terça-feira, 16 de janeiro de 2024

A crise do Espírito Europeu

 
Née à l’origine sur les bords de la Méditerranée, l’Europe s’est caractérisée dès l’abord par sa dynamique incomparable de production, d’échanges et de compénétration des idées et des cultures.
                    Paul Valéry, La Crise de l´Esprit


"No rescaldo da Primeira Guerra Mundial, Paul Valéry publicou na NRF em 1 de Agosto de 1919, La Crise de l' Esprit, cujas palavras iniciais: “Nós, outras civilizações, agora sabemos que somos mortais” permanecerão famosas. A alma europeia, tão rica nas suas grandes mentes, está quase morta neste conflito global e precisamos de compreender as razões desta falência."
La crise de L'esprit   é uma  obra curta,  de  uma  contemporaneidade que só um espirito agudo e inteligente é capaz de tecer.  Premonitório  e quase profético, o texto  distribui-se por duas cartas, tendo a primeira sido publicada pela Athenaeum em 11 de Abril de 1919, e a segunda em 2 de Maio do mesmo ano.
Após estas palavras de Valéry,  a Europa entrou em total falência  na Segunda Guerra Mundial e, hoje, debate-se numa crise de autêntica tibieza identitária, face às convulsões que ocorrem nela e no mundo.
   
Nós, as civilizações, sabemos agora que somos mortais
 
   "Ouvimos falar de mundos inteiramente desaparecidos, de impérios afundados a pique com todos os seus homens e engenhos; levados até ao fundo inexplorável dos séculos com os seus deuses e leis, as suas academias e as suas ciências puras e aplicadas; com as suas gramáticas, os seus dicionários, os seus clássicos, seus românticos e simbolistas, seus críticos e os críticos dos seus críticos. Sabemos bem que toda a terra aparente é feita de cinzas, que a cinza significa alguma coisa. Apercebemo-nos, através da espessura da história, dos fantasmas de imensos navios que vogavam cheios de riqueza e de espírito. Não podíamos contá-los. Mas esses naufrágios, ao fim e ao cabo, não eram de nossa conta.
Elam, Nínive, Babilónia, eram belos nomes etéreos, e a ruína total desses mundos tinha  para nós tão pouco significado como a sua própria existência. Mas França, Inglaterra, Rússia... seriam também belos nomes. Lusitânia também é um belo nome. E vemos agora que o abismo da história chega para todos. Sentimos que uma civilização é tão frágil quanto uma vida. As circunstâncias que levariam as obras de Keats e de Baudelaire a juntarem-se  às obras de Menandro já não são inconcebíveis: vêm nos jornais.
Isto não é tudo. A lição candente é ainda mais completa. Não foi suficiente para que a nossa geração aprendesse com a sua própria experiência, como as mais belas coisas e mais antigas, as mais formidáveis e as mais bem ordenadas são perecíveis por acidente; Viu produzir , na ordem do pensamento, do bom senso, e sentimento, fenómenos extraordinários, realizações de abruptos paradoxos, decepções brutais das evidências.
Permitam-me que cite apenas um exemplo: as grandes virtudes dos povos alemães geraram mais males do que a ociosidade criou vícios. Vimos, com os nossos olhos , o trabalho consciente, a educação mais sólida, o disciplina e aplicação mais sérias , adaptadas ao horror.
Tantos horrores não teriam sido possíveis sem tantas virtudes. Foi necessário, sem dúvida, muita ciência para matar tantos homens, para dissipar tantos bens, aniquilar tantas cidades em tão pouco tempo; mas também não foi necessário menos qualidades morais. Conhecimento e Dever, sois suspeitos?
(...)Já afirmei , há algum tempo,  que a paz é aquela guerra que admite actos de amor e de criação no seu processo: é, portanto, uma coisa mais complexa e mais obscura do que a guerra propriamente dita, como a vida é mais obscura e mais profunda do que a morte.
Mas o início e o  estabelecimento do processo da paz são mais obscuros do que. a própria paz, assim como a fecundação e a origem da vida são mais misteriosas do que o funcionamento do ser,  uma vez feito e adaptado.
Todos hoje percebem este mistério como uma sensação;  alguns homens, sem dúvida, devem perceber o seu próprio eu como uma parte positiva deste mistério; e pode haver alguém cuja sensibilidade é suficientemente clara , fina e rica para ler, em si mesmo, os estados mais avançados do nosso destino que não é propriamente este..
Não tenho essa ambição. As coisas do mundo só me interessam do ponto de vista do mundo em relação ao intelecto; tudo em relação ao intelecto. Bacon diria que este intelecto é um ídolo. Concordo, mas não encontrei um melhor.
Penso, portanto, no estabelecimento da paz enquanto interesse do intelecto e das coisas do intelecto. Esta visão é falsa, uma vez que separa o espírito de todas as restantes atividades; mas esta operação abstracta e esta falsificação são inevitáveis: todos os pontos de vista são falsos,
...) Uma primeira ideia surge. A ideia de cultura, de inteligência, de obras magistrais, tem para nós uma relação muito antiga - tão antiga que raramente chegamos até ela - com a ideia de Europa.
As outras partes do mundo tiveram civilizações admiráveis, poetas de primeira ordem, construtores e até sábios. Mas nenhuma parte do mundo possuiu esta singular propriedade física: o mais intenso poder emissor unido ao mais intenso poder absorvente.
Tudo veio à Europa e tudo dela veio. Ou quase tudo...
Ora, no presente, levanta-se esta questão capital: irá a Europa conservar a sua preeminência em todos os campos?
Tornar-se-á a Europa no que, na realidade é: um pequeno cabo do continente asiático?
Ou permanecerá a Europa aquilo que parece, ou seja: a parte preciosa do universo terrestre, a pérola da esfera, o cérebro de um vasto corpo?
(…)
Mas o Espírito europeu - ou, pelo menos, o que  tem de mais precioso - será totalmente difundível? O fenómeno da entrega do globo à exploração, o fenómeno da igualização das técnicas, o fenómeno democrático, que levam a prever uma deminutio capitis da Europa deverão ser considerados decisões absolutas do destino? Ou terá ainda alguma liberdade de contrariar tal ameaçadora conjunção de coisas?
Talvez procurando essa liberdade seja possível criá-la. Mas, para tal procura, será necessário abandonar, por uns tempos, a consideração dos conjuntos e estudar, no indivíduo pensante, a luta da vida pessoal com a vida social.
Paul Valéry, La Crise de l´Esprit

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