sexta-feira, 31 de maio de 2024

Dicionário de Autores

Dicionário de Autores
por Eugénio Lisboa
"O simpático e útil Magazine Littéraire, na sua edição nº385, de março deste ano [2000], publica um Dictionnaire des auteurs, dedicado a escritores portugueses, o qual é apenas parte de uma bem intencionada secção intitulada Écrivains du Portugal. O referido dicionário da‑se como organizado por François Busnel, com a colaboração de seis outras personalidades.
O resultado é, diga‑se de passagem, bizantino. Há limites para o que se pode tolerar, em termos de leviandade, para não dizer, simplesmente, irresponsabilidade. Claro que um pequeno florilégio não podia incluir «tudo». Mas isto não é desculpa para se incluir, por exemplo, na letra «L», Jacinto Lucas Pires (este, já agora, porque não na letra «P»?), à custa de se excluir Fernão Lopes (o nosso maior cronista), Rodrigues Lobo, Gomes Leal, Irene Lisboa, ou mesmo Alberto de Lacerda, António Maria Lisboa ou Óscar Lopes (visto que se inclui Eduardo Lourenço). Na letra «S» não sobrou um nicho para António Sérgio, uma das mais influentes personalidades culturais do século xx português.
Mas há mais: o «V», por exemplo, não chegou para o Padre António Vieira, porventura o nosso maior prosador de todos os tempos (Fernando Pessoa chamou‑lhe «imperador da língua» e ter‑lhe‑ia ficado a dever ter‑se tornado poeta em português…). A letra «R» só contemplou um autor, Wanda Ramos, excluindo‑se, escandalosamente, uma das maiores figuras literárias do século XX, José Régio, além de outros de bem maior peso do que a simpática e, ai de nós!, já falecida Wanda: Bernardim Ribeiro, Aquilino Ribeiro, Alves Redol, Garcia de Resende ou António Ramos Rosa. O «B» chegou para Bocage mas ignorou João de Barros (o das Décadas mas também, se quiserem, o do Anteu), Mário Beirão, Diogo Bernardes, Padre Manuel Bernardes, Edmundo de Bettencourt, António Botto ou Raul Brandão, entre vários outros não descartáveis (Abel Botelho, Maria Ondina Braga, Sampaio Bruno, Francisco Bugalho). O «P» deu para Fernando Pessoa mas esqueceu, intoleravelmente, Pascoais e Pessanha, para não mencionarmos António Patrício ou Duarte Pacheco Pereira… O «A» contemplou Eugénio de Andrade, o que é de aplaudir, mas deixou estranhamente de fora Almada ou Fialho de Almeida. O «C» premiou Camões (era melhor!), mas ignorou Castanheda ou Eugénio de Castro. O «F» deu para Vergílio Ferreira e Almeida Faria (os deuses os possam abençoar) mas não deu para António Ferreira, Branquinho da Fonseca, José Gomes Ferreira, Tomaz de Figueiredo, Manuel da Fonseca, Reinaldo Ferreira (o dos Poemas e não o da morfina, que era seu pai), José‑Augusto França. O «E» achou por bem esquecer Florbela Espanca. O «T» inclui Torga mas ignora, injustamente, Tolentino. Voltando ao «S», deixou de fora, além de Sérgio, Santareno, João Gaspar Simões (que toda a gente gosta de esquecer ou agredir), Ary dos Santos, Joel Serrão, Agostinho da Silva, José Marmelo e Silva, Castro Soromenho, José Augusto Seabra e… Frei Luís de Sousa (um dos grandes prosadores da língua). O «O» não deu sequer para o grande poeta que foi O’Neill (ou Garcia de Orta, ou Ramalho Ortigão, ou Carlos de Oliveira ou o Cavaleiro de Oliveira…). Mas o «T», por outro lado, inclui Tabucchi, que tem tanto direito a ser autor português como tem Graham Greene a ser vietnamita ou sul‑americano.
Será preciso acrescentar alguma coisa? Eu diria apenas que o espírito que preside à organização de um dicionário de autores «deve» ser fundamentalmente diferente do que preside à elaboração de Gente. Há três ingredientes indispensáveis: conhecimento, bom senso e seriedade. É pouco, mas ajuda e é, até, suficiente.

P.S.: Para que me não acusem de ter cometido o pecado de omissão cometido pelos autores do Dictionnaire, faço questão de sublinhar que me limitei a dar alguns exemplos escandalosos de omissão. Mas poderia citar outros: Cesariny, Teixeira Gomes, Alfredo Cortez, Afonso Duarte, Domingos Monteiro, Al Berto, David Mourão‑Ferreira, etc. etc. etc. Eu estava, porém, a criticar um dicionário e não a fazer outro. Para levar a água ao meu moinho, alguns exemplos gritantes bastavam."
Eugénio Lisboa, in Uma Conversa Silenciosa, Imprensa Nacional, Lisboa, 2019, pp. 75-77

quinta-feira, 30 de maio de 2024

A questão do Homem

 
A questão do Homem: a questão de Deus
por António Borges
"Ainda ecoa aquela proclamação que Nietzsche em A Gaia Ciência (1882) colocou na boca de um louco: “Deus morreu! Deus está morto!” Desde então o mundo não é o mesmo. É certo que para Nietzsche Deus tinha de morrer, pois o que a religião proclamava é contra a vida, de tal modo que, com a proclamação da morte de Deus, é o mar infindo das novas possibilidades do sim à vida que se abre. No entanto, à morte de Deus não se seguiria a morte do Homem e do sentido último de toda a realidade?
Segundo as análises de Gilles Lipovetsky, “Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, as derrocadas dos ideais não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo”: isto escreveu ele em A era do vazio - presentemente, parece que já não pensa exactamente da mesma maneira.
De qualquer forma, os espíritos mais atentos julgam que é necessário dar antes razão a L. Kolakowski, o filósofo polaco agnóstico, já falecido, quando afirmou que, desde a proclamação da morte de Deus por Nietzsche, nunca mais houve ateus serenos: “Com a segurança da fé desfez-se também a segurança da incredulidade. Ao contrário de um mundo familiar, protegido por uma natureza benéfica e benigna, como era proposto pelo ateísmo iluminista, o mundo sem Deus dos nossos dias é sentido como um caos opressor, eterno. É um mundo privado de todo o sentido, de qualquer orientação, sinal de direcção, estrutura. A ausência de Deus tornou-se a ferida sempre aberta do espírito europeu, por maior que tenha sido o esforço feito para esquecê-la, recorrendo a toda a espécie de narcóticos.”
De que falamos, quando falamos da morte de Deus? De facto, como escreveu o filósofo Eusebi Colomer, a própria expressão “morte de Deus” não é unívoca, pois pode ter, e tem, múltiplos sentidos. Pode significar que Deus realmente nunca existiu, embora só recentemente tenhamos feito essa descoberta. Pode querer dizer que talvez Deus exista, mas os homens, que outrora se lhe dirigiram pela fé e pela invocação, hoje já não acreditam nele. Talvez queiramos apenas exprimir a experiência de ausência e aparente silêncio de Deus, própria do nosso tempo. Talvez estejamos a referir-nos à necessidade de transcender constantemente as nossas ideias acerca de Deus, e, neste sentido, a “morte de Deus” significa a morte dos ídolos fabricados por nós.
Afinal, que Deus era esse que morreu? Se o Deus verdadeiro é o Deus sempre maior, que transcende sempre tudo quanto possamos pensar ou afirmar dele, então os deuses enquanto ídolos têm de morrer, para ser possível a fé no Deus verdadeiro...
Neste domínio, a pergunta essencial consiste em saber se é possível ser Homem sem colocar a questão de Deus. É que ser Homem é a abertura ao Infinito, e, assim, a questão do Homem é a questão de Deus precisamente enquanto questão. Será que, neste sentido, o Homem é por natureza religioso?
Evidentemente, responder a esta questão é extremamente complexo, pois, à partida, seria necessário perguntar pela natureza do Homem, que não é algo de estável e fixo: a natureza do Homem é histórica. De qualquer modo, embora seja histórico, o Homem possui umas constantes, enquanto capacidades a desenvolver, que permitem não só distingui-lo dos outros animais como constituem também uma realidade transcultural, que faz com que todos os seres humanos, independentemente da cultura e do tempo histórico que lhes é dado viver, formem uma só Humanidade. Pergunta-se então se a religião é uma dessas constantes, ao menos enquanto questão.
Podem ser apresentados alguns sinais que apontam no sentido de um vínculo entre ser ser humano e a religião.
Assim, quando se considera a história da evolução, parece haver consenso no que se refere à apresentação da sepultura como sinal distintivo decisivo na passagem do animal ao Homem. O Homem é animal sepultante. Ora, não há dúvida de que os rituais funerários sempre estiveram ligados à religião. Depois, quando se pensa concretamente nas culturas antigas, a antropologia não deixa de sublinhar o vínculo entre o culto e a cultura no seu todo.
Mas sobretudo não se poderá ignorar que o Homem é um ser que espera. O bebé que vem ao mundo está animado por aquilo que Erik Erikson chamou basic trust, confiança de base, confiança radical, originária, que começa por concentrar-se na mãe, mas que se dirige ao mundo. Se essa confiança for substancialmente frustrada, os estragos no seu desenvolvimento enquanto processo de se ir aos poucos erguendo até poder dizer “eu” de modo expansivo e integrado podem ser irreparáveis. Por outro lado, como observava o teólogo W. Pannenberg, nem a mãe nem o mundo podem corresponder adequadamente a essa confiança radical ilimitada, que, por isso mesmo, só em Deus, portanto, para lá da família, da sociedade e do mundo, poderá encontrar o seu apoio e segurança.
Neste contexto, afirmar Deus não é então também um modo de expressar a confiança no Sentido último, como sugeriu o filósofo Ludwig Wittgenstein? Seja como for, o Homem é o ser da pergunta e, por isso, de pergunta em pergunta, desembocará inevitavelmente na pergunta ao infinito pelo Infinito, por Deus, pelo Fundamento último, pelo sentido de todos os sentidos, o Sentido último.
O que aí fica não prova, evidentemente, a existência de Deus. Significa apenas que a pergunta por Deus é constitutiva do Homem enquanto tal."
António Borges, em artigo de opinião, publicado no DN, em 4 de Maio de 2024

