por Eugénio Lisboa
Não vim, porém, nesta crónica que se quer curta, falar dos problemas e dificuldades que surgem aos perpetradores de sonetos. Ora eu sou um desses perpetradores porque, durante esta guerra russo-ucraniana, tenho andado a fazê-los quase à média de um por dia, o que significa, se mais não significar, que tenho, pelo menos, alguma experiência. Queria pois aproveitar esta experiência, não, como disse, para esmiuçar pormenores de arte poética, mas para responder a esta magna pergunta: PARA QUE SERVE UM SONETO? Para responder a isto, dada a tal minha grande e prolongada experiência, estou eu magnificamente equipado: porque os tenho escrito, nos mais variados estados de espírito e para os mais variados fins. O soneto serve, por exemplo, para a guerra: tenho-o usado como fisga, para tentar atingir Putine entre os olhos. O soneto, na guerra, faz imensos estragos ao inimigo e até mata. Pode servir, em dias de neura, para nos interrogarmos sobre o sentido (nenhum) da vida e, noutros dias (de euforia), para celebrarmos e trincarmos, com lascívia, os frutos da terra. Podemos, com ele – e apesar de termos de o fazer só em catorze versos – recordar os tempos em que fomos felizes ou, alternativamente, os momentos piores da nossa vida. O soneto dá para tudo, e sempre em apenas catorze versos. Fazer caber o mundo num envelope tão pequeno, tem uma graça que só o sonetista consegue apreciar. O soneto dá para ser irónico, para ser sarcástico, para ser romântico, para ser terra-a terra, para ser colérico, como Aquiles ou admiravelmente sóbrio e digno como Heitor. O soneto dá para ser casto e para ser lúbrico. O soneto pode ser religioso ou ateu. O soneto pode servir para mandarmos recado à namorada ou para acabar com o namoro. Não há nada debaixo do sol para que o soneto não sirva. Só há uma coisa para que nunca consegui que ele servisse: para tirar nódoas. O bispo de Vence tinha razão: não há sonetos perfeitos.”
Eugénio Lisboa, em 20.06.2022
Eu cantei já, e agora
vou chorando…
Eu cantei já, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado:
Parece que no canto já passado
Cantei; mas se me alguém pergunta, quando?
Não sei; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado,
Fizeram-me cantar manhosamente
Contentamentos não, mas confianças:
De quem me queixarei, se tudo mente?
Porém que culpas ponho às esperanças,
Onde a fortuna injusta é mais qu’os erros?
Surge et ambula!
Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.
Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares…
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno…
Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções…
Mas de guerra… e são vozes de rebate!
Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!
Antero de Quental, Sonetos Antero de Quental, Edição organizada, prefaciada e anotada por António Sérgio, 4ª Edição. Sá da Costa Editora 1972.
Meu coração é um almirante louco
Que abandonou a profissão do mar
E que a vai relembrando pouco a pouco
Em casa a passear a passear...
No movimento (eu mesmo me desloco
Nesta cadeira, só de o imaginar)
O mar abandonado fica em foco
Nos músculos cansados de parar.
Há saudades nas pernas e nos braços.
há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
Mas — esta é boa! — era do coração
Que eu falava... e onde diabo estou eu agora
Com almirante em vez de sensação?...
12-10-1931?
Álvaro de Campos , in Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
Desejos vãos
Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!
Eu queria ser o sol, a luz imensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!
Mas o Mar também chora de tristeza...
As Árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!
E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...
Florbela Espanca, in Sonetos , Porto Editora
és a ave chamada Todavia:
a que posta no céu não se desvia,
mas que perto do rio já não voa...
Hei-de ensinar-te, devagar ( perdoa!),
a pressa com que Amor se pronuncia
e a conjugares a noite com o dia
quando o corpo do corpo se condoa...
Fecha os olhos, e voa! Mas não queiras
ao inferno do céu traçar fronteiras
nem ao céu do inferno pôr limites:
voar só vale a pena enquanto for
uma forma de amar além do amor,
furor que todavia não habites...
David Mourão-Ferreira, in "Infinito pessoal [1959-1962] - Obra Poética", Assírio & Alvim , p 145
Há na minha alma, desde sempre, um fogo
e há , também na minha vista , um rio.
A minha vida é uma forma de jogo , ~
endireitando à morte um desafio.
Há nesse fogo um rio que fascina
e no rio um fogo que devora:
leio no rio a minha ígnea sina,
o destino aceso que em mim demora.
E leio no fogo que vai no rio,
como num livro que me fosse aberto,
o meu andar para junto do frio
que há-de queimar-me em dia certo:
se a água é chama humedecida,
minha imagem será nela esculpida.
Londres, 07.01.1984
Eugénio Lisboa, in A matéria intensa, Editora Peregrinação, Baden/Suíça, p. 62
Soneto do reencontro
Na primavera
tu voltaste de mansinho
finda
a tempestade, surgiste na bonança
me conjugando o verbo da esperança
num íntimo
gesto de lírico carinho.
Tu
foste meu fuzil, o meu canto guerreiro
a voz
peregrina acesa no meu peito,
ensina-me a cantar agora de outro jeito
para
entoar amor e paz ao mundo inteiro.
Combatente
e amordaçada em meu destino
silenciados
e por atalhos clandestinos
trinta anos
se passaram, dia-a-dia.
Depois
a liberdade chegou para o meu povo
mas só
agora eu te encontrei de novo
para nunca
mais perder-te... ó poesia.
Curitiba, dezembro de 2002
Manoel de Andrade, in Cantares,
Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, p.72
O
Livro dos Amantes
VII
Tu pedes-me a noção de ser concreta
num sorriso num gesto no que abstrai
a minha exactidão em estar repleta
do que mais fica quando de mim vai.
Tu pedes-me uma parcela de certeza
um desmentido do meu ser virtual
livre no resultado de pureza
da soma do meu bem e do meu mal.
Deixa-me assim ficar. E tu comigo
sem tempo na viagem de entender
o que persigo quando te persigo.
Deixa-me assim ficar no que consente
a minha alma no gosto de reter-te
essencial. Onde quer que te invente.
Natália
Correia, in Antologia
Poética- O livro dos Amantes, Organização e prefácio de Fernando Pinto
do Amaral, Publicações Dom Quixote
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.
Jorge de Sena, in As Evidências, Assírio & Alvim
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