Transcreve-se um excerto do primeiro capítulo desta obra:
Livro: "O Universo Proibido"
Autor: Lynn Picknett e Clive Prince
Editora: Alma dos Livros
Data de Lançamento: outubro de 2023
Capítulo Um
COPÉRNICO E O SEGUNDO DEUS
"Há três acontecimentos fundamentais que os historiadores
da ciência citam como marcos na longa viagem da superstição à iluminação
intelectual: a formulação da teoria heliocêntrica por Copérnico (1543), a
perseguição da Igreja a Galileu por promover essa teoria como facto (1633) e
a publicação dos Principia Mathematica, de Isaac Newton (1687),
que definiam leis fundamentais da Física, nomeadamente as do movimento e da
gravidade. Como disse um eminente historiador da ciência: «A série de
desenvolvimentos iniciada com Copérnico em 1543 e encerrada com Newton em 1687
pode ser designada de Revolução Científica.» No entanto, estes grandes
avanços não foram feitos por Copérnico, Galileu e Newton elevarem a pura
razão acima da irracionalidade religiosa, mas sim por serem todos eles
inspirados pela mesma filosofia assumidamente metafísica e orientada para a
magia – uma que também excitou e motivou outras grandes mentes da época,
incluindo o nosso próprio herói especial, Leonardo da Vinci.
Para os materialistas racionalistas de hoje, a desagradável
realidade é que não só houve um pensamento mágico a borbulhar durante todo
o Renascimento, como foi a magia a inspirar e a impulsionar toda a explosão de
pensamento e conquista dessa era. De forma muito real, a magia fez o mundo
moderno.
O acontecimento que é tido como o momento crítico, o
início do separar das águas entre ciência e religião, é a formulação da
teoria heliocêntrica, ou «do Sol como centro», do cosmos, que postulava que a
Terra gira à volta do Sol e não, como se pensava, o contrário. Esta nova e
radical ideia foi proposta por Nicolau Copérnico (1473-1543), como se
intitulava o cónego polaco Mikolaj Kopernik, à maneira dos estudiosos
contemporâneos.
Até então, a astronomia e a sua gémea esotérica, a
astrologia, baseavam-se tradicionalmente na crença de que a Terra estava no
centro do universo. Tratava-se de uma suposição natural, visto que o Sol, a
Lua e as estrelas parecem mover-se à nossa volta em ciclos regulares, enquanto
o mundo onde nos encontramos parece estar estático. A única complicação
deste sistema era suscitada pelo movimento dos cinco planetas visíveis a olho
nu, que, apesar de demonstrarem um padrão, não pareciam girar simplesmente à
volta da Terra. No século II d. C., o astrónomo e matemático greco-egípcio
Cláudio Ptolomeu, conhecido também apenas como Ptolomeu, concebeu um modelo
geocêntrico com um complexo sistema de ciclos e epiciclos para explicar os
movimentos dos planetas. Era a única grande autoridade astronómica até
Copérnico entrar em cena.
Estranhamente, para uma figura tão monumentalmente
influente, sabe-se muito pouco sobre a pessoa de Copérnico, ainda que as
linhas gerais da sua vida estejam bem documentadas. Nasceu em Torun, na
Polónia, em 1473, filho de um mercador de cobre, daí o nome. O seu pai morreu
quando ele era novo, deixando-o a criar a um tio, que era cónego. Após
estudar direito canónico, prolongou a sua estada no estimulante ambiente da
Itália renascentista formando-se em direito e medicina em Pádua, na
República de Veneza. Artista e desenhador talentoso, a sua verdadeira paixão
era a astronomia, à qual dedicava muito do seu tempo livre.
Ao tornar-se bispo, o tio de Copérnico conseguiu-lhe um
emprego como administrador da igreja, ou cónego, na vila de Frombork. Viveu o
resto da sua vida instalado numa torre – hoje conhecida como Torre de
Copérnico – no átrio da catedral. Os seus restos mortais só foram
encontrados no ano 2000, sob a mesma. Enquanto clérigo ordenado, Copérnico
estava proibido de se casar, mas parece que pode não ter vivido totalmente em
celibato, segundo rumores que o associavam à sua governanta. Isto não caiu bem
junto das autoridades da Igreja.