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Sobre a 94.ª Feira do Livro de Lisboa

Parque Eduardo VII, Lisboa 

Feira do Livro de Lisboa maior e mais acessível de sempre começa hoje
"A 94.ª edição da Feira do Livro de Lisboa começa esta quarta-feira, no Parque Eduardo VII, naquela que será, segundo a organização, a maior de sempre, com um horário alargado e melhorias ao nível da acessibilidade.
Até 16 de junho, 350 pavilhões, com 960 marcas editoriais, representadas por 140 participantes, vão ter disponíveis para venda ao público 85 mil títulos, a que juntarão diversas iniciativas, entre sessões de autógrafos, conversas com escritores, espetáculos de música ou cinema ao ar livre.
Entre os destaques para esta quarta-feira, conta-se o encontro de autores “Poesia africana”, com Conceição Lima, Ana Paula Tavares, João Melo e Ondjaki, e uma conversa em torno do livro “Oriente Próximo”, com Alexandra Lucas Coelho, Shadd Wadi e a participação especial de Dima Akram.
Fernando Aramburu, Jean-Baptiste Andrea, Jeferson Tenório, Joël Dicker, Leila Slimani e Michael Cunningham são alguns dos autores internacionais que vão passar pela feira, juntando-se a nomes da literatura nacional como Afonso Cruz, António Jorge Gonçalves, Hugo Gonçalves, Joana Bértholo, João Tordo e Lídia Jorge, entre muitos outros.
A edição da Feira do Livro de Lisboa deste ano chegou ao limite máximo da capacidade, com mais 10 pavilhões e duas novas praças, não sendo possível estendê-la mais nos próximos anos, disse à Lusa o presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), responsável pela organização do evento.
Uma das novidades deste ano é a forte aposta na acessibilidade de pessoas com mobilidade condicionada, graças a um protocolo assinado com a Access Lab (empresa que trabalha a questão da acessibilidade em Portugal, pelo direito à cultura das pessoas com deficiência) para os próximos três anos.
Já nesta edição, haverá mais casas de banho com acesso para pessoas de mobilidade condicionada e haverá também fraldários, em resposta aos pedidos das famílias.
Adicionalmente, as rampas vão estar mais bem sinalizadas e vai haver “uma formação bastante intensa por parte da Access Lab quer ao staff da APEL, quer aos participantes, para poderem dar informação adequada às pessoas de mobilidade condicionada”, especificou o presidente da APEL, Pedro Sobral.
A parte da programação também será mais acessível, com uma agenda específica de eventos com língua gestual portuguesa, e a existência de um alfabeto de cores para daltónicos, que, entre outras coisas, ajuda as pessoas a orientarem-se nas praças, que são definidas por cores.
Outra novidade é a antecipação do horário de abertura da feira, que passa a abrir às 12h00 durante a semana, e às 10h00 ao fim de semana e feriados.
O horário de encerramento mantém-se às 22h00, com exceção dos sábados, sextas-feiras e vésperas de feriado, em que fecha às 23h00."(Sapo)
 
Guia para a Feira do Livro de Lisboa 2024
Festivalar sem espiga
"A acessibilidade para quem tem mobilidade reduzida continua a ser uma das prioridades da organização. Neste sentido, foram introduzidas várias melhorias nas rampas de acesso aos equipamentos e reforçada a oferta de casas de banho adaptadas. No site da feira, que entretanto deverá ficar completamente operacional, poderá encontrar toda a informação de que necessita acerca de transportes públicos, locais de estacionamento, entradas e acessos. Além disso, haverá programação com Língua Gestual Portuguesa e, numa parceria com a ColorADD, estreia-se um “alfabeto das cores”, que permite aos daltónicos identificarem os diferentes espaços da feira através do mapa, de placas de sinalética ou mesmo na designação das praças onde decorrem os vários eventos culturais.

Livrar-se do peso (e de outros dramas)
Este ano, haverá serviço de bengaleiro, que permite não só guardar casacos e outros acessórios, como as compras que for fazendo e até carregar telemóveis ou fazer expedição de livros por correio. E, graças a uma parceria com o Centro do Bebé, também vão estar disponíveis espaços de apoio às famílias, junto à entrada Sul da feira, para que seja possível mudar fraldas, amamentar ou dar comida aos bebés. Já no topo Norte, encontrará um segundo espaço com condições para amamentação e fraldário.

Conversar com autores
Entre lançamentos e apresentações de livros e sessões de autógrafos, o que não faltará são momentos para conversar com os seus autores preferidos. Só na Praça LeYa estão programadas mais de 100 sessões de autógrafos e apresentações: aí os destaques vão para o espanhol Fernando Aramburu, que irá apresentar o seu mais recente romance, Filhos da Fábula; a brasileira Djamila Ribeiro, que lança Cartas Para a Minha Avó numa sessão com Gisela Casimiro e Kalaf Epalanga; e a jovem belga Alix Garin, que estará presente para conversar sobre o romance gráfico Não Me Esqueças.
Estão também previstas sessões de autógrafos de nomes como, por exemplo, Valter Hugo Mãe (1 e 2 Jun), Miguel Sousa Tavares (1 Jun), Inês Pedrosa (1 e 16 Jun), Dulce Maria Cardoso (1 e 15 Jun), Ricardo Dias Felner (1 Jun), José Luís Peixoto (2 Jun), Filipa Beleza (2 Jun) e Patrícia Reis, (9 e 13 Jun). Entre os nomes internacionais, destaque, por exemplo, para Michael Cunningham (Prémio Pulitzer pelo romance As Horas), que estará em Lisboa de 30 de Maio a 3 de Junho, para o lançamento de Dia.
Para os mais novos, um dos grandes destaques é a vinda dos brasileiros Gabriel Dearo e Manu Digilio, que saltaram do Youtube para a literatura com a colecção As Aventuras do Mike, que em Portugal já vai no terceiro volume. Igualmente dignas de nota: a conversa entre Afonso Cruz e Mantraste a propósito da Missão: Democracia, uma colecção para crianças e jovens editada pela Assembleia da República; a apresentação de O Peso das Palavras, da cantautora Luísa Sobral; e o lançamento de A Minha Madrasta, de Inês Neves Rosa e Mariana Dimas, tudo no dia 1.

Ficar com água na boca
Nem só de livros se faz a Feira do Livro. Este ano, voltamos a ter showcookings na Praça Verde, como os de Sérgio Garcês, autor do livro Pão Com Cenas. Streefood à portuguesa (1 Jun); Carolina Almeida, autora de Comida de Bebé (2 Jun); Gabriela Oliveira, autora de Cozinha Vegetariana Para Ganhar Tempo (2 Jun); Susete Estrela, autora de Sabe o Que Anda a Comer? (7 Jun); e Rita Nascimento, mais conhecida por La Dolce Rita, que lançou recentemente Na Travessa (9 Jun), entre muitos outros (Chakall incluído, claro).

