Ter ou não ter lido um
livro
por Eugénio Lisboa
“Quando tinha os meus catorze ou quinze anos, li um
livro que, para sempre me marcou. Penso, às vezes, poder dizer que a minha vida
teria sido diferente, se nunca tivesse lido esse livro: LE ROUGE ET LE NOIR, de
Stendhal, numa magnífica tradução de José Marinho. Tudo nele me fascinou: desde
a criação da personagem de Madame de Rênal e toda uma paisagem de personagens
de uma sociedade francesa pintada com mão de mestre, até ao estilo bem
descascado, ágil, contundente, herdeiro feliz de Voltaire. E uma bela história
de amor, de grande beleza trágica. Stendhal tinha horror às gorduras de muita
prosa então em vigor e, para dar à sua veloz pontaria, naturalidade e
sobriedade, forçava-se, todas as manhãs, a ler o Código Civil. O livro
“apanhou-me” totalmente e fez, para sempre, cair a caspa que sujava a prosa que
eu, por essa altura, escrevia para a gaveta. De alguma literatura gótica, eu
saltava, bruscamente, para aquela pena bem afiada. A morte de Madame Rênal, uma
das cenas mais sublimes de qualquer literatura, ocupa literalmente uma linha de
texto, desprezando qualquer ênfase. Stendhal era um mestre para ficar, embora
ignorado no seu tempo, excepto para os olhos perspicazes de Balzac.
Outro livro que muito me marcou, quase pela mesma
altura, foi o romance de Sienckiewicz, QUO VADIS? Num estilo sem pathos, quase
neutro, nada “interveniente”, o romancista polaco pinta-nos magistralmente as
grandezas e misérias do império romano.
Uma história de amor serve de fio condutor a um
desvelar de loucura e crueldade, de uma dimensão nunca vista. Os inesquecíveis
diálogos entre Nero e Petrónio, em que este arrisca a vida, manipulando
magistralmente o imperador, deixam marca perpétua no leitor empolgado. A morte
de Petrónio é um cúmulo de beleza discreta e um anúncio de um fim de mundo.
Neste romance, que se lê com sofreguidão, o adolescente leitor depara-se, pela
primeira vez, com a condição humana nos seus limites de crueldade, mas também de
desenfastiada elegância. Não é possível ficar imune a esta tempestade que
varreu o mundo.
Outro livro, de entre os vários que me fazem pensar
que eu não seria o mesmo se os não tivesse lido, está a novela de Tolstoi, A
MORTE DE IVAN ILITCH. Num texto de não muitas páginas, o grande ficcionista
russo mergulha intrepidamente os seus instrumentos de sondagem, num dos
momentos mais dilacerantes da vida humana: aquele em que o remorso por uma vida
mal vivida se alia à aproximação da morte, que vai lentamente debilitando um
corpo indefeso. Numa cena que é o cúmulo da observação e da arte de escrever, Tolstoi
descreve-nos o pobre juiz, devorado por um cancro, abraçado ao mujik que lhe
trata da higiene, como se desejando que a forte energia que dele dimana se lhe
comunicasse por osmose: literalmente, um filho nos braços da mãe, que o aleita
e lhe dá segurança. Esta novela de Tolstoi, apesar da sua pequena dimensão, não
desmerece, na minha opinião, das grandes construções romanescas que lhe deram
fama.
Há livros que admiramos, mas há outros que nos transformam
profundamente. Estes três não foram os únicos que me deixaram dedada profunda.
Há outros, não muitos, de que falarei noutro dia, se para isso me sentir
inclinado.”
Eugénio Lisboa, 06.03.2024
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