sábado, 6 de abril de 2024

Notas de Viagem

Notas de viagem
por Eugénio Lisboa 
                                          Viajar é quase como conversar 
                                          
com homens de outros séculos.
                                                                Descartes

"Em 1989 e, depois, até à minha saída de Londres, em 1995, viajei muito, quase sempre “em serviço”, isto é, não em liberdade de turista, que deambula sem programa.
Viajar não é necessariamente um ganho. Pode até ser um desperdício, uma futilidade, uma falsa aprendizagem, uma chatice. O filósofo americano Henry David Thoreau avisava que “não vale a pena dar a volta ao mundo, para contar o número de gatos que há em Zanzibar.” E um outro senhor, Emile Ganest, escreveu esta coisa imortal e já citada um milhão de vezes pelos que se chatearam em viagem: “Um turista é um fulano que faz milhares de milhas de automóvel, para se fazer fotografar à frente do carro.” Eu felicito-me por não ser esta espécie de viajante. Andei por todo o mundo e tirei disso prazer fundo e vasto proveito. Vi cidades, campos  (“eram campos, campos, campos…”, diz o Manuel da Fonseca, algures, num poema seu…), montanhas, praias. Sobretudo, cidades: é onde gosto de ir porque é onde estão as coisas de que gosto: teatros, cinemas, galerias, museus, salas de concerto, livros. A Rose Macauley, que andou por Portugal, observava: “A grande e recorrente questão no que toca o estrangeiro é: vale a pena ir lá?” A resposta que eu dou, para quase todas as minhas viagens, é: “Sim, valeu a pena.” (Tive a sorte de nunca ter ido à Albânia…)
Em 1989, estive em Zurique, em Lisboa, em Portalegre, em Nápoles e no Maputo. Transcrevo algumas páginas dos meus apontamentos diários, relativos a estas viagens.

Zurique
 
28.01.89
Desde o dia 26, em Zurique. Instalado nos Arquivos de Thomas Mann, que ontem de manhã percorri – não sem emoção. Neste mesmo edifício, esteve Goethe que, mal aqui chegou, dizem, abriu as janelas.. Livros e manuscritos do “mágico”. Cartas, caricaturas. A sua secretária e uma das suas cadeiras. Tudo legado a Zurique, última etapa do percurso  do autor de Tonio Kröger – obra que tanto perturbou e iluminou a minha adolescência.~
Ontem, dois seminários sobre Régio, na Universidade. Alunos atentos, estimulados e interessantes – num excelente português. Os seminários interessaram-lhes vivamente – não se trata de “wishful thinking”. Vieram dizer-me, no fim, que tinham ficado impressionados com tanta clareza e com a riqueza dos pontos de vista. Tentar ver claro é um dos meus objectivos. Citei-lhes Wittgenstein: o que não se consegue dizer com clareza não merece ser dito.
Zurique tem “charme”. Mas é uma terra para gente com dinheiro. Que conforto! Até dos eléctricos se pode dizer que são de luxo.
Ontem à noite, convidado por um casal suíço, jantei com eles, na companhia da leitora (Maria Isabel Ravara, excelente promotora de cultura portuguesa and a very nice person) e outro casal português residente na Suíça. Restaurante magnífico, acolhedor, outrora frequentado pelo escritor suíço Gottfried Keller. Contaram-me, dele, uma história saborosa. Keller bebia o seu bocado (o que o não impediu de se tornar um clássico) e era, ao tempo, uma figura conhecidíssima, em Zurique. Uma noite, um bocadinho “tocado”, a caminho de casa, dirigiu-se a um polícia e perguntou-lhe: “Sabe dizer-me onde fica a casa de Gottfried Keller?” O polícia olhou para ele, perplexo, e exclamou: “Mas o Senhor é Gottfried Keller…” Resposta do escritor: “Disso, ainda me lembro. Do que não me lembro é do sítio onde fica a minha casa…” 
Visita à exposição de Egon Schiele, na Kunsthaus. Se a hecatombe da Europa se não tivesse dado em 1914, teria sido mal empregada tanta profecia de fim iminente. O nosso apocalipse está ali todo, previsto para quem queira servir-se. (…)
Lembro-me de o Mário Botas me dizer, em Londres, que admirava muito o Egon Schiele. Percebe-se porquê: a pintura do Botas deve imenso à do Schiele. De ambos se exala, em vida, uma podridão de morte. Os casais de Schiele não fazem amor: apodrecem abraçados, com um ar de espanto mitigado.

 Lisboa
5.02.89 
Na passada semana, no regresso de Zurique, 3 dias em Lisboa. A minha visita coincidiu com o falecimento do Fernando Namora. Era para ir vê-lo na 2ª feira à tarde (dia 30), mas, por inviabilidade da Zita, marquei para o fim da tarde de terça feira. Já não foi possível porque morreu nesse dia, ao meio dia e quarenta. Isto é, já não o vi com vida. De certo modo, ainda bem. De Dezembro para cá, a devastação física deve ter sido considerável. (…) Fui à Basílica da Estrela, na terça feira, por volta das seis: ali se encontrava o caixão, aberto, suficientemente alto, para não se ver o morto. A Zita perguntou-me: “Quer vê-lo?”, ao que respondi, prontamente: “Não.” Ela percebeu e aceitou.
Os nossos jornalistas são ou autênticos pulhas ou irremediavelmente estúpidos. Foram pedir, of all people, ao Vergílio Ferreira, um depoimento. Depois de tudo quanto, entre ele e o Namora, se passou, não podiam ter escolhido pior. Aliás, o depoimento do Vergílio Ferreira, no que respeita ao que o futuro dirá da obra do companheiro do neo-realismo, é um monumento de perfídia.
Ao chegar a Londres, telefonema do Telegraph, a pedirem-me um obituário. Tentaram, primeiro, o Hélder Macedo, que me passou a bola. Para ele, o Namora não bebia do fino. Marxismo, sim, mas devagar: Vasco Gonçalves com perdizes e champagne. (…) É curioso o desprezo dos nossos intelectuais de esquerda pelos escritores de esquerda, que o povo ama e venera! No Ferreira de Castro, no Redol, no Namora [e, mesmo, um bocado, no Torga]  - é malhar, sem piedade! Falta-lhes “chic”, um ingrediente obrigatório, como se sabe, da esquerda exigente… (…)
 