Abastecer na Hora H
Prepare-se para correr as capelinhas todas por um desconto. Entre 29 de Maio e 16 de Junho, de segunda a quinta-feira (excepto feriados), das 21.00 às 22.00, as editoras aderentes vão fazer descontos mínimos de 50% em títulos publicados há mais de 24 meses. Oportunidade perfeita para leitores ávidos, que devem começar já a pensar como evitar a bancarrota. É que, acredite, as tentações vão ser muitas.

Aproveitar a programação das BLX
Como é habitual, as BLX (Bibliotecas Municipais de Lisboa) voltam a ficar responsáveis pelo grosso da programação infanto-juvenil, que inclui desde oficinas e jogos até apresentações de livros, como No Meu Bairro, de Lúcia Vicente, que estará no Espaço Infantil da Tenda das BLX no dia 8 de Junho, às 15.00. Já para os crescidos, recomenda-se uma conversa com José dos Remédios e Ana Bárbara Pedroso (vencedores da edição de 2024 do programa de intercâmbio literário entre Lisboa e Maputo), moderada pelo jornalista Manuel Halpern, no dia 2 de Junho, às 16.00. No mesmo dia, está previsto também, por exemplo, um encontro dedicado a Livros e Leituras Feministas, às 17.00; e outro com o Coro de Leitoras em Voz Alta de Oeiras, às 18.00. Mas, para não perder pitada, o melhor é consultar a brochura completa.

Visitar a Casa da Leitura
Este ano, o Plano Nacional de Leitura volta a marcar presença com um espaço próprio e uma série de iniciativas para toda a família. Destaca-se o Consultório de Leitura, onde os leitores encontram sugestões de leitura de acordo com o seu perfil; o Clube de Leitura, que terá três sessões com Inês Maria Meneses, Gisela Casimiro e João Tordo; e um encontro para Ler e Conversar com Música, inspirada no sucesso do projecto nova-iorquino Reading Rythms.

Ir ao cinema
Está prevista pelo menos uma sessão de cinema. No dia 15 de Junho, a partir das 20.00, no Auditório Sul, poderá ver o filme de animação japonês Naze Ikiru, que conta a história de um jovem camponês que, depois de perder a esposa grávida, é convidado a assistir à palestra de um monge budista. Segue-se a apresentação do livro Porque Vivemos, de Kentetsu Takamori, no qual o filme se inspira.

Treinar o ouvido
No Dia Mundial da Criança, 1 de Junho, há concerto da Orquestra Geração. É apenas o primeiro. Entre os destaques, temos Lusíada Ensemble, com coordenação do professor doutor Massimo Cavalli (3 Jun); o coro feminista e LGBT O Alarido (4 Jun); JP Simões (7 Jun); Ela Li (14 Jun); e The Grasshoppers & D. H. Machado para um final de tarde de jazz e poesia (16 Jun).

Doar livros
A campanha Doe os seus Livros, uma parceria da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros com o Banco de Bens Doados, está de volta. As ofertas vão ser encaminhadas para as crianças apoiadas por instituições da Entrajuda. Desde 2015 que já foram angariados mais de 264 mil livros."( Time Out))
Editora Guerra & Paz
A Feira do Livro de Lisboa está quase a começar - é já no dia 29 de maio - e vai poder encontrar-nos no pavilhão B29. Acompanhe todas as novidades pelas nossas redes sociais e pelo link abaixo que vai estar em constante actualização.
E não se esqueça de nos vir dizer olá!
Feira do Livro de Lisboa

domingo, 26 de maio de 2024

Ao Domingo Há Música

Esperança

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E — ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança…
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
Mário Quintana , Antologia poética (2015).

Quando a Esperança é o tema , o alvo que leva a começar tudo de novo. Poesia e Música em total simbiose.
Hope , por Tyle & Amy Wallace [Orchestral music] 2024. Música de  Tyle .Arranjos vocais de  Amy Wallace.  Guitarra de Tyle e Fotografia de Camille Sauty.

 

sábado, 25 de maio de 2024

No 94º Aniversário de Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa (25.05.1930 - 09.04.2024),
com um dos gatos que teve ao longo da vida

Sobre a minha pouca importância
 
O que é ser e o que é não ser?
Haverá, então, alguma diferença?
Meu ser fez a galáxia estremecer?
Pra luzir, ela pede-me licença?
 
Que peso tem, na galáxia, meu ser?
Que peso tem minha insignificância?
Fez alguma diferença o meu nascer?
Trouxe significado e importância
 
eu ter nascido e ter tido infância?
O mundo, sem mim, seria pior?
Trouxe comigo alguma concordância?
 
Ou tornou-se o mundo melhor?
Eu, quanto mais penso, menos existo
e, não existindo, fico-me nisto.
                     05.07.2023
Eugénio Lisboa, (poema inédito)

Neste soneto inédito , o poeta questiona-se sobre a  sua importância . Se a sua existência terá tido alguma significância. Era assim Eugénio Lisboa. Um escritor extraordinário que tornava maior qualquer forma literária onde espraiasse o seu talento. Poeta , cronista, memorialista ,  crítico literário , ensaísta, jornalista, Eugénio Lisboa escreveu páginas admiráveis que marcaram a sua passagem e engrandeceram a Literatura. 
Sim, Eugénio Lisboa marcou a diferença. Trouxe às Letras e à Cultura a argúcia, o saber inteligente de um homem erudito, independente e que teimava sempre pensar pela sua própria cabeça , apesar da  unanimidade podre que , por vezes,  grassava no meio cultural português. Nunca pretendeu ser a voz dissonante , mas  ser claro , profundo   em todas as  muitas  iluminadas asserções que foi produzindo. Com ele, o mundo ganhou significância  ao tornar-se fonte de prazer , de  conhecimento, de aprendizagem. 
Neste 25 de Maio  de 2024, Eugénio Lisboa faria 94 anos. Deixou-nos a 9 de Abril. É o primeiro aniversário em que não o podemos saudar em pessoa. Fica-nos a grande presença das suas palavras, nesta  sentida ausência.  
Homenagear um escritor é recordar a sua obra. Fomos a um dos diários de Eugénio Lisboa e seleccionámos algumas das entradas sobre uma viagem a Moçambique. Lourenço Marques,  a cidade natal que  se tornou Maputo, é revisitada e  a memória de um tempo vivido chega aposto e  em confronto com a  nova realidade. A África, onde nasci, sobrava./ Era África por todos os lados,/olhava-se e nunca mais acabava,/nasciam pra sempre laços sagrados . 
Nesta viagem,  Eugénio Lisboa é homenageado pela Escola Portuguesa de Moçambique.
"Maputo, 08.05.2007 (Terça feira) – Cheguei aqui no domingo de manhã, após oito anos de ausência. Vim sem apetite e sem grande tumulto interior. Uma viagem infernal, de avião, depois de uma partida surrealista, na Portela: quarenta minutos de pé no autocarro que nos levaria ao avião. Quarenta minutos à espera de Godot. E, como de costume, sem a cortesia de uma explicação e de um humilde pedido de desculpas.
À chegada, à minha espera, a directora da Escola Portuguesa de Moçambique, Albina dos Santos Silva. Mulher das Arábias: autêntica construtora de impérios. Levou-me ao hotel e, depois de um banho, passeio pela marginal, Costa do Sol e a Ilha dos Pescadores. Estava tudo ainda na minha memória, isto é, estava e não estava: o velho Pavilhão da Polana desapareceu, embora o Clube Naval ainda lá esteja, referência imortal. De resto, centenas de casas que já são dos últimos anos.
Indo pela estrada do Palmar (não sei se ainda se chama assim), sinto pungir-se-me o coração: como eu já fui feliz, aqui, num tempo em que o presente era cheio e havia ainda tanto futuro à minha espera (à nossa espera). Um tempo em que toda a gente estava viva (a mãe, o pai, a tia Maria, os sogros, os amigos) e em que se festejava ainda o dia dos meus anos. Agora quase só há passado e mortos e o futuro é melhor não pensar nele.
No próprio domingo, depois de ter encontrado, por acaso, a Luísa Agapito no Restaurante Cristal (em frente ao que foi o meu velho liceu – que já não existe!), fui visitar, com ela, o nº 510 da outrora Av. Massano de Amorim, onde vivemos de 1964 a 1975. Desta vez, tinham arrancado os taipais em frente à casa e pude espreitar a sala de visitas, a janela do que fora o meu escritório e a do nosso quarto de dormir; o jardim por onde cirandava a generala e o Riscadinho (gatos) e onde, uma vez por outra, fazíamos um jantar ao ar livre. Parece que foi tudo há tanto tempo, noutra encarnação, impossivelmente nesta mesma casa… Há, no que sinto, um misto estranho de alegria e de angústia, de sentimento de uma enorme perda irremediável, de vontade de ir muito depressa para outro lugar, de onde possa recordar estes sítios, com as pessoas que lá tinham estado e enchido a minha vida – agora a esvaziar-se e a esmorecer. Como tudo era bom! Como tudo era cheio de sentido e de promessas! E como os deuses se divertem connosco!
 
