por Eugénio Lisboa
"Quando tinha dezasseis anos e vivia em Lourenço Marques, capital de Moçambique e capital da memória (a Maria de Lourdes Cortez que explique), comprei, na Minerva Central ou na Progresso, um romance intitulado, na tradução portuguesa de Tomás Ribeiro Colaço, A Vida Inteira (Katrina), cujo autor era uma autora, para mim desconhecida: Sally Salminen. O livro aparecia publicado numa boa colecção da Guimarães & Cª. Editores, intitulada: “Obras Primas Contemporâneas” e ganhara, cerca de dez anos antes, um prémio de 50.000 marks, dado por uma editora sueco-filandesa ao melhor manuscrito de romance enviado a concurso. O texto de Sally Salminen (sueca) era um de entre 76 submetidos à competição e o prémio tornou instantaneamente famosa a sua autora. Em seis meses, venderam-se, na Suécia (país pequeno), 50.000 exemplares. “Para encontrar um êxito comparável com este”, dizia a nota do editor português “seria necessário remontar a 1890 – data da revelação de Selma Lagerlöf”.
Eu estava numa fase em que o feitiço exercido em mim pelo Stendhal de Le Rouge et le Noir me criava uma espécie de inapetência por tudo quanto não fosse parecido com aquilo. O estilo seco, agudo e voltaireano do autor da Chartreuse permitia-me ler com gozo o Candide ou O Ingénuo, do dito Voltaire, mas tornava-me, de momento, difícil o acesso a prosa menos ágil. Seja como for, meti mãos ao romance sueco – e foi um deslumbramento.
A simplicidade, a espontaneidade da escrita de Sally Salminen, a desenvoltura narrativa e, sobretudo, a densidade soberba de experiência transfiltrada para a escrita subjugaram-me por completo. Havia também, é claro, o fascínio daquelas paisagens nórdicas e estranhas, para um adolescente que nunca saíra do Índico soalheiro, quente e húmido. Mas foi, sobretudo, aquele compacto de vida (“arrumada” em cerca de duzentas e cinquenta páginas despretenciosas e cheias) que me cativou. Dizia Charles du Bos, de Guerra e Paz, que era como se fosse a própria vida a falar. A Vida Inteira era também a vida a falar: mas fazendo-o em voz baixa e carregada de ensinamentos, alegrias e decepções, em voz humilde mas sábia e persuasiva. Stendhal dera-me, para sempre, uma imensa desconfiança em relação às vozes empoladas. Sally Salminen, embora em registo diferente (que tem Sibelius a ver com Voltaire?), agravava em mim a mesma desconfiança.
A Vida Inteira ficou-me sendo, pela vida fora, um desses tesouros preciosos e um pouco secretos, de que prefiro não falar, a não ser a muito poucos. Abro hoje uma excepção (e o meu exemplar não sai de casa, aviso). Nunca perdi o livro: de Lourenço Marques para Lisboa, de Lisboa para Lourenço Marques, para Cape Town, para Lourenço Marques, para Johannesburg, para Estocolmo, para Lisboa, para Londres, para Lisboa, finalmente, perdi muita coisa mas guardei, cuidadosamente, o livro dos meus dezasseis anos. Cinquenta e poucos anos depois e vários baldões pelo meio deixaram intacta – inteira – A Vida Inteira. Tenho-a aqui, ao pé de mim, enquanto escrevo esta crónica.