Em Lisboa, fui ao Nacional ver o Fausto, do Pessoa. Tirando o cenário do Lagarto (notável), o resto é uma estopada monumental, que o Estado vai mandar a Madrid e quereria levar a Edimburgo (os deuses não permitam). O Ricardo Pais é um bluff considerável, mas muito apaparicado. Das suas encenações, retenho sempre – e sobretudo – a impressão de um incomensurável arbitrário. (…)
Vou lendo Camilo e coisas sobre Camilo, com vista à redacção de uma “entrada” para o meu Dicionário. Fiquei com quase todos os peixes graúdos: Camilo, Antero, Fialho, Pascoaes, Pessoa, Cortesão… Mas também com alguns menores, que me sabe bem fazer: Augusto de Castro, Júlio Dantas, José Duro, etc. Tudo gente em quem o Vergílio Ferreira não pegaria, nem com pinças: para ele, nada abaixo de Ésquilo ou Dante. Cada um mede-se com quem julga que pode! (Mas ele pegou no Sartre, convencido de que era peixe graúdo…)
O Vasco Pulido Valente e outros profetas do nosso mundinho cultural especializam-se numa espécie de estilo apocalíptico: passam por cima das coisas, deixando tudo incinerado. O assalto é tão brutal e tão demolidor, que todo o mundo se encolhe. E aquilo, como faz estragos e ruído, passa, aos olhos estarrecidos do lusíada superficial e papalvo, por inteligência. É, pelo menos, de momento, a inteligência que está de serviço. Como diz não sei quem, “wrong but strong”.

Portalegre
 
9.04.89 
(…) Saiu mais um livro meu, sobre o Régio [José Régio ou A Confissão Relutante], com algum ruído e televisão pelo meio (entrevista de meia hora). Fui a Portalegre para participar numa sessão dedicada ao Régio e inserida na “semana aberta” do Presidente Mário Soares. Lá li um poema que dediquei a Maria Barroso, inesquecível intérprete de Benilde. Em Lisboa houvera, como disse, lançamento do livro, na Livraria Barata, com televisão a registar. Tudo bem. Mas a crítica, como de costume, vai ser pouca ou nenhuma. Acabo de dar uma entrevista ao Europeu, a pretexto da saída do livro: lavagem do fígado, dizendo tudo com um desbocamento que não é de uso entre “diplomatas”… A entrevista não me vai, é claro, fazer nenhum bem. Mas, também, o mal que me pode fazer já não é nenhum. Maior desatenção do que aquela que me têm prestado já não é possível. Curiosamente – e por falar em desatenção – andei a ler, para fins prefaciais e de publicação, o Diário (manuscrito) do Régio. Ali se queixa, alongada e minuciosamente, da pifieza da crítica portuguesa, relativamente à sua obra, em especial à de ficcionista e, muito em particular, à Velha Casa. O que é um facto. Quem ler aquilo e se lembrar da glória de que o Régio, apesar de tudo desfrutou [desde relativamente cedo], vai falar de narcisismo e exagero. E, no entanto, ele tem razão. Em Portugal, a glória pode não significar uma atenção crítica continuada, meticulosa e profunda. As pessoas tornam-se famosas “by word of mouth”, sem que, muitas vezes, se cheguem a saber que o são ou por que o são.
 O que o Régio demonstra, mais uma vez, no seu Diário – e de modo fulgurante e, por vezes, assustador – é o seu espantoso poder de penetração psicológica.
Outro ponto me surpreendeu: não notara, em nenhum outro ponto da sua obra, ou mesmo em conversa com ele, que a irresolução do problema religioso fosse tão profunda. Supusera que o seu cair para o agnosticismo fosse francamente mais decisivo. Foi-o, intelectualmente. Também sabia que, emotivamente, sempre se “consolara”, pensando em ou dirigindo-se a Deus. Mas não o supusera capaz  de se ajoelhar e rezar Padres-Nossos, como se esse ritual pudesse fazer sentido [sem o resto]… Não que isso o diminua: eu simplesmente não o imaginara. (Isto mostra como, até num homem superiormente inteligente, a inteligência pode vergar-se a forças obscuras!)
Outra coisa que aconteceu nestes últimos meses: o Congresso dos Escritores de Língua Portuguesa. Muito escritor não foi lá. Suponho que o Congresso, por qualquer razão bizantina, não era “in”. Qualquer coisa nesse género. Mas gostei de lá encontrar os meus compatriotas de Moçambique. Estragaram-me com mimos. Às vezes, sabe bem verificar que ter sido antipaticamente honesto, durante tantos anos que lá vivi, deu os seus frutos. Dizem-me que a minha Crónica dos Anos da Peste (dois volumes) é lá uma espécie de bíblia muito disputada. Talvez isso justifique, afinal, uma segunda edição… [2014: Essa segunda edição foi feita, em 1996, pela IN-CM]."
Eugénio Lisboa , in  Acta Est Fabula, Memórias IV - Peregrinação: Joanesburgo.Paris. Estocolmo. Londres. (1976-1995), Editora Opera Omnia, Outubro de 2014,pp.399-403

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