Maputo, 09.05.2007 – Armando Guebuza congratula Sarkozy. L’on aura tout vu. Quem os vê e quem os viu, em 1975 – todos então muito puristas, muito puritanos, muito espartanos, muito fundamentalistas de um marxismo-leninismo muito quimicamente puro, isto é, muito incontaminado pelos vícios burgueses. Quem os vê e quem os viu.
Resultado da explosão do paiol: os americanos ajudam maciçamente. O mundo é feito de mudança. Grande Camões.
A Escola Portuguesa: uma obra de grandeza, ambição e teimosia. E uma infinita atenção ao pormenor. Tão pouco português, até certo ponto… 
Ainda não contactei quase ninguém. Falta de tempo, de energia, de tudo. 
O outono está bonito como estava no tempo de antigamente. Eu é que já não estou tão bonito: nem por dentro nem por fora. 
Ouvir os políticos na televisão: as mesmas fórmulas vazias, a mesma retórica arredondada, o mesmo paleio que tão bem contorna a realidade pelintra e, às vezes, trágica.
Na televisão, um pescador queixa-se: há peixe e camarão em abundância, mas não tem nem frigorífico nem barco. Vai para o mar de canoa. Perguntam-lhe quais as dificuldades que sente. Diz que não há dificuldades, só que não existe nem barco nem frigorífico. Portanto, o peixe que pesca, com dificuldade, apodrece.
Ontem à noite, jantar, a convite da Luísa Agapito. No Zambi, reaberto ao fim de dois anos de estar fechado. Só vagamente reconheço, por dentro, o Zambi dos meus tempos moçambicanos. Tudo muda tanto e tão depressa, que podemos ler, nisto, o que será o desaparecimento rápido de nós na memória dos outros. 
Encontro um simpático José Esteves, que foi aqui professor, nos tempos em que eu me “agitava” intelectualmente em Lourenço Marques. Diz que eu era um “guru”, para ele e para outros, “muito acima de tudo quanto aqui se escrevia”. Exagero, claro, mas é sempre bom saber que já fizemos bem a alguém, que estimulámos intelectualmente algum contemporâneo. O Lourenço do Rosário também me chamou “guru”, ontem, no colóquio. Não há dúvida: devo estar prestes a desaparecer. Quando os mimos chegam, o fim não anda muito longe.
À tarde, de regresso ao hotel. A manhã foi-me, em parte, consagrada. A mesa presidida, na 1ª parte, por Fernando Cristóvão, depois substituído pelo Calane da Silva (sempre amistoso, minucioso e inteligente) (...) Depois, passou-me, para eu ler, um soneto que eu em tempos escrevera para a revista O Escritor: “Paráfrase camoniana, com paisagem mas sem ninfa (A pensar em Moçambique)”. Quando cheguei ao primeiro verso do último terceto, a voz ameaçou fraquejar; quando cheguei ao segundo verso, embargou-se-me a voz por completo e não consegui continuar: “Sem ela, eternamente miserando” parou no “sem ela”. Se continuasse romperia a chorar. Em suma, dei raia. 
Li o meu texto: “50 Anos”. Creio que o li bem e, no fim, tive uma longuíssima salva de palmas (de pé e tudo). Abraços, beijinhos, accolades. A prodigiosa presidente da Escola Portuguesa, a grande Albina, chamou-me depois ao palco, deu-me o título de “aluno honoris causa”, ofereceu-me uma camisa da escola e um presente que ainda não tive a coragem de desembrulhar. E mandaram, entretanto, fazer um marcador de livros, com o poema em que eu emperrara, 3 fotografias minhas e a minha assinatura. Veio a televisão e não sei que mais. O carinho de semelhante acolhimento deixa-me sem palavras. Sempre que venho à minha terra natal é isto. Poder-se-ia perguntar: por que a deixei? 
À tarde, inauguração de um obelisco, com um poema de Miguel Torga, na Escola.  Depois, fui com o Nataniel Ngomane a casa do José Craveirinha, na Mafalala, ver o espólio do poeta, a pedido da Ana Mafalda. Tenho a impressão de que me vim despedir de Moçambique, onde descobri que estar vivo era bom e que com pouco se conseguia ser feliz. Aqui aprendi a alegria de ler e amar, aqui tive tudo quanto vale a pena ter. (Nota: comprei aqui um gala-gala, em arame, pintado de azul, que todo eu me consolei! O gala-gala levou-me aos meus tempos de infância, no Largo João Albasini e na Estrada do Zixaxa.)
 
Maputo, 11.05.2007 – Esta terra. Passo pelos sítios que conheço e penso: foi aqui – só aqui – que me senti, alguma vez, protegido. Sobretudo, na adolescência, quando, à noite, terminado o ano lectivo, vinha da matiné do Scala – a matiné das cinco da tarde – a caminho de casa, noite fechada, depois de ter visto um filme de terror com o monstro de Frankenstein, e me esperava, em casa, um jantar de apetecidos rissóis de camarão. Ali, havia eternidade à minha espera… Tudo aquilo, aquele conforto (conforto de pobre, mas conforto), aquela certeza, aquela confiança – davam-me uma grande e deliciosa segurança. Foi nessa altura – e nunca mais.
Ontem, visita ao Kruger Park. A última: não voltarei lá. Vimos tudo: girafas, elefantes, impalas, pacaças, zebras, macacos, hipopótamos, crocodilos, porcos espinhos e um grupo impressionante de três rinocerontes pretos e enormes. Cada um deles – dez toneladas de estupidez e mau feitio. Um dos “meninos” voltou-se decididamente para nós e esteve uns minutos a decidir se “carregava” ou não. Finalmente, decidiu-se a votar-nos ao desprezo.
Na fronteira de Ressano Garcia (o lado moçambicano), é o caos burocrático. Maneira eficaz de desencorajar o turista. Do lado sul-africano, as empregadas negras quase nos atiram o passaporte à cara, talvez num descomprimir de ressentimentos antigos. E as empregadas brancas fazem quase o mesmo, para mostrarem zelo e sintonia com as camaradas negras (quem as não compreende?) Eu, embirrento, compreendo tudo mas, mesmo assim, não gosto. 
Leio pouco: cansado, à noite, dá-me o sono. E temos sempre de nos levantar cedo.
Telefona-me o Armando Monteiro, meu antigo colega de gasolineiras (ele, da Shell). Reconheço-o logo pela voz. Vou vê-lo à tarde. Diz-me que o Teles, colega electrotécnico, está bom de cabeça, mas frágil, fisicamente. Que se repete muito, sinal que não mente. Lá chegaremos todos, como diria o Álvaro de Campos. E, no fim e ao cabo, os escritores e os artistas, em geral, também passam a vida a repetir-se.
O nosso grupo é extraordinariamente simpático. Nem uma ovelha ranhosa a estragar o baralho, o que é sensacional. Gente descontraída, bem humorada, boa conversadora, prestável. Que bela Arca de Noé, se disso fosse caso!
Dentro de meia hora, saímos para uma volta à cidade. Vamos ver o que nos mostram. Felizmente, já fui à nossa casa da Massano de Amorim e já espreitei o nosso último apartamento no Miradouro. E passámos ao largo do Língamo, onde eu e a MA e a Geninha vivemos, de 1959 a 1964. Uma médica simpática (e bonita), que diz ter sido nossa vizinha na Fernandes da Piedade, veio falar-me e trazer-me o desejo de ali ir espreitar um pouco do meu passado… Talvez convença o Armando Monteiro a levar-me lá. Com isso fico com as contas todas arrumadas.
A manhã toda a revisitar lugares: o mercado, a Casa Elefante (onde comprei quatro lenços para levar à MA), a Biblioteca Nacional (que guarda, no jardim, uma estátua do Salazar), a Fortaleza (onde cavalga, altivo, o Mouzinho de Albuquerque e onde jaz e apodrece o Gungunhana, se é que os restos dentro daquele caixão são realmente dele), o Jardim (Vasco da Gama) e o Teatro Gil Vicente, de que desapareceu a entrada para o Café adjacente (informar a Maria de Lourdes Cortez), a Pastelaria Hazis, em cuja esplanada se sentava todas as manhãs o Aristides Coelho, admirável cronista e implacável republicano que odiava Salazar 24 horas por dia, a Casa de Ferro, etc. Ao lado da Pastelaria Hazis, um rapaz novo vendia livros velhos. Comprei-lhe, perversamente, adivinhem o quê? Um manual de electricidade…
De manhã, fomos ainda à estação dos caminhos de ferro, na Praça MacMahon. Fui variamente fotografado, na plataforma de onde saí de Moçambique, em Março de 1976. Foi um momento dilacerante, que nunca esquecerei, com o Francisco Bomba (meu empregado na TOTAL) a chorar desabaladamente no meu ombro. Causou-me agora impressão ver aquela plataforma: os momentos intensos ali vividos, o embarque, a viagem tormentosa, com a “generala” alucinada a trepar por todo o compartimento da carruagem. O fim de uma era. E o fim de um tempo feliz, onde prevaleceram o amor, a amizade, o convívio, a cultura…"
Eugénio Lisboa, in Aperto Libro IV - 2007-2012,  pp.7-11