Os seus deveres davam-lhe tempo de lazer suficiente para a
sua paixão pela astronomia, a que se dedicava na sua torre. Como muitos
astrónomos da época, Copérnico estava insatisfeito com os artifícios e
correções necessárias para fazer funcionar o sistema de Ptolomeu, e por isso
decidiu abordar o problema. Porém, ao contrário da vasta maioria, os
resultados obtidos por Copérnico mudariam a astronomia para sempre.
Ele desenvolveu a sua nova e radical teoria na primeira
década do século XVI, mas absteve-se de a tornar pública durante muitos
anos, contentando-se antes com discussões académicas e com a redação de uma
versão para circulação privada no início dos anos 1510. Só publicou o que
designou de a sua «nova e maravilhosa hipótese», Das Revoluções das
Esferas Celestes (De Revolutionibus Orbium Coelestium), no final da sua
vida – as últimas provas foram-lhe entregues no seu leito de morte em 1543. O popular
autor científico Paul Davies diz que este livro «talvez seja o nascimento da
própria ciência».
Ao contrário da crença comum, Copérnico não adiou a
publicação até a morte o deixar a salvo da ira do Vaticano. Só estava
relutante em ir a público devido à controvérsia académica que a sua teoria
iria gerar, e só aceitou escrever o seu livro sob pressão de colegas que
estavam empolgados com ela. Até o papa Paulo III tinha ouvido
entusiasticamente uma palestra sobre o tema dada pelo seu secretário, o
estudioso alemão Johann Widmannstetter, dez anos antes da publicação
de Das Revoluções. Um cardeal que assistiu à palestra, o
arcebispo de Cápua, esteve entre os que exortaram Copérnico a escrever e
publicar a sua teoria. Lá se vai a percepção atual da hostilidade da Igreja
Das Revoluções apresentava três novas e
controversas ideias: que a Terra se move pelo espaço, que gira em torno do seu
eixo e, com os outros planetas, à volta do Sol. Copérnico apontava falhas ao
velho sistema ptolemaico e expunha as observações que o levavam a propor um
novo modelo do universo. Na trigésima primeira página, revela a sua
revolucionária, e até chocante, tese na forma de um diagrama que mostra os
planetas, na sua ordem correta, a circundar o Sol.
E, apenas quatro linhas abaixo do importantíssimo diagrama,
faz uma afirmação extraordinária:
Assim [atendendo à posição central do Sol], não é
insensato que tenha sido designado de lâmpada do universo, ou sua mente, ou
seu soberano. [É] o Deus visível de Trismegisto...
Copérnico associava assim o lugar físico do Sol no sistema
solar a conceitos decididamente transcendentes: que aquele é a «mente» do
universo ou a sede do poder que governa toda a criação, ou o «Deus visível
de Trismegisto». E é nessas quatro palavras que reside a maior pista para
entender a teoria de Copérnico, pois revelam um indício da verdadeira heresia
que ia abalar o Vaticano até aos seus alicerces.
HOMEM, O MILAGRE
Para descobrir o porquê de a referência de Copérnico ter
sido – e, em certos aspetos, continuar a ser – tão revolucionária, temos de
recuar a outro documento seminal, publicado mais de meio século antes, que
citava a mesma autoridade misteriosa.
Era ele um tratado que muitos denominaram de manifesto do
Renascimento, visto que cristaliza e encarna o espírito e o propósito dessa
nova era. Publicado em Roma em 1487, ficou conhecido como o Discurso
sobre a Dignidade do Homem (De Hominis Dignitate). Destinado a ser
apresentado como uma palestra pública, mas nunca proferido, foi escrito aos
vinte e quatro anos por Giovanni Pico della Mirandola (1463-94). Enquanto filho
mais novo do regente da cidade-estado de Mirandola, no Norte de Itália, e príncipe
de Concórdia, o nome de Pico era já conhecido. Ainda que a sua família
pudesse não passar de uma nobreza de segunda, estava ligada pelo casamento a
dinastias ilustres, como os Sforzas de Milão e os Estes de Ferrara. Pico tinha
herdado influência, e tinha todo o gosto em a explorar.
Quando chegou a Roma vindo de Florença, após frequentar
várias universidades, incluindo a de Paris, Pico levava consigo um conjunto de
novecentas teses – declarações de várias tradições filosóficas, místicas
e esotéricas – que, afirmava, eram mutuamente consistentes e conciliáveis.
