Um coração simples
Flaubert
desloca o interesse para a interioridade mais profunda da personagem — e isso é
capaz de vitalizar todo o texto
por
Luiz Antonio de Assis Brasil
“Quase sempre acontece que um grande autor, consagrado nos quatro cantos do
mundo, tenha as assim chamadas “obras menores”, isto é, sem a relevância das
outras; são pouco lidas, pouco citadas, e isso se deve, em parte, às suas
pequenas dimensões, que podem induzir à menoridade de seu conteúdo: e aí temos
de exemplo, dentre outras, em A fera na selva, de Henry
James, Bartleby, o escriturário, de Herman
Melville, O velho e o mar, de Hemingway e A morte em Veneza,
de Thomas Mann. Muitos críticos assinalam que, às vezes, essas pequenas ficções
são as obras-primas de seus respectivos autores — assim penso em relação
a A fera na selva. Palpites à parte, vamos falar de Um
coração simples [ou Um coração singelo, segundo outra
tradução], de Gustave Flaubert, o imenso autor de Madame Bovary.
2.
Esse coração simples
pertenceu a uma empregada doméstica do interior rural da França, chamada
Félicité [Felicidade]. A época é a metade do século XIX. Tudo sugere uma série
de lugares-comuns sociológicos e da história dos costumes: maus-tratos,
trabalho exaustivo e sem horário, submissão, revolta interna que não pode se
expressar ou, se essa revolta acontece, é uma vez só, e acaba com o assassinato
dos patrões. Isso aconteceu, e muito, na sociedade brasileira escravocrata. A
vitimização permanente e passiva da personagem, contudo, não gera conflito e,
portanto, não resulta numa obra literária. Sucede que, agora, estamos perante
um ficcionista que sabe o que deseja, e que desloca o interesse para a
interioridade mais profunda da personagem — e isso é capaz de vitalizar todo o
texto. Os episódios, por poucos e triviais, são apenas o meio pelo qual
conhecemos aquilo que importa em Félicité, e daí se repete uma consideração: o
que realmente vale, numa ficção, o que de fato empolga um enredo, é a
personagem, não pelo que ela é externamente, mas por sua questão essencial, a
que o leitor terá acesso por pequenos gestos e meias-palavras, as quais vêm a
constituir uma teia em que tudo faz sentido.
3.
O coração simples de
Félicité é um dos corações mais complexos da literatura francesa. Não porque
tenha contradições, que isso é coisa banal, e contradições, por si mesmas, não
instituem nem complexidade nem originalidade. O grande feito de Flaubert foi criar
um poderoso conflito sem que Félicité se contradiga, operando apenas o universo
de sua alma que, sendo simples, nos mantém no contínuo sobressalto
do enigma — aqui, Flaubert usa de um recurso literário que muito raramente
falha: faz com que o leitor saiba mais do que a personagem; nós, leitores,
sabendo mais do que ela as razões íntimas de Félicité, acompanhamos a sua
precipitação num vórtice sem retorno, e então, mágica da técnica flaubertiana,
nada podemos fazer contra isso, e seguimos em agonia sua caminhada para a
loucura e a morte.
4.
Não se pode pedir de
Flaubert conhecimentos psicanalíticos — bom que seja assim: atualmente grande
parte dos escritores insiste em psicanalisar suas personagens, remetendo à
infância, ao pai abusador, à mãe bêbada etc., levando à superfluidade e a uma
chatice sem tamanho. Já Flaubert colhe Félicité em plena ação, e em duas
páginas ela já é empregada doméstica da viúva Aubin; sua infância não é mais do
que um curto parágrafo, para mostrar como ela era pobre; uma breve e anterior
ligação amorosa surge e fracassa em uma página. Basta isso. Clément Rosset nos
diz que Harpagon já entra em cena como avarento, sem que se explique as causas
de sua avareza, pois o que importa é que seja “o avarento” da célebre comédia
de Molière. Félicité, desse modo, possui, como algo preexistente, um coração
simples, e suas ações são destinadas a reforçar essa simplicidade,
mas nas entrelinhas, e porque não somos bobos, Flaubert nos conduz pelos
dédalos de sua alma, levando ao conhecimento da vertigem de sentimentos que
dizem tudo ao contrário do que ela aparenta.