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Mudança

Os tempos, as vontades , as memórias
mudam-se e também a confiança.
Tudo se muda e as antigas glórias .
mudam, ferem fundo a lembrança.

Chegamos onde chegamos , feridos.
Lembrado, o fulgor vivo, perdido,
gosto no fluir dos anos seguidos,
vela o viço hoje desaparecido.

Já a neve fria deita o seu manto
nocturno sobre o que ontem foi dia
assim cessa o explodir do nosso canto.

Muda-se a noite após mudar-se o dia,
tudo se muda,   até nosso espanto:
certa permanece a nossa agonia.
                   Estocolmo, 1977
Eugénio Lisboa, in A matéria Intensa, Editora Peregrinação, Abril de 1985, p 33


Aquela África não acabava

A África, onde nasci, sobrava.
Era África por todos os lados,
olhava-se e nunca mais acabava,
nasciam pra sempre laços sagrados.

Nascer ali era ver o começo
de tudo: a areia da praia, o mar,
a chuva grossa, o sol quente, sem preço,
os mistérios do sexo a acenar.

A grandeza prometia grandeza,
os sonhos em nós não eram mesquinhos!
Visávamos grande, com a certeza

de irmos abrir bem novos caminhos!
Estar bem dentro daquele continente
não era dado a pequenina gente!
                           17.03.2024
Eugénio Lisboa, (poema inédito)

quarta-feira, 22 de maio de 2024

A nossa vida é uma viagem

A nossa vida é uma viagem. Mas é uma viagem com muitas viagens dentro. Não é por isso uma viagem arrumada, limpidamente euclideana, com um guião rectilíneo impecável. É uma viagem aos trambolhões, cheia de sobressaltos e de objectivos não realizados, cheia de fracassos e, até, de alguns acertos."
Eugénio Lisboa , 22 de Outubro de 2011, Universidade de Aveiro

   
Gautier Capuçon interpreta Méditation  , da ópera Thaïs, de Jules  Massenet
Thaïs é uma ópera em três actos de Jules Massenet para um libreto em francês de Louis Gallet, com base no romance homónimo de Anatole France.
Gautier Capuçon  em Der Karneval der Tiere – Der Schwan , de Camille Saint-Saëns, acompanhado pela Frankfurt Radio Symphony , sob a direcção do Maestro Alain Altinoglu.

terça-feira, 21 de maio de 2024

Da disputa entre Ciência e Religião


"O UNIVERSO PROIBIDO". Da disputa entre Ciência e Religião à procura do conhecimento.
"Em 1543, no seu leito de morte, o astrónomo Nicolau Copérnico publicou uma obra fundamental que mudou o mundo, estabelecendo o modelo do cosmos centrado no Sol. Para a maioria dos historiadores, foi este facto que marcou o início da Revolução Científica, mas uma visão alternativa demonstra que ela foi desencadeada pela descoberta de antigos manuscritos egípcios há muito desaparecidos, como o Corpus Hermeticum.
No livro “O Universo Proibido”, Lynn Picknett e Clive Prince trazem a história até aos dias de hoje, mostrando que a visão do universo que emerge das últimas descobertas científicas justifica a crença hermética de que ele permanece em evolução, vivo e consciente, e revela uma verdade escondida durante séculos: a de que uma antiga tradição espiritual contém a chave para a verdadeira origem da ciência moderna."
Transcreve-se um excerto do primeiro capítulo desta  obra:
Livro: "O Universo Proibido"
Autor: Lynn Picknett e Clive Prince
Editora: Alma dos Livros
Data de Lançamento: outubro de 2023
Preço: € 22,00
 

Capítulo Um
COPÉRNICO E O SEGUNDO DEUS
"Há três acontecimentos fundamentais que os historiadores da ciência citam como marcos na longa viagem da superstição à iluminação intelectual: a formulação da teoria heliocêntrica por Copérnico (1543), a perseguição da Igreja a Galileu por promover essa teoria como facto (1633) e a publicação dos Principia Mathematica, de Isaac Newton (1687), que definiam leis fundamentais da Física, nomeadamente as do movimento e da gravidade. Como disse um eminente historiador da ciência: «A série de desenvolvimentos iniciada com Copérnico em 1543 e encerrada com Newton em 1687 pode ser designada de Revolução Científica.» No entanto, estes grandes avanços não foram feitos por Copérnico, Galileu e Newton elevarem a pura razão acima da irracionalidade religiosa, mas sim por serem todos eles inspirados pela mesma filosofia assumidamente metafísica e orientada para a magia – uma que também excitou e motivou outras grandes mentes da época, incluindo o nosso próprio herói especial, Leonardo da Vinci.
Para os materialistas racionalistas de hoje, a desagradável realidade é que não só houve um pensamento mágico a borbulhar durante todo o Renascimento, como foi a magia a inspirar e a impulsionar toda a explosão de pensamento e conquista dessa era. De forma muito real, a magia fez o mundo moderno.
O acontecimento que é tido como o momento crítico, o início do separar das águas entre ciência e religião, é a formulação da teoria heliocêntrica, ou «do Sol como centro», do cosmos, que postulava que a Terra gira à volta do Sol e não, como se pensava, o contrário. Esta nova e radical ideia foi proposta por Nicolau Copérnico (1473-1543), como se intitulava o cónego polaco Mikolaj Kopernik, à maneira dos estudiosos contemporâneos.
Até então, a astronomia e a sua gémea esotérica, a astrologia, baseavam-se tradicionalmente na crença de que a Terra estava no centro do universo. Tratava-se de uma suposição natural, visto que o Sol, a Lua e as estrelas parecem mover-se à nossa volta em ciclos regulares, enquanto o mundo onde nos encontramos parece estar estático. A única complicação deste sistema era suscitada pelo movimento dos cinco planetas visíveis a olho nu, que, apesar de demonstrarem um padrão, não pareciam girar simplesmente à volta da Terra. No século II d. C., o astrónomo e matemático greco-egípcio Cláudio Ptolomeu, conhecido também apenas como Ptolomeu, concebeu um modelo geocêntrico com um complexo sistema de ciclos e epiciclos para explicar os movimentos dos planetas. Era a única grande autoridade astronómica até Copérnico entrar em cena.
Estranhamente, para uma figura tão monumentalmente influente, sabe-se muito pouco sobre a pessoa de Copérnico, ainda que as linhas gerais da sua vida estejam bem documentadas. Nasceu em Torun, na Polónia, em 1473, filho de um mercador de cobre, daí o nome. O seu pai morreu quando ele era novo, deixando-o a criar a um tio, que era cónego. Após estudar direito canónico, prolongou a sua estada no estimulante ambiente da Itália renascentista formando-se em direito e medicina em Pádua, na República de Veneza. Artista e desenhador talentoso, a sua verdadeira paixão era a astronomia, à qual dedicava muito do seu tempo livre.
Ao tornar-se bispo, o tio de Copérnico conseguiu-lhe um emprego como administrador da igreja, ou cónego, na vila de Frombork. Viveu o resto da sua vida instalado numa torre – hoje conhecida como Torre de Copérnico – no átrio da catedral. Os seus restos mortais só foram encontrados no ano 2000, sob a mesma. Enquanto clérigo ordenado, Copérnico estava proibido de se casar, mas parece que pode não ter vivido totalmente em celibato, segundo rumores que o associavam à sua governanta. Isto não caiu bem junto das autoridades da Igreja.
Os seus deveres davam-lhe tempo de lazer suficiente para a sua paixão pela astronomia, a que se dedicava na sua torre. Como muitos astrónomos da época, Copérnico estava insatisfeito com os artifícios e correções necessárias para fazer funcionar o sistema de Ptolomeu, e por isso decidiu abordar o problema. Porém, ao contrário da vasta maioria, os resultados obtidos por Copérnico mudariam a astronomia para sempre.
Ele desenvolveu a sua nova e radical teoria na primeira década do século XVI, mas absteve-se de a tornar pública durante muitos anos, contentando-se antes com discussões académicas e com a redação de uma versão para circulação privada no início dos anos 1510. Só publicou o que designou de a sua «nova e maravilhosa hipótese», Das Revoluções das Esferas Celestes (De Revolutionibus Orbium Coelestium), no final da sua vida – as últimas provas foram-lhe entregues no seu leito de morte em 1543. O popular autor científico Paul Davies diz que este livro «talvez seja o nascimento da própria ciência».
Ao contrário da crença comum, Copérnico não adiou a publicação até a morte o deixar a salvo da ira do Vaticano. Só estava relutante em ir a público devido à controvérsia académica que a sua teoria iria gerar, e só aceitou escrever o seu livro sob pressão de colegas que estavam empolgados com ela. Até o papa Paulo III tinha ouvido entusiasticamente uma palestra sobre o tema dada pelo seu secretário, o estudioso alemão Johann Widmannstetter, dez anos antes da publicação de Das Revoluções. Um cardeal que assistiu à palestra, o arcebispo de Cápua, esteve entre os que exortaram Copérnico a escrever e publicar a sua teoria. Lá se vai a percepção atual da hostilidade da Igreja
 