Disse que o demonstraria num debate público perante a elite intelectual de
Roma. No entanto, como a maioria das suas fontes não era cristã, o seu pedido
de um debate público foi recusado e a sua obra condenada. Estava em Roma,
afinal.
Pico, porém, não seria assim tão fácil de descartar. Com
uma coragem e uma temeridade incríveis (uma combinação que distingue muitos
heróis do Renascimento), publicou uma Apologia – uma defesa, na
verdade –, que incluía as suas novecentas teses e o que teria sido o seu
discurso de abertura no debate, o Discurso sobre a Dignidade do Homem.
Tal como a sua escolha de título sugere, o ponto
fundamental de Pico dizia respeito ao brilhantismo da humanidade e ao seu lugar
privilegiado na criação. Para ele, a faculdade distintiva de um ser humano é
o seu intelecto, a fome de conhecimento e a capacidade de a satisfazer.
Segundo a parábola de Pico, após ter criado o universo e o
ter povoado com os seres angelicais do Céu e os animais da Terra, cada um com
a sua natureza e função específica, Deus precisava ainda de uma criatura
«para pensar no plano da sua grande obra». Uma vez que todos os nichos do
ecossistema cosmológico estavam já preenchidos, Deus decretou que o Homem
devia «ter posse conjunta de qualquer natureza que tivesse sido dada a qualquer
outra criatura». Além disso, sendo de uma «natureza indeterminada» que não
era «nem celestial nem terrena, nem mortal nem imortal», o Homem podia escolher
com o seu próprio livre-arbítrio os atributos de qualquer outro ser criado,
terreno ou celeste. Só o Homem tem a flexibilidade de escolher o seu próprio
caminho:
[...] Com a
agudeza dos seus sentidos, a acuidade da sua razão e o brilhantismo da sua
inteligência, [é] o intérprete da natureza, o ponto nodal entre a eternidade
e o tempo.
Alinhar a humanidade com os anjos era fundamentalmente um
anátema para a Igreja de Roma, para a qual a doutrina do pecado original
significa que os seres humanos nascem física e espiritualmente maculados, só
chegando ao Céu se se submeterem ao dogma da Igreja e às proclamações dos
seus sacerdotes. E talvez nem mesmo então.
O histórico Discurso de Pico abre com um
apelo a duas autoridades. A primeira é Abdala, o Sarraceno, o
estudioso muçulmano do século IX Abd Allah ibn Qutayba, que declarou não
haver nada mais maravilhoso no mundo do que o Homem. Pico prossegue com uma
citação do mesmo misterioso sábio que Copérnico viria também a citar: «A
célebre exclamação de Hermes Trismegisto, “Que grande milagre é o homem,
Asclépio”, confirma esta opinião [de Abdala].»
É fácil de ver porque se viu Pico em tão grandes
dificuldades. Não era a melhor das ideias começar um debate com estudiosos da
Cidade Santa apelando às autoridades de um sábio muçulmano e de outro
decididamente não cristão, Hermes Trismegisto. Curiosamente, as suas teses
davam também lugar de destaque à Cabala, o sistema místico judaico (que é
muito diferente do culto moderno popularizado por Madonna).
A Apologia de Pico só piorou a situação.
Sob pressão dos estudiosos romanos, o papa Inocêncio VIII rapidamente a
baniu. A bem da autopreservação, Pico retratou-se das suas alegações,
fugindo depois prudentemente para Paris, mas, como o braço do papa era longo,
mesmo aí foi encarcerado. Contudo, como veremos, precisamente quando tudo
parecia perdido, a sua sorte viria a inverter-se.
O Discurso de Pico é esclarecedor acerca
do Renascimento por várias razões. Revela a característica determinante da
época, uma drástica mudança de atitude acerca da humanidade: subitamente, o
Homem tornou-se um ser prodigioso, com capacidades e possibilidades ilimitadas,
em vez de uma criatura miserável assolada e condenada à nascença pelo pecado
original. Salienta também o choque entre duas mentalidades: o novo espírito
aberto, inquisitivo e eclético do Renascimento – nomeadamente a sua disponibilidade
para levar a sério fontes de sabedoria exteriores ao domínio cristão – e a
velha atitude de vistas curtas e limitada pela Bíblia da Idade Média. A
Igreja sempre desconfiara do aprender apenas por aprender, franzindo o sobrolho
à inovação e ao desafio intelectual. O frenesim de interesse por novas
formas de explorar o universo e o lugar da humanidade nele foi o resultado
direto da libertação dos velhos grilhões. Efetivamente, o Renascimento
representou uma grande escalada na autoconfiança coletiva.