A que vem tudo isto? Porquê falar hoje de uma fulgurante experiência de leitura que tive há 50 anos? Porque estas experiências, às vezes (não muitas), se repetem. Tive há pouco uma quase semelhante. E não digo igual, porque já não tenho dezasseis anos e as emoções que certas descobertas me dão já não encontram os neurónios com a mesma frescura. Mas, se o encontro não foi igual, foi, pelo menos, tão parecido quanto é possível. Trata-se, aqui vai, da leitura de um romance que me fora enviado pela autora e que fui criminosamente pondo de lado, à espera de vez. Até que, ao fim de mais de um mês, peguei nele e meti-o na pasta, para o ir lendo a caminho de Aveiro (e volta). O livro a que me refiro é um romance, como disse, e tem sido incompreensivelmente negligenciado pela crítica (a sofisticada e a outra): talvez devido ao facto de a autora escrever também versinhos ligeiros para “shows” televisivos (é preciso ganhar a vida). Foi com preconceitos destes que Gide (bom leitor) começou por lixar a vida ao Proust, visto não acreditar que um snob lambedor de rabo de marquesas pudesse fazer boa literatura. Em geral, não consegue mas, às vezes, acontece... Enfim, chega de suspense: estou aqui a referir-me ao belo romance de Rosa Lobato de Faria, Romance de Cordélia. O livro é uma beleza: de desenvoltura narrativa, de escrita, de vigor, de humor, de malícia, de conhecimento (vasto e profundo) da vida. Espreme-se aquele fluxo imparável e encantatório de palavras e não saem palavras: saem histórias fabulosas, capitosas, cheias de bons e maus cheiros, sai experiência, sai um relato prodigioso de uma avó e de uma inesquecível relação com uma neta, saem horrores e coisas sublimes, o céu e o inferno, a cloaca da vida e o que a vida tem de melhor e mais puro. E tudo com um enorme talento, com brio, com inapagáveis golpes de asa, com uma energia que não exclui um fluir alado, com uma invejável capacidade de pairar sobre abismos sem que isso lhe envenene nem o sangue nem a caneta. E com a noção, sempre presente e de tantos outros tão ausente, de que a grande arte do romance é também eminentemente, uma arte de entretenimento: O Romance de Cordélia responde a um amplo leque de exigências, incluindo o nosso milenar desejo de não nos aborrecermos.
Rosa Lobato de Faria publicou, entre 1995 e 1998, quatro romances que se têm vendido, mesmo quando a crítica displicentemente os desatende. Deles disse o meu velho e ágil amigo (de olho de águia), João Bettencourt da Câmara: “Êxito espantoso para quatro breves anos nas letras nacionais – e que só deve à crítica nacional o favor de ter ficado calada (exceptuando, que eu saiba, o discernimento da Vértice e da Brotéria)”. Grande João! Tão grande, que te vou citar mais uma vez, para gozo meu e vexame deles (nos quais estive quase a ser incluído, embora com a desculpa de não ser crítico nem colunista regular e encartado). Aí vai e é do bom: “Livro que se constrói, em ficção, sobre uma série de histórias de vida reais, cuidadosamente recolhidas pela autora e por ela sabiamente recontadas, sem que se perca o drama, a violência, a ternura, a linguagem de um submundo forçado a ocultar-se sob as abas da nossa vergonha colectiva. (...) Mas mais vale experimentá-lo do que julgá-lo: quem tendo-o começado, for capaz de o abandonar merece um doce. O cianeto é por minha conta.” Meu caro João, como diria o Montherlant, c’est ça. C’est bien ça.
Dizia E. M. Forster que a prova final de um romance será sempre o nosso afecto por ele. Fiquei, ainda não tinha chegado ao fim da leitura, amigo do Romance de Cordélia. E em tal pânico de cessar de estar com a sua autora que, no intervalo de duas intervenções, em Aveiro, corri a uma livraria a comprar o que ali houvesse dela: havia dois romances! Estava salvo. Comprei-os e fui para a Universidade, para o combóio, para o Porto, para Lisboa, sossegado. Estava governado. São estes afectos que contam e que ficam. Não gosto de ir para um país qualquer, por muito tempo, sem levar comigo Os Maias, Le Rouge et le Noir, um Tolstoi, um Montherlant, algum Thomas Mann, as Conversações de Goethe com Eckermann, algum volume de A Velha Casa, alguma lírica de Camões, Montaigne... Não estou a falar dos melhores (há outros tão bons). Estou a falar dos que me fazem companhia. Dos que me aquecem a alma. Dos amigos com quem gosto de falar, à bâtons rompus. Na Vida Inteira estava a vida inteira. No Romance de Cordélia também. Acrescento-os, com gosto, ao pelotão dos amigos.
P.S. – Quando falo na desatenção da crítica, não quero deixar de mencionar aqui uma incomensurável consolação: o conhecimento que tive do notabilíssimo texto de apresentação do romance, lido por ocasião do lançamento do livro pela editora ASA, da autoria da minha boa Amiga e grande ensaísta, Teresa Martins Marques (outra que também pertence, de direito, ao pelotão acima referido)."
Eugénio Lisboa, em crónica publicada no JL, Dezembro de 2013
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