Das Revoluções apresentava três novas e controversas ideias: que a Terra se move pelo espaço, que gira em torno do seu eixo e, com os outros planetas, à volta do Sol. Copérnico apontava falhas ao velho sistema ptolemaico e expunha as observações que o levavam a propor um novo modelo do universo. Na trigésima primeira página, revela a sua revolucionária, e até chocante, tese na forma de um diagrama que mostra os planetas, na sua ordem correta, a circundar o Sol.
E, apenas quatro linhas abaixo do importantíssimo diagrama, faz uma afirmação extraordinária:
Assim [atendendo à posição central do Sol], não é insensato que tenha sido designado de lâmpada do universo, ou sua mente, ou seu soberano. [É] o Deus visível de Trismegisto...
Copérnico associava assim o lugar físico do Sol no sistema solar a conceitos decididamente transcendentes: que aquele é a «mente» do universo ou a sede do poder que governa toda a criação, ou o «Deus visível de Trismegisto». E é nessas quatro palavras que reside a maior pista para entender a teoria de Copérnico, pois revelam um indício da verdadeira heresia que ia abalar o Vaticano até aos seus alicerces.
HOMEM, O MILAGRE
Para descobrir o porquê de a referência de Copérnico ter sido – e, em certos aspetos, continuar a ser – tão revolucionária, temos de recuar a outro documento seminal, publicado mais de meio século antes, que citava a mesma autoridade misteriosa.
Era ele um tratado que muitos denominaram de manifesto do Renascimento, visto que cristaliza e encarna o espírito e o propósito dessa nova era. Publicado em Roma em 1487, ficou conhecido como o Discurso sobre a Dignidade do Homem (De Hominis Dignitate). Destinado a ser apresentado como uma palestra pública, mas nunca proferido, foi escrito aos vinte e quatro anos por Giovanni Pico della Mirandola (1463-94). Enquanto filho mais novo do regente da cidade-estado de Mirandola, no Norte de Itália, e príncipe de Concórdia, o nome de Pico era já conhecido. Ainda que a sua família pudesse não passar de uma nobreza de segunda, estava ligada pelo casamento a dinastias ilustres, como os Sforzas de Milão e os Estes de Ferrara. Pico tinha herdado influência, e tinha todo o gosto em a explorar.
Quando chegou a Roma vindo de Florença, após frequentar várias universidades, incluindo a de Paris, Pico levava consigo um conjunto de novecentas teses – declarações de várias tradições filosóficas, místicas e esotéricas – que, afirmava, eram mutuamente consistentes e conciliáveis. Disse que o demonstraria num debate público perante a elite intelectual de Roma. No entanto, como a maioria das suas fontes não era cristã, o seu pedido de um debate público foi recusado e a sua obra condenada. Estava em Roma, afinal.
Pico, porém, não seria assim tão fácil de descartar. Com uma coragem e uma temeridade incríveis (uma combinação que distingue muitos heróis do Renascimento), publicou uma Apologia – uma defesa, na verdade –, que incluía as suas novecentas teses e o que teria sido o seu discurso de abertura no debate, o Discurso sobre a Dignidade do Homem.
Tal como a sua escolha de título sugere, o ponto fundamental de Pico dizia respeito ao brilhantismo da humanidade e ao seu lugar privilegiado na criação. Para ele, a faculdade distintiva de um ser humano é o seu intelecto, a fome de conhecimento e a capacidade de a satisfazer.
Segundo a parábola de Pico, após ter criado o universo e o ter povoado com os seres angelicais do Céu e os animais da Terra, cada um com a sua natureza e função específica, Deus precisava ainda de uma criatura «para pensar no plano da sua grande obra». Uma vez que todos os nichos do ecossistema cosmológico estavam já preenchidos, Deus decretou que o Homem devia «ter posse conjunta de qualquer natureza que tivesse sido dada a qualquer outra criatura». Além disso, sendo de uma «natureza indeterminada» que não era «nem celestial nem terrena, nem mortal nem imortal», o Homem podia escolher com o seu próprio livre-arbítrio os atributos de qualquer outro ser criado, terreno ou celeste. Só o Homem tem a flexibilidade de escolher o seu próprio caminho:
 [...] Com a agudeza dos seus sentidos, a acuidade da sua razão e o brilhantismo da sua inteligência, [é] o intérprete da natureza, o ponto nodal entre a eternidade e o tempo.
Alinhar a humanidade com os anjos era fundamentalmente um anátema para a Igreja de Roma, para a qual a doutrina do pecado original significa que os seres humanos nascem física e espiritualmente maculados, só chegando ao Céu se se submeterem ao dogma da Igreja e às proclamações dos seus sacerdotes. E talvez nem mesmo então.
O histórico Discurso de Pico abre com um apelo a duas autoridades. A primeira é Abdala, o Sarraceno, o estudioso muçulmano do século IX Abd Allah ibn Qutayba, que declarou não haver nada mais maravilhoso no mundo do que o Homem. Pico prossegue com uma citação do mesmo misterioso sábio que Copérnico viria também a citar: «A célebre exclamação de Hermes Trismegisto, “Que grande milagre é o homem, Asclépio”, confirma esta opinião [de Abdala].»
É fácil de ver porque se viu Pico em tão grandes dificuldades. Não era a melhor das ideias começar um debate com estudiosos da Cidade Santa apelando às autoridades de um sábio muçulmano e de outro decididamente não cristão, Hermes Trismegisto. Curiosamente, as suas teses davam também lugar de destaque à Cabala, o sistema místico judaico (que é muito diferente do culto moderno popularizado por Madonna).
Apologia de Pico só piorou a situação. Sob pressão dos estudiosos romanos, o papa Inocêncio VIII rapidamente a baniu. A bem da autopreservação, Pico retratou-se das suas alegações, fugindo depois prudentemente para Paris, mas, como o braço do papa era longo, mesmo aí foi encarcerado. Contudo, como veremos, precisamente quando tudo parecia perdido, a sua sorte viria a inverter-se.
Discurso de Pico é esclarecedor acerca do Renascimento por várias razões. Revela a característica determinante da época, uma drástica mudança de atitude acerca da humanidade: subitamente, o Homem tornou-se um ser prodigioso, com capacidades e possibilidades ilimitadas, em vez de uma criatura miserável assolada e condenada à nascença pelo pecado original. Salienta também o choque entre duas mentalidades: o novo espírito aberto, inquisitivo e eclético do Renascimento – nomeadamente a sua disponibilidade para levar a sério fontes de sabedoria exteriores ao domínio cristão – e a velha atitude de vistas curtas e limitada pela Bíblia da Idade Média. A Igreja sempre desconfiara do aprender apenas por aprender, franzindo o sobrolho à inovação e ao desafio intelectual. O frenesim de interesse por novas formas de explorar o universo e o lugar da humanidade nele foi o resultado direto da libertação dos velhos grilhões. Efetivamente, o Renascimento representou uma grande escalada na autoconfiança coletiva.
Hoje em dia, «pensar por si próprio» implica muitas vezes uma rejeição da religião estabelecida e de todas as formas de «superstição»; no entanto, não era manifestamente esse o caso entre os intelectuais da Europa renascentista. A maioria das tradições de onde Pico extraiu as suas teses não eram obras estabelecidas da física ou da matemática, mas sim fontes metafísicas, místicas e o que hoje conhecemos como fontes ocultas. Acima de tudo, eram as obras de Hermes Trismegisto que moviam Pico com fervor.
Existiram muitas razões para o Renascimento ter acontecido quando aconteceu. Uma delas foi o interesse renovado nos eruditos e filósofos das antigas Grécia e Roma, especialmente Platão. Muitas obras da antiguidade tinham-se perdido para a Europa, sendo, porém, preservadas no Médio Oriente, de onde começaram a fluir aos poucos no final da Idade Média. Isto tornou-se uma enchente em 1453, quando Constantinopla, o último bastião do Império Bizantino (ele mesmo o último bastião do Império Romano), caiu nas mãos dos otomanos muçulmanos. Outro fator foi a expulsão dos judeus de Espanha em 1492, dispersando-se os seus estudiosos pelos centros intelectuais da Europa. As tradições do saber judaico tinham até então sido ignoradas na Europa cristã.
