A Rússia não
pode ser entendida,
apenas com a
mente.
Fiodor Tiutchev
“A Rússia é o maior país do planeta, cobrindo um nono da superfície
terrestre, e o nono mais populoso, com cerca de 150 milhões de habitantes. A
Rússia é imensa e tem uma história tumultuosa e fascinante. Não se pode ignorar
a Rússia, porque ela está aí, com a sua grandeza física e com a sua riqueza
material, científica e cultural. Mas eu, como muitos, comecei a conhecer a
Rússia, não pela sua história ou dimensão, mas pela leitura dos seus grandes
escritores do século XIX. Cada um começa por onde pode e pelo que lhe está mais
à mão. Fora-me oferecida, por um generoso colega do meu pai, quando eu ainda
andava no liceu, uma pequena biblioteca com cerca de cem títulos (estante
incluída), entre os quais figurava um razoável acervo de novelas de autores de
todo o mundo, excelentemente traduzidas. Faziam parte de uma preciosa colecção:
as NOVELAS INQUÉRITO, da responsabilidade da inesquecível EDITORIAL INQUÉRITO,
que tanto fez para divulgar, em Portugal, o melhor que havia na literatura de
todo o mundo e de todos os tempos. Entre essas novelas, havia algumas de
Dostoiewsky, de Tolstoi, de Turguenev, de Andreiev… Não era possível mergulhar
nas NOITES BRANCAS ou n’A CONFISSÂO DE STVROGUINE, de Dostoiewsky, sem que um
imenso desassossego se apoderasse de mim. Era um mundo estranho, altamente
emotivo, mesmo convulsivo. Não se entrava nele apenas com a inteligência, como
sugere o autor da epígrafe que escolhi. Inteligência e alta emotividade
combinavam-se, num produto final altamente explosivo. Nenhuma experiência de
leituras anteriormente feitas me preparara para isto. Sentia que o chão me
fugia debaixo dos pés. Nietzsche considerava o autor de CRIME E CASTIGO o maior
psicólogo que jamais existira e Freud clamava que só ele lhe ensinara alguma
coisa sobre a psique humana. Mas não era um ensinamento sereno, de pedagogia
confortável. Entrar naquele mundo subterrâneo era, para quem o empreendia,
aventura de alto risco. Ele não se limitava a instruir-nos: transformava-nos. E
essa transformação tinha uma multiplicidade de direcções possíveis. Se
Dostoiewsky me abalou até às fundações, Tolstoi, com novelas como A MORTE DE
IVAN ILITCH ou o romance RESSURREIÇÃO, que andou anos a escrever e reescrever,
mostrou-me, como disse um grande crítico francês, que, literatura daquela era
como se fosse a própria vida a falar… Turguenev, grande prosador e grande
ficcionista, “apanhou-me” antes das NOVELAS INQUÉRITO, com uma admirável novela de amor
indeciso e nunca consumado, ASSIA, magnífica introdução ao seu universo de
ficcionista. Mas as NOVELAS INQUÉRITO iriam trazer-me mais Turguenev, que,
depois, nunca mais cessei de ler, incluindo as belíssimas MEMÓRIAS DE UM
CAÇADOR. Uma colecção de contos russos, da agora extinta Editora GLEBA, deu-me
a conhecer outros notáveis escritores deste grande e singular país, como
Korolenko , Andreiev, etc. Tcheckov foi-me, por essa altura, dado a conhecer,
por uma admirável novela, UMA HISTÓRIA VULGAR, publicada numa colecção de livros de algibeira: é o relato
dos dias finais de um professor universitário, que se vai despedindo da vida
com o desencanto de quem perdeu todas as ilusões e sem mesmo grande respeito
pelo que foi a sua vida de Professor… De Tcheckov, viria a adquirir a colecção
completa dos seus inesquecíveis contos e a conhecer o seu original teatro, que
vi, encenado em África e um pouco por todo o mundo (incluindo uma produção de
AS TRÊS IRMÃS, encenada por Laurence Olivier, no OLD VIC). Pela vida fora, fui
aprofundando as minhas leituras russas, com Gogol, de quem li sobretudo as
obras curtas e de quem vi, em Londres, uma excepcional produção da sua peça, O
INSPECTOR GERAL, com Pushkine, Lermontov ou Fiodor Sologub, cujo romance O
DEMÓNIO MESQUINHO (na tradução portuguesa da INQUÉRITO, A LOUCURA DE PEREDONOV)
é uma desapiedada incursão aos infernos da loucura. Esta Rússia esteve sempre
comigo, faz parte do meu panteão privado, como faz a sua grande música, desde
os mestres do século XIX até aos gigantes do século XX: Stravinsky, Prokofiev,
Shostakovitch… É uma Rússia que nada tem a ver com os malfeitores que a têm
governado e ainda a governam, da mesma maneira que Aquilino Ribeiro, José
Régio, Miguel Torga, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena ou Sophia, Luís de
Freitas Branco, Lopes Graça ou Emanuel Nunes, ou Paula Rego ou Vieira da Silva,
nada têm a ver com um Estado Novo, que os oprimiu, mas não os produziu.
Tcheckov é tanto o produto do czarismo, como Pasternak ou Mandelstam foram produtos
do Stalinismo: eles existiram e produziram, APESAR ou CONTRA os regimes sob que
viveram, mas não foram os felizes corolários de boas políticas culturais desses
regimes. Muita grande cultura e ciência tem sido produzida CONTRA. Eu admiro e
gosto da Rússia e por isso não posso ser contra ela, como já foi sugerido por
quem sabe pouco do que fala. Mas, por isso mesmo que amo e admiro a Rússia, não
posso aceitar quem a maltrata. Os actuais e frenéticos defensores de Putine é
que, de certeza, não gostam da Rússia nem amam os seus verdadeiros valores. Por
isso, não se importam com os maus tratos que os ditadores lhes infligem. A
terra lhes não seja leve!”
Eugénio Lisboa,
10.03.2024
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