5.
O que está dentro
dessa simplicidade é um ser humano que oculta, como mais
candente, uma aniquilante ausência de realização amorosa, e isso surge no
subtexto de alguns episódios, dos quais releva uma sensibilidade arrasadora, o
que se vê na cena da primeira comunhão da filha de sua patroa:
Ao
chegar a vez de Virgínia, Félicité inclinou-se para vê-la; e com a imaginação
que brota das emoções verdadeiras, pareceu-lhe ser ela mesma aquela criança;
seu semblante se tornava o de Félicité, seu vestido a vestia, seu coração batia
no peito dela; no momento de abrir a boca, cerrando as pálpebras, quase
desmaiou.
Temos
aqui um pendant com o arrepiante arrebatamento erótico
observado na famosa escultura de Bernini, do Vaticano, e que representa o
êxtase de Santa Tereza de Ávila — obra que Flaubert bem conhecia.
6.
Há outro momento que
reforça a dramática pluralidade interna de Félicité, e que encontra seu
epicentro na repressão sexual. É quando ela desenvolve uma extemporânea ligação
com seu sobrinho, um rapaz que “chegava todos os domingos, depois da missa, de
faces rosadas, o peito nu, e exalando o odor do campo que atravessara”. A
partir daí surge a paixão unilateral de Félicité, desencadeando uma sucessão de
eventos que conduz a um final dos mais impressionantes de toda literatura, sem
a força arrasadora do final de A fera na selva, em que John Marcher
morre de uma brutal síncope sobre o túmulo de May Bartram. Já o encerramento
de Um coração simples vem recheado de uma enternecedora paz,
repleta de um bucolismo que nunca, mas nunca, sai da cabeça do leitor. E é
quando, in extremis, ela ainda vive êxtase de seu erotismo: “Um
vapor celeste subiu ao quarto de Félicité. Ela dilatou as narinas, sorvendo-o
com uma sensualidade mística”.
7.
O último terço da
novela — Flaubert chamava-a de conto — nos reserva algo extraordinário, que vem
a quebrar uma possível previsibilidade. No enredo, há um arco arrebatador que
une a paixão pelo sobrinho ao seu desaparecimento num remoto lugar transoceânico,
situado nos trópicos ao Sul. Então, o extraordinário: quando tudo nos diz que a
história estaria próxima de terminar — bastaria “emendar” com a cena final e já
teríamos uma grande obra —, Flaubert põe em cena um papagaio, que sincretiza
todos os elementos da narrativa e ganha a força do símbolo de toda a paixão
recolhida daquela que acabaria por ser sua dona. Papagaios são aves tropicais,
e então passa a funcionar como chave daquele amor nunca recuperado e, ainda, de
tudo que Félicité não conseguiu viver como expressão de sua intensa e sufocada
volúpia.
8.
Flaubert, em Um
coração simples, antes de Charcot, guiando-nos apenas pela ficção,
mostra-nos o quanto as repressões não resultam em nada bom, podendo levar à
insanidade. Foi ele quem, já sob as luzes do Realismo, desfez os mistérios que
estavam presentes em todas as casas, e eram causa de intenso e brutal
sofrimento. Ele é, assim, um predecessor, e através do seu único instrumento: a
escrita, o que evoca a célebre carta de Freud ao escritor Arthur Schnitzler: “O
senhor sabe por intuição — é verdade que devido a uma aguda observação de si
mesmo — tudo o que descobri depois de fatigantes trabalhos com os outros
homens”. Por esse caráter avançado e pela construção exemplar dessa personagem
plena de consistência humana e ficcional, Um coração simples vai,
com honra, para a nossa mochila.”
Luiz
Antonio de Assis Brasil , em ensaio publicado
na Edição 287 de Rascunho (Jornal da
Literatura do Brasil) , Março de 2024.
Luiz Antonio de
Assis Brasil é romancista. Professor há 35 anos da Oficina de
Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia
das Letras, 2019), entre outros.
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