Hoje em dia, «pensar por si próprio» implica muitas vezes
uma rejeição da religião estabelecida e de todas as formas de
«superstição»; no entanto, não era manifestamente esse o caso entre os
intelectuais da Europa renascentista. A maioria das tradições de onde Pico
extraiu as suas teses não eram obras estabelecidas da física ou da
matemática, mas sim fontes metafísicas, místicas e o que hoje conhecemos
como fontes ocultas. Acima de tudo, eram as obras de Hermes Trismegisto que
moviam Pico com fervor.
Existiram muitas razões para o Renascimento ter acontecido
quando aconteceu. Uma delas foi o interesse renovado nos eruditos e filósofos
das antigas Grécia e Roma, especialmente Platão. Muitas obras da antiguidade
tinham-se perdido para a Europa, sendo, porém, preservadas no Médio Oriente,
de onde começaram a fluir aos poucos no final da Idade Média. Isto tornou-se
uma enchente em 1453, quando Constantinopla, o último bastião do Império
Bizantino (ele mesmo o último bastião do Império Romano), caiu nas mãos dos
otomanos muçulmanos. Outro fator foi a expulsão dos judeus de Espanha em
1492, dispersando-se os seus estudiosos pelos centros intelectuais da Europa.
As tradições do saber judaico tinham até então sido ignoradas na Europa
cristã.
Além da esfera intelectual, fatores culturais, económicos
e políticos tiveram também um papel na génese do Renascimento. O facto de o
seu primeiro desabrochar ter ocorrido em Florença, por exemplo, esteve
intimamente associado à riqueza da cidade, bem como ao seu governo
republicano.
Um dos mais importantes fatores determinantes do
Renascimento, contudo, foi a renovação do interesse pelo esotérico, mais
especificamente pela teoria e prática da magia. Dada a escala do seu impacto
no Renascimento e o facto de não ser propriamente secreto (como é claramente
demonstrado pelo Discurso de Pico), é espantoso que os
historiadores tenham ignorado por completo a influência deste interesse
renovado no período até à década de 1940, altura em que estudos começaram
a revelar a sua influência sobre muitas das suas grandes figuras. Só
sensivelmente no último meio século é que a importância crucial das
filosofias esotéricas mágicas foi devidamente apreciada, na obra, por
exemplo, de académicos como a historiadora britânica Frances A. Yates
(1899-1981). Numa série de livros publicados nas décadas de 1960 e 1970,
Yates demonstrou que o Renascimento foi maioritariamente motivado e
impulsionado pela «filosofia oculta», uma mistura de sistemas mágicos e
esotéricos dos séculos XV e XVI.
O termo «filosofia oculta» vem de uma das mais importantes
exposições da época sobre os princípios da magia, Três Livros de
Filosofia Oculta (De Oculta Philosophia Libri Tres), de Heinrich Cornelius
Agrippa, publicada em 1531-33. O termo latino occultus significava
simplesmente escondido, obscurecido ou, por arrastamento, secreto, mas não
necessariamente sobrenatural. O livro de Agrippa teria sido entendido, à data
em que foi publicado, como sendo sobre «filosofia secreta».
A reputação da magia gozou de um grande reforço no
Renascimento. De território exclusivo de indivíduos introvertidos, geralmente
malcheirosos e assustadores, passou a ser quase dominante, e era amplamente
discutida como um aspeto respeitável da filosofia e até da teologia. No
seu Discurso, por exemplo, Pico della Mirandola argumenta que a
magia é um caminho válido para o conhecimento, mas tem o cuidado de
diferenciar entre a mais odiosa e infernal, que utiliza demónios, e a natural,
que engloba a máxima realização da filosofia. Na explosão intelectual que
foi o Renascimento, a magia chegou a ser considerada parte integrante de todos
os aspetos do conhecimento humano.
