insecto, pó, cabelo, sopro, espuma, baba do caracol. Estes elementos são retomados e combinados caleidoscopicamente, em ciclos que continuamente se reiniciam. A exploração ontológica e poética vai-se processando em movimentos cada vez mais lentos e subtis, num itinerário em que a densidade do espaço e a substância dos objectos se vai tornando progressivamente mais permeável e transparente. A desmaterialização das coisas e da língua que as diz liga-se intimamente ao modo como o poeta apreende o ser do universo – misto de presença e de ausência, de verdade e não-verdade, de sim e de não (O Não e o Sim é aliás título de uma recolha de 1990). Criando um campo semântico sobre a finíssima linha de demarcação entre a afirmação e a negação, o poeta foge da dicotomia, da disjunção, da determinação, num espaço cada vez mais aberto e ilimitado, que se adequa cada vez melhor à manifestação «do que não tem nome». O poeta, que procura entrar em consonância com esse horizonte do real, torna-se também ele corpo místico e mítico do universo, onde se conciliam por fim todos os contrários.
Poesia de coordenadas eminentemente espaciais, ela tem evoluído ultimamente no sentido de uma mais acentuada articulação discursiva, a par de uma aguda consciência da passagem do Tempo, com as questões que essa consciencialização coloca: «será ainda possível construir sobre a cinza do tempo / a casa da maturidade com as suas constelações brancas?»
A. R. R. recebeu vários prémios de poesia, o primeiro dos quais pela obra Viagem Através de Uma Nebulosa, partilhado ex-aequo com Henrique Segurado. Em 1980, o Prémio do Centro Português da Associação de Críticos Literários, pelo livro O Incêndio dos Aspectos; em 1988, o Prémio Pessoa; em 1989, o Prémio APE/CTT, pela recolha Acordes, e, em 1990, o Grande Prémio Internacional de Poesia, no âmbito dos Encontros Internacionais de Poesia de Liège.”
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998
Não posso adiar o amor para outro século

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração
António Ramos Rosa, in "Viagem através duma Nebulosa", Lisboa: Edições Ática, 1960; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 42

 
Um caminho de palavras

Sem dizer o fogo — vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso — duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que eu sei já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.

Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedra, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.
                  
                   Caminho um caminho de palavras
                   (porque me deram o sol)
                   e por esse caminho me ligo ao sol
                   e pelo sol me ligo a mim
                   
                   E porque a noite não tem limites
                   alargo o dia e faço-me dia
                   e faço-me sol porque o sol existe
                  
                   Mas a noite existe
                   e a palavra sabe-o.
António Ramos Rosa ,in "Sobre o Rosto da Terra", Covilhã: Livraria Nacional, col. Pedras Brancas, 1961; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 67
Um Mundo

É um sonho ou talvez só uma pausa
na penumbra. Esta massa obscura
que ela revolve nas águas são estrelas.
Entre aromas e cores, um barco de calcário
prossegue uma viagem imóvel num jardim.
Vejo a brancura entre os astros e os ramos.
Dir-se-ia que o ser respira e se deslumbra
e que tudo ascende sob um sopro silencioso.
Nenhum sentido mas os signos amam-se
e o brilho e o rumor formam um mundo
António Ramos Rosa, in "Acordes", Lisboa: Qu
etzal Editores, 1989 – p. 67

Passagem

É onde escuto agora a própria casa.
Sou eu que escrevo este poema.
Já onde estou agora nada espero.
Ouço o som que vem de estar aqui lembrando
isto que sou agora mesmo esperando.

É onde eu pouso a mão na terra calma
ouvindo quantos anos já vivi,
mas não aqui nem além, agora só
num tempo em que não sou mais que este estar
passando sem passar neste deserto.

É onde agora ninguém me vem chamar
e uma outra luta prossegue imponderável.
O tempo vai chegar mas eu aqui passei
ou algo em mim passou quando o final chegar
deste sem fim que escuto e sou no seu passar.

António Ramos Rosa, in "Voz Inicial", Lisboa: Livraria Moraes, col. Círculo de Poesia, 1960; "Não Posso Adiar o Coração", vol. I da Obra Poética, Lisboa: Plátano Editora, col. Sagitário, 1974

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