Além da esfera intelectual, fatores culturais, económicos e políticos tiveram também um papel na génese do Renascimento. O facto de o seu primeiro desabrochar ter ocorrido em Florença, por exemplo, esteve intimamente associado à riqueza da cidade, bem como ao seu governo republicano.
Um dos mais importantes fatores determinantes do Renascimento, contudo, foi a renovação do interesse pelo esotérico, mais especificamente pela teoria e prática da magia. Dada a escala do seu impacto no Renascimento e o facto de não ser propriamente secreto (como é claramente demonstrado pelo Discurso de Pico), é espantoso que os historiadores tenham ignorado por completo a influência deste interesse renovado no período até à década de 1940, altura em que estudos começaram a revelar a sua influência sobre muitas das suas grandes figuras. Só sensivelmente no último meio século é que a importância crucial das filosofias esotéricas mágicas foi devidamente apreciada, na obra, por exemplo, de académicos como a historiadora britânica Frances A. Yates (1899-1981). Numa série de livros publicados nas décadas de 1960 e 1970, Yates demonstrou que o Renascimento foi maioritariamente motivado e impulsionado pela «filosofia oculta», uma mistura de sistemas mágicos e esotéricos dos séculos XV e XVI.
O termo «filosofia oculta» vem de uma das mais importantes exposições da época sobre os princípios da magia, Três Livros de Filosofia Oculta (De Oculta Philosophia Libri Tres), de Heinrich Cornelius Agrippa, publicada em 1531-33. O termo latino occultus significava simplesmente escondido, obscurecido ou, por arrastamento, secreto, mas não necessariamente sobrenatural. O livro de Agrippa teria sido entendido, à data em que foi publicado, como sendo sobre «filosofia secreta».
A reputação da magia gozou de um grande reforço no Renascimento. De território exclusivo de indivíduos introvertidos, geralmente malcheirosos e assustadores, passou a ser quase dominante, e era amplamente discutida como um aspeto respeitável da filosofia e até da teologia. No seu Discurso, por exemplo, Pico della Mirandola argumenta que a magia é um caminho válido para o conhecimento, mas tem o cuidado de diferenciar entre a mais odiosa e infernal, que utiliza demónios, e a natural, que engloba a máxima realização da filosofia. Na explosão intelectual que foi o Renascimento, a magia chegou a ser considerada parte integrante de todos os aspetos do conhecimento humano.
Como Frances Yates demonstrou, a filosofia oculta do Renascimento baseava-se em três correntes de pensamento esotérico. Das três, os académicos modernos favorecem o que é hoje conhecido como neoplatonismo, uma filosofia e cosmologia desenvolvida no cadinho intelectual do porto marítimo egípcio de Alexandria nos séculos II e III d. C. O neoplatonismo misturava as ideias originais – já com oitocentos anos à época – do grande filósofo grego Platão com outros conceitos místicos gregos e egípcios. Uma segunda vertente era uma versão cristianizada da Cabala judaica, que Pico alinhou com a filosofia oculta, naquela que viria a ser considerada a sua maior inovação. Porém, a terceira vertente, e de longe a mais importante, era o hermetismo, a filosofia atribuída ao lendário sábio honrado por Pico e Copérnico: Hermes Trismegisto, ou o «Três Vezes Grande Hermes». E foi esta vertente que moveu o mundo de um pântano de ignorância e autoaversão para os planaltos soalheiros do génio intelectual.
O puro poder do hermetismo não pode ser sobrestimado. Na prática, criou o Renascimento, cuja essência poderia ser resumida através do adágio de Hermes, «Magnum miraculum est homo» (literalmente, «o homem é um grande milagre»). O hermetismo abraçou essa determinação fanática de descobrir, inventar e entender, e a avassaladora sensação de entusiasmo ante a perspetiva de possibilidades infinitas. Apoderou-se da imaginação não só de Copérnico mas também de luminares posteriores. Levou-os, de coração e mente, a ousar desafiar o velho pensamento e abarcar as ideias mais radicais e até subversivas – que mudaram o mundo para sempre. Os seus contributos para a ciência teriam sido simplesmente impossíveis sem o hermetismo. Sem Hermes Trismegisto, estes grandes pensadores nunca teriam materializado plenamente o seu génio.
GUARDIÃO DE TODO O CONHECIMENTO
Hermes Trismegisto foi um lendário sábio e mestre egípcio cuja sabedoria foi corporizada numa coleção de livros conhecida como os textos herméticos. Ainda que, durante o Renascimento, Hermes Trismegisto fosse considerado como sendo o seu nome completo – daí Copérnico chamar-lhe apenas «Trismegisto» –, «Três Vezes Grande» é um honorífico, pelo que o seu verdadeiro nome é apenas «Hermes». Dizia-se ser descendente do deus Hermes ou do seu equivalente romano, Mercúrio.
Na Idade Média, Hermes Trismegisto era uma figura verdadeiramente lendária, conhecida apenas por raros fragmentos dos seus supostos escritos e pelas referências a ele e à sua obra em textos antigos. Uma dessas referências veio de Clemente, bispo de Alexandria, que, por volta de 200 d. C., viu sacerdotisas e sacerdotes egípcios a desfilar com os seus livros sagrados e observou que existiam quarenta e duas obras de Hermes (o que, segundo Douglas Adams, o autor de culto de comédias de ficção científica, é, no mínimo, um número sagrado para quem anda à boleia pela galáxia)
Embora subsistissem referências dispersas aos textos herméticos, todos os livros tinham desaparecido exceto um, pelo menos na Europa. No entanto, cópias manuscritas de muitos deles continuavam a circular em Bizâncio e, significativamente, nos centros do saber islâmico. A dada altura, foram reunidos dezoito tratados, que ficaram conhecidos como o Corpus Hermeticum. Desconhece-se quando, porquê e por quem foram eles selecionados, mas o Corpus foi finalizado no século XI, e Bizâncio parece ser o local lógico para a sua compilação.
Outra importante fonte sobre o hermetismo foi uma antologia de cerca de quarenta fragmentos, alguns do Corpus Hermeticum, mas outros de resto desconhecidos, compilada pelo estudioso macedónio pagão Estobeu por volta de 500 d. C. e incluindo um tratado completo, A Virgem do Mundo (Korè Kosmou). Outro texto hermético, a Tábua Esmeralda, pode ter apenas meia página, mas é difícil exagerar a sua importância. Contendo alegadamente as palavras do próprio Hermes Trismegisto, acreditava-se que as treze máximas alquímicas que nela constavam tinham sido originalmente gravadas numa tábua feita a partir da brilhante joia verde. Ninguém sabe ao certo se esta obra tem alguma ligação aos textos herméticos gregos, visto que provém de uma fonte árabe que entrou na Europa via Espanha no século XII, mas teve uma influência enorme entre os alquimistas, ajudando a cimentar o estatuto de Hermes como mais do que apenas um sábio. Para aqueles cuja admiração roçava a adoração, era, no mínimo, um mestre semidivino.
O único livro hermético completo conhecido na Europa na Idade Média era o Asclépio, ou O Mundo Perfeito, uma tradução latina do século IV a partir de um original grego perdido, uma sessão de perguntas e respostas entre Hermes e o seu epónimo aluno. Asclépio era o deus grego da cura; o aluno no tratado é seu descendente, embora não fosse, ele mesmo, divino. Os nomes das personagens, incluindo Ámon e Tat (Tot), que também aparecem como testemunhas do debate, revelam a atitude hermética em relação à divindade e à humanidade em geral. Diz esta que, embora exista um deus, os seres humanos que atingem um certo nível de sabedoria se podem tornar, eles mesmos, divinos. Um exemplo disto é apresentado na forma do antepassado de Asclépio, originalmente um mortal que descobriu a medicina e que, apesar de estar morto e enterrado – o seu corpo mumificado jazia num templo especialmente construído para o efeito –, continuava a poder interceder pelos doentes. De igual modo, Hermes Trismegisto descreve-se como um descendente do deus Hermes, que continua a ajudar a humanidade.