Como Frances Yates demonstrou, a filosofia oculta do
Renascimento baseava-se em três correntes de pensamento esotérico. Das três,
os académicos modernos favorecem o que é hoje conhecido como neoplatonismo,
uma filosofia e cosmologia desenvolvida no cadinho intelectual do porto
marítimo egípcio de Alexandria nos séculos II e III d. C. O neoplatonismo
misturava as ideias originais – já com oitocentos anos à época – do grande
filósofo grego Platão com outros conceitos místicos gregos e egípcios. Uma
segunda vertente era uma versão cristianizada da Cabala judaica, que Pico
alinhou com a filosofia oculta, naquela que viria a ser considerada a sua maior
inovação. Porém, a terceira vertente, e de longe a mais importante, era o
hermetismo, a filosofia atribuída ao lendário sábio honrado por Pico e
Copérnico: Hermes Trismegisto, ou o «Três Vezes Grande Hermes». E foi esta
vertente que moveu o mundo de um pântano de ignorância e autoaversão para os
planaltos soalheiros do génio intelectual.
O puro poder do hermetismo não pode ser sobrestimado. Na
prática, criou o Renascimento, cuja essência poderia ser resumida através do
adágio de Hermes, «Magnum miraculum est homo» (literalmente,
«o homem é um grande milagre»). O hermetismo abraçou essa determinação
fanática de descobrir, inventar e entender, e a avassaladora sensação de
entusiasmo ante a perspetiva de possibilidades infinitas. Apoderou-se da
imaginação não só de Copérnico mas também de luminares posteriores.
Levou-os, de coração e mente, a ousar desafiar o velho pensamento e abarcar
as ideias mais radicais e até subversivas – que mudaram o mundo para sempre.
Os seus contributos para a ciência teriam sido simplesmente impossíveis sem o
hermetismo. Sem Hermes Trismegisto, estes grandes pensadores nunca teriam
materializado plenamente o seu génio.
GUARDIÃO DE TODO O CONHECIMENTO
Hermes Trismegisto foi um lendário sábio e mestre egípcio
cuja sabedoria foi corporizada numa coleção de livros conhecida como os
textos herméticos. Ainda que, durante o Renascimento, Hermes Trismegisto fosse
considerado como sendo o seu nome completo – daí Copérnico chamar-lhe apenas
«Trismegisto» –, «Três Vezes Grande» é um honorífico, pelo que o seu
verdadeiro nome é apenas «Hermes». Dizia-se ser descendente do deus Hermes ou
do seu equivalente romano, Mercúrio.
Na Idade Média, Hermes Trismegisto era uma figura
verdadeiramente lendária, conhecida apenas por raros fragmentos dos seus
supostos escritos e pelas referências a ele e à sua obra em textos antigos.
Uma dessas referências veio de Clemente, bispo de Alexandria, que, por volta
de 200 d. C., viu sacerdotisas e sacerdotes egípcios a desfilar com os seus
livros sagrados e observou que existiam quarenta e duas obras de Hermes (o que,
segundo Douglas Adams, o autor de culto de comédias de ficção científica,
é, no mínimo, um número sagrado para quem anda à boleia pela galáxia)
Embora subsistissem referências dispersas aos textos
herméticos, todos os livros tinham desaparecido exceto um, pelo menos na
Europa. No entanto, cópias manuscritas de muitos deles continuavam a circular
em Bizâncio e, significativamente, nos centros do saber islâmico. A dada
altura, foram reunidos dezoito tratados, que ficaram conhecidos como o Corpus
Hermeticum. Desconhece-se quando, porquê e por quem foram eles
selecionados, mas o Corpus foi finalizado no século XI, e
Bizâncio parece ser o local lógico para a sua compilação.
Outra importante fonte sobre o hermetismo foi uma antologia
de cerca de quarenta fragmentos, alguns do Corpus Hermeticum, mas
outros de resto desconhecidos, compilada pelo estudioso macedónio pagão
Estobeu por volta de 500 d. C. e incluindo um tratado completo, A
Virgem do Mundo (Korè Kosmou). Outro texto hermético, a Tábua
Esmeralda, pode ter apenas meia página, mas é difícil exagerar a sua
importância. Contendo alegadamente as palavras do próprio Hermes Trismegisto,
acreditava-se que as treze máximas alquímicas que nela constavam tinham sido
originalmente gravadas numa tábua feita a partir da brilhante joia verde.
