por
António Borges
"Ainda
ecoa aquela proclamação que Nietzsche em A Gaia Ciência (1882)
colocou na boca de um louco: “Deus morreu! Deus está morto!” Desde então o
mundo não é o mesmo. É certo que para Nietzsche Deus tinha de morrer, pois o
que a religião proclamava é contra a vida, de tal modo que, com a proclamação
da morte de Deus, é o mar infindo das novas possibilidades do sim à vida que se
abre. No entanto, à morte de Deus não se seguiria a morte do Homem e do sentido
último de toda a realidade?
Segundo
as análises de Gilles Lipovetsky, “Deus morreu, as grandes finalidades
extinguem-se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido,
as derrocadas dos ideais não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia,
a mais absurdo, a mais pessimismo”: isto escreveu ele em A era do vazio -
presentemente, parece que já não pensa exactamente da mesma maneira.
De
qualquer forma, os espíritos mais atentos julgam que é necessário dar antes
razão a L. Kolakowski, o filósofo polaco agnóstico, já falecido, quando afirmou
que, desde a proclamação da morte de Deus por Nietzsche, nunca mais houve ateus
serenos: “Com a segurança da fé desfez-se também a segurança da incredulidade.
Ao contrário de um mundo familiar, protegido por uma natureza benéfica e
benigna, como era proposto pelo ateísmo iluminista, o mundo sem Deus dos nossos
dias é sentido como um caos opressor, eterno. É um mundo privado de todo o
sentido, de qualquer orientação, sinal de direcção, estrutura. A ausência de
Deus tornou-se a ferida sempre aberta do espírito europeu, por maior que tenha
sido o esforço feito para esquecê-la, recorrendo a toda a espécie de
narcóticos.”
De
que falamos, quando falamos da morte de Deus? De facto, como escreveu o
filósofo Eusebi Colomer, a própria expressão “morte de Deus” não é unívoca,
pois pode ter, e tem, múltiplos sentidos. Pode significar que Deus realmente
nunca existiu, embora só recentemente tenhamos feito essa descoberta. Pode
querer dizer que talvez Deus exista, mas os homens, que outrora se lhe
dirigiram pela fé e pela invocação, hoje já não acreditam nele. Talvez
queiramos apenas exprimir a experiência de ausência e aparente silêncio de
Deus, própria do nosso tempo. Talvez estejamos a referir-nos à necessidade de
transcender constantemente as nossas ideias acerca de Deus, e, neste sentido, a
“morte de Deus” significa a morte dos ídolos fabricados por nós.
Afinal,
que Deus era esse que morreu? Se o Deus verdadeiro é o Deus sempre maior, que
transcende sempre tudo quanto possamos pensar ou afirmar dele, então os deuses
enquanto ídolos têm de morrer, para ser possível a fé no Deus verdadeiro...
Neste
domínio, a pergunta essencial consiste em saber se é possível ser Homem sem
colocar a questão de Deus. É que ser Homem é a abertura ao Infinito, e, assim,
a questão do Homem é a questão de Deus precisamente enquanto questão. Será que,
neste sentido, o Homem é por natureza religioso?
Evidentemente,
responder a esta questão é extremamente complexo, pois, à partida, seria
necessário perguntar pela natureza do Homem, que não é algo de estável e fixo:
a natureza do Homem é histórica. De qualquer modo, embora seja histórico, o
Homem possui umas constantes, enquanto capacidades a desenvolver, que permitem
não só distingui-lo dos outros animais como constituem também uma realidade
transcultural, que faz com que todos os seres humanos, independentemente da
cultura e do tempo histórico que lhes é dado viver, formem uma só Humanidade.
Pergunta-se então se a religião é uma dessas constantes, ao menos enquanto
questão.
Podem
ser apresentados alguns sinais que apontam no sentido de um vínculo entre ser
ser humano e a religião.
Assim,
quando se considera a história da evolução, parece haver consenso no que se
refere à apresentação da sepultura como sinal distintivo decisivo na passagem
do animal ao Homem. O Homem é animal sepultante. Ora, não há dúvida de que os
rituais funerários sempre estiveram ligados à religião. Depois, quando se pensa
concretamente nas culturas antigas, a antropologia não deixa de sublinhar o
vínculo entre o culto e a cultura no seu todo.
Mas
sobretudo não se poderá ignorar que o Homem é um ser que espera. O bebé que vem
ao mundo está animado por aquilo que Erik Erikson chamou basic trust,
confiança de base, confiança radical, originária, que começa por concentrar-se
na mãe, mas que se dirige ao mundo. Se essa confiança for substancialmente
frustrada, os estragos no seu desenvolvimento enquanto processo de se ir aos
poucos erguendo até poder dizer “eu” de modo expansivo e integrado podem ser
irreparáveis. Por outro lado, como observava o teólogo W. Pannenberg, nem a mãe
nem o mundo podem corresponder adequadamente a essa confiança radical
ilimitada, que, por isso mesmo, só em Deus, portanto, para lá da família, da
sociedade e do mundo, poderá encontrar o seu apoio e segurança.
Neste
contexto, afirmar Deus não é então também um modo de expressar a confiança no
Sentido último, como sugeriu o filósofo Ludwig Wittgenstein? Seja como for, o
Homem é o ser da pergunta e, por isso, de pergunta em pergunta, desembocará
inevitavelmente na pergunta ao infinito pelo Infinito, por Deus, pelo
Fundamento último, pelo sentido de todos os sentidos, o Sentido último.
O
que aí fica não prova, evidentemente, a existência de Deus. Significa apenas
que a pergunta por Deus é constitutiva do Homem enquanto tal."
António
Borges, em artigo de
opinião, publicado no DN, em 4 de Maio de 2024
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