Os textos herméticos são uma mistura, por um lado, de ensinamentos filosóficos e cosmológicos e, por outro, de astrologia, alquimia e magia. Ao longo dos séculos, e até hoje, foram feitas tentativas de separar os dois aspetos, com base na ideia de que a filosofia em si é sofisticada e coerente, enquanto a astrologia e a magia são consideradas primitivas e incoerentes. (Uma edição da década de 1920 limitou-se a apagar este material.) Há até quem considere a compilação do Corpus Hermeticum uma tentativa de purgar o cânone dos textos de inclinação mais mágica. De todos os textos herméticos conhecidos, os do Corpus são manifestamente os menos mágicos, mas até estes incluem alguns elementos arcanos – o que não é propriamente surpreendente, visto que a filosofia e a cosmologia são indivisíveis de uma visão oculta do mundo.
A MENTE DE DEUS
Os livros herméticos exploram uma cosmologia, uma filosofia e uma teologia que se encontram intimamente relacionadas e que, em princípio, são muito acessíveis, ainda que alguns dos pormenores sejam tão abstrusos como um antigo texto alquímico, e por razões similares. Ainda que qualquer estudante possa ler os livros, estes estão concebidos para falar apenas ao coração e à mente daqueles que forem dignos de aprender os seus segredos. A capacidade de navegar pelas extraordinárias alusões e metáforas, e o entendimento das ligações entre elas, é, por si só, uma espécie de iniciação a um mundo de prodígios espirituais e intelectuais.
Apesar da tendência medieval e renascentista para os ver como obra do grande Hermes Trismegisto, é óbvio que os livros foram escritos por vários indivíduos que «apresentam diferentes interpretações da sua doutrina comum» e, com escrupulosa honestidade, salientam muitas vezes que alguns dos tratados são contraditórios. A razão de serem atribuídos a Hermes é que todos os autores optaram por permanecer anónimos, o que – como veremos – é muito revelador. Os autores acreditam que a doutrina comum provém de Hermes, o mestre escolhido por Deus para a humanidade, «o omnisciente revelador».
A filosofia e a cosmologia herméticas não são apenas místicas, mas enfaticamente mágicas, abarcando diferentes reinos do ser, da matéria bruta às esferas divinas e às dos seres sobrenaturais, divinos, angelicais e demoníacos. Em última instância, porém, são monoteístas, atribuindo toda a criação a um único Deus, embora abrangendo também deuses e deusas menores, categoria essa a que até os seres humanos mortais podem aspirar, se se tornarem suficientemente avançados. «Avançados» não se refere apenas ao tipo de «evolução espiritual» que hoje é assumida como um distintivo de superioridade pelos adeptos do New Age; grandes progressos intelectuais que beneficiem a humanidade também contam. Asclépio conquistou a sua divindade devido aos avanços que promoveu na medicina (é certamente melhor que um prémio Nobel).
Ao contrário do deus criador da tradição judaico-cristã, o deus hermético faz intimamente parte da sua criação. Na visão hermética, o universo é Deus e Deus é o universo. O cosmos é uma entidade viva, e tudo nele está imbuído de vida. O hermetismo incorpora também a ideia, outrora comum, de anima mundi, a alma do mundo. O universo hermético é mais um grande pensamento, uma emanação da mente de Deus, do que algo que ganhou vida por ordem Sua. Porém, Deus precisa do universo para se realizar, como escreve o historiador americano da ciência e da filosofia Ernest Lee Tuveson (ênfase sua):
Os elementos essenciais da conceção hermética da realidade são que o mundo emana da inteligência divina e, como um todo em que cada parte é um membro essencial da sua constituição, expressa essa grande Mente.
Como salienta o filósofo americano Glenn Alexander Magee – cuja especialidade é a influência do pensamento esotérico, e particularmente do hermetismo, na cultura ocidental –, esta explicação da necessidade de Deus criar o universo soluciona alguns dos aspetos absurdos do relato bíblico da criação. Magee salienta que a história tradicional judaico-cristã não apresenta nenhuma boa razão para Deus ter desejado criar o universo ou a humanidade ou para ter precisado de o fazer: o que ganharia Ele com isso? Esta foi uma das principais razões para a explicação hermética apelar aos pensadores cada vez mais sofisticados do Renascimento: «A grande vantagem da conceção hermética é que nos diz, antes de mais, o porquê de o cosmos e o desejo humano de conhecer Deus existirem.»
Os hermetistas veem os seres humanos como gozando de um lugar especial na criação. Enquanto seres essencialmente divinos presos em corpos animais, segundo os hermetistas, os humanos não só possuem a centelha divina (que está presente em tudo) mas também partilham efetivamente da mente de Deus. Os seres humanos são os únicos seres na criação de Deus com potencial para se tornarem divinos. A salvação, no esquema hermético, vem do uso das nossas faculdades místicas e intelectuais avançadas. Como diz o Tratado X do Corpus Hermeticum:
Pois o ser humano é um ser vivo divino, que não é comparável aos outros seres vivos da terra, mas sim aos do alto dos céus, que são chamados deuses. Ou melhor – se ousarmos dizer a verdade –, o que é verdadeiramente humano está também acima destes deuses, ou, pelo menos, encontra-se inteiramente igual em poder.
Ascende-se, pois, através do conhecimento, que surge através de um maior entendimento intelectual e filosófico do cosmos e da forma mais espiritual de iluminação chamada gnose. No entanto, a relação entre criador e humanidade é um ciclo interminável, como observa Magee:
Os hermetistas não só defendem que Deus precisa da criação mas também fazem com que uma criatura específica, o homem, desempenhe um papel crucial na Sua autorrealização. O hermetismo defende que o homem pode conhecê-Lo, e que o conhecimento d’Ele pelo homem é necessário para a Sua própria completude.
Assim, não só a visão hermética proporcionava uma explicação mais satisfatória para o porquê de o universo existir mas dava também aos seres humanos possivelmente o papel mais elevado – ainda que tendo de ser merecido. Como diz Asclépio: «O ser humano é um grande prodígio, um ser vivo a adorar e honrar.» Os textos herméticos incentivam as pessoas a usar todas as suas faculdades, poderes e talentos na busca do autoconhecimento e do conhecimento do universo. Grande parte da afinidade com a criação envolve observar o mundo que nos rodeia e mergulhar a fundo para descobrir os seus mecanismos secretos. No hermetismo, isto não é apenas um sentimento nobre, mas um dos principais caminhos para a salvação. O lema hermético «Segue a natureza» – que viria a ter um efeito profundo nos primórdios da ciência – dá testemunho desta pedra angular da filosofia."
Lynn Picknett e Clive Prince, in "O Universo Proibido", Editora Alma dos Livros, Outubro de 2023

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Linha



Linha
A linha do horizonte leve fina
é o começo de um limite. Dilata
o espaço que imaginamos. Mina
os destinos: salvam-se os de prata.
Para além do leve horizonte frio
fica um mundo desconhecido nosso:
para ele ascendemos como um rio
que arrastasse um sereno alvoroço.
Eugénio Lisboa, in  A matéria Intensa, Editora Peregrinação, Abril de 1985, p 48

domingo, 19 de maio de 2024

Ao Domingo Há Música

 

Tem misericórdia de mim, ó Deus,
por teu amor;
por tua grande compaixão
apaga as minhas transgressões.
                   Salmo 51

Há vozes que sabem ler as palavras e trazê-las inteiras. Palavras que nem sempre se esperam ,  mas que se enchem de beleza nos sons que vestem .

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Tenebrae em Misere mei, Deus , sob a direcção do Maestro  Nigel Short.
Miserere, também conhecido como Miserere mei, Deus, é uma versão musicada a cappella do Salmo 51,  feita pelo compositor italiano Gregorio Allegri, durante o papado de Urbano VIII, provavelmente durante a década de 1630.