Ninguém sabe ao certo se esta obra tem alguma ligação aos textos herméticos
gregos, visto que provém de uma fonte árabe que entrou na Europa via Espanha
no século XII, mas teve uma influência enorme entre os alquimistas, ajudando
a cimentar o estatuto de Hermes como mais do que apenas um sábio. Para aqueles
cuja admiração roçava a adoração, era, no mínimo, um mestre semidivino.
O único livro hermético completo conhecido na Europa na
Idade Média era o Asclépio, ou O Mundo Perfeito, uma
tradução latina do século IV a partir de um original grego perdido, uma
sessão de perguntas e respostas entre Hermes e o seu epónimo aluno.
Asclépio era o deus grego da cura; o aluno no tratado é seu descendente,
embora não fosse, ele mesmo, divino. Os nomes das personagens, incluindo Ámon
e Tat (Tot), que também aparecem como testemunhas do debate, revelam a atitude
hermética em relação à divindade e à humanidade em geral. Diz esta que,
embora exista um deus, os seres humanos que atingem um certo nível de
sabedoria se podem tornar, eles mesmos, divinos. Um exemplo disto é
apresentado na forma do antepassado de Asclépio, originalmente um mortal que
descobriu a medicina e que, apesar de estar morto e enterrado – o seu corpo
mumificado jazia num templo especialmente construído para o efeito –,
continuava a poder interceder pelos doentes. De igual modo, Hermes Trismegisto
descreve-se como um descendente do deus Hermes, que continua a ajudar a
humanidade.
Os textos herméticos são uma mistura, por um lado, de
ensinamentos filosóficos e cosmológicos e, por outro, de astrologia,
alquimia e magia. Ao longo dos séculos, e até hoje, foram feitas tentativas
de separar os dois aspetos, com base na ideia de que a filosofia em si é
sofisticada e coerente, enquanto a astrologia e a magia são consideradas
primitivas e incoerentes. (Uma edição da década de 1920 limitou-se a apagar
este material.) Há até quem considere a compilação do Corpus
Hermeticum uma tentativa de purgar o cânone dos textos de
inclinação mais mágica. De todos os textos herméticos conhecidos, os
do Corpus são manifestamente os menos mágicos, mas até
estes incluem alguns elementos arcanos – o que não é propriamente
surpreendente, visto que a filosofia e a cosmologia são indivisíveis de uma
visão oculta do mundo.
A MENTE DE DEUS
Os livros herméticos exploram uma cosmologia, uma filosofia
e uma teologia que se encontram intimamente relacionadas e que, em princípio,
são muito acessíveis, ainda que alguns dos pormenores sejam tão abstrusos
como um antigo texto alquímico, e por razões similares. Ainda que qualquer
estudante possa ler os livros, estes estão concebidos para falar apenas ao
coração e à mente daqueles que forem dignos de aprender os seus segredos. A
capacidade de navegar pelas extraordinárias alusões e metáforas, e o
entendimento das ligações entre elas, é, por si só, uma espécie de
iniciação a um mundo de prodígios espirituais e intelectuais.
Apesar da tendência medieval e renascentista para os ver
como obra do grande Hermes Trismegisto, é óbvio que os livros foram escritos
por vários indivíduos que «apresentam diferentes interpretações da sua
doutrina comum» e, com escrupulosa honestidade, salientam muitas vezes que
alguns dos tratados são contraditórios. A razão de serem atribuídos a
Hermes é que todos os autores optaram por permanecer anónimos, o que – como
veremos – é muito revelador. Os autores acreditam que a doutrina comum provém
de Hermes, o mestre escolhido por Deus para a humanidade, «o omnisciente
revelador».
A filosofia e a cosmologia herméticas não são apenas
místicas, mas enfaticamente mágicas, abarcando diferentes reinos do ser, da
matéria bruta às esferas divinas e às dos seres sobrenaturais, divinos,
angelicais e demoníacos. Em última instância, porém, são monoteístas,
atribuindo toda a criação a um único Deus, embora abrangendo também deuses
e deusas menores, categoria essa a que até os seres humanos mortais podem
aspirar, se se tornarem suficientemente avançados. «Avançados» não se refere
apenas ao tipo de «evolução espiritual» que hoje é assumida como um
distintivo de superioridade pelos adeptos do New Age; grandes
progressos intelectuais que beneficiem a humanidade também contam. Asclépio conquistou
a sua divindade devido aos avanços que promoveu na medicina (é certamente
melhor que um prémio Nobel).
