Homem Velho , Van Gogh |
por Mario Quintana
“O que eu mais temo não é o Sono Eterno, mas a possibilidade de uma insónia eterna, o que seria uma verdadeira estopada, um suplício sem fim. Porém, em uma das minhas costumeiras noites de sonho acordado, o meu amigo morto me pediu um cigarro e disse-me:
- Não é como tu pensas, todos nós trabalhamos numa série infinita de escritórios (cada geração de mortos num deles), onde a gente se entrega a um trabalho de estatística: tem-se de anotar a chegada de cada um e comunicar-lhe o respectivo número, pois isso é de mera convenção terrena. O pior são os que atrapalham a escrita, morrendo antes do tempo, ou porque se mataram ou por culpa dos médicos, e estes ainda são culpados quando fazem os doentes morrer depois da hora, numa espécie de sobrevida artificial, já que os médicos (diga-se em sua honra) julgam criminosa a prática da eutanásia... Uma pena!
- E fora do expediente, o que vocês fazem?
- Bem, a hora do almoço não deixa de ser divertida por causa dos Santos: põem-se a discutir acaloradamente qual deles fez na Terra o maior número de milagres e outras futilidades.
- E nos serões, eles jogam prenda?
- Mais respeito, seu vivo! Bem! Nos serões eles fazem concursos para ver quem é que diz de cor mais versículos da Bíblia. Uma bobagem! Todo mundo sabe que o único que sabe a Bíblia de cor, tintim por tintim, é o Diabo.
- E Deus? Me conta como é Ele...
- Ah, o Velho? Desconfio que certa vez O vi...
- Só certa vez? Mas Ele não está sempre no Céu?
- Bem, tu deves compreender que Ele se preocupa principalmente com os vivos. O Velho está quase sempre é na Terra, lidando com os assuntos humanos. Ele e o Diabo. Sim, os dois vivem a maior parte do tempo na Terra.
- Ora, eu pensava que vocês soubessem mais do que nós... Mas conta-me lá como foi que desconfiaste de ter visto o Velho?
- Foi há tempos, eu era recém-chegado, quando uma tarde apareceu de surpresa no escritório um velhinho muito simpático. Com as mãos às costas, curvava-se sobre cada mesa, inspecionando o nosso trabalho, por sinal me atrapalhei, errei uma palavra. Ele bateu-me confortadoramente no ombro, como quem diz: “Não foi nada... não foi nada...”. Ao retirar-se, já com a mão no trinco da porta, virou-se para nós e abanou: “Até outra vez, se Eu quiser!”.
Mario
Quintana, in “Sapato Furado”, Editora Global, 6ª
edição, SP, 2006
Poder de síntese
Madame de Sevigné |
Poder de síntese
por Mario Quintana
"Um dia, Madame de Sevigné sentenciou: “O café passará, como Racine.” Ah, que poder de síntese, minha cara Madame! Como foi que a senhora conseguiu dizer duas barbaridades numa única frase?"
Poder de síntese, esse o tinha, de facto, Racine, quando, para darmos apenas um exemplo, conseguiu expressar a paixão, a crueldade, a complexidade do caráter de Nero num só verso de doze sílabas: “J’aimais jusqu’à ses pleurs, que je faisais couler!” (Eu amava até as suas lágrimas, que eu fazia correr!)
Sim, porque o verdadeiro sádico ama verdadeiramente a quem faz sofrer.
Que o digam esses pretensos casais desunidos, que jamais conseguem separar-se. Só os sádicos? — pergunto eu. Recordemos aquelas palavras de Oscar Wilde, na Balada do cárcere: “Mata-se sempre aquilo que se ama; os fortes com um punhal, os covardes com um sorriso.”
Aliás, o Nero do alexandrino raciniano já tinha decretado a morte da sua amada, cujas lágrimas agora tanto o enterneciam.
Haverá os santos do inferno? Nero deverá ter sido um deles…
Porque na verdade é idêntico o nosso pasmo, quase incrédulo, tanto ante a vida de Nero como ante a vida de São Francisco de Assis. Porque os extremos sempre se tocaram. Porque os Santos — no seu prodigioso arrebatamento — são uma espécie de celerados do Bem."
Mario Quintana, in "A Vaca e o Hipógrifo", Editora L&PM, Porto Alegre, 1979
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