Ao contrário do deus criador da tradição judaico-cristã,
o deus hermético faz intimamente parte da sua criação. Na visão hermética,
o universo é Deus e Deus é o universo. O cosmos é uma entidade viva, e tudo
nele está imbuído de vida. O hermetismo incorpora também a ideia, outrora
comum, de anima mundi, a alma do mundo. O universo hermético é
mais um grande pensamento, uma emanação da mente de Deus, do que algo que
ganhou vida por ordem Sua. Porém, Deus precisa do universo para se realizar,
como escreve o historiador americano da ciência e da filosofia Ernest Lee
Tuveson (ênfase sua):
Os elementos essenciais da conceção hermética da
realidade são que o mundo emana da inteligência divina e, como um todo em que
cada parte é um membro essencial da sua constituição, expressa essa grande
Mente.
Como salienta o filósofo americano Glenn Alexander Magee –
cuja especialidade é a influência do pensamento esotérico, e particularmente
do hermetismo, na cultura ocidental –, esta explicação da necessidade de Deus
criar o universo soluciona alguns dos aspetos absurdos do relato bíblico da
criação. Magee salienta que a história tradicional judaico-cristã não
apresenta nenhuma boa razão para Deus ter desejado criar o universo ou a
humanidade ou para ter precisado de o fazer: o que ganharia Ele com isso? Esta
foi uma das principais razões para a explicação hermética apelar aos
pensadores cada vez mais sofisticados do Renascimento: «A grande vantagem da
conceção hermética é que nos diz, antes de mais, o porquê de
o cosmos e o desejo humano de conhecer Deus existirem.»
Os hermetistas veem os seres humanos como gozando de um
lugar especial na criação. Enquanto seres essencialmente divinos presos em
corpos animais, segundo os hermetistas, os humanos não só possuem a centelha
divina (que está presente em tudo) mas também partilham efetivamente da mente
de Deus. Os seres humanos são os únicos seres na criação de Deus com
potencial para se tornarem divinos. A salvação, no esquema hermético, vem do
uso das nossas faculdades místicas e intelectuais avançadas. Como diz o
Tratado X do Corpus Hermeticum:
Pois o ser humano é um ser vivo divino, que não é
comparável aos outros seres vivos da terra, mas sim aos do alto dos céus, que
são chamados deuses. Ou melhor – se ousarmos dizer a verdade –, o que é
verdadeiramente humano está também acima destes deuses, ou, pelo menos,
encontra-se inteiramente igual em poder.
Ascende-se, pois, através do conhecimento, que surge
através de um maior entendimento intelectual e filosófico do cosmos e da
forma mais espiritual de iluminação chamada gnose. No entanto, a
relação entre criador e humanidade é um ciclo interminável, como observa
Magee:
Os hermetistas não só defendem que Deus precisa da
criação mas também fazem com que uma criatura específica, o homem,
desempenhe um papel crucial na Sua autorrealização. O hermetismo defende que
o homem pode conhecê-Lo, e que o conhecimento d’Ele pelo homem é necessário
para a Sua própria completude.
Assim, não só a visão hermética proporcionava uma
explicação mais satisfatória para o porquê de o universo existir mas dava
também aos seres humanos possivelmente o papel mais elevado –
ainda que tendo de ser merecido. Como diz Asclépio: «O ser humano
é um grande prodígio, um ser vivo a adorar e honrar.» Os textos herméticos
incentivam as pessoas a usar todas as suas faculdades, poderes e talentos na
busca do autoconhecimento e do conhecimento do universo. Grande parte da
afinidade com a criação envolve observar o mundo que nos rodeia e mergulhar a
fundo para descobrir os seus mecanismos secretos. No hermetismo, isto não é
apenas um sentimento nobre, mas um dos principais caminhos para a salvação. O
lema hermético «Segue a natureza» – que viria a ter um efeito profundo nos
primórdios da ciência – dá testemunho desta pedra angular da filosofia."