O Brasil vive momentos tensos e turbulentos . Disputam-se eleições entre dois candidatos antagónicos.
Manoel de Andrade , poeta , ensaísta, memorialista tem um longo e distinto passado em prol da democracia , da Liberdade. Desse passado, em que foi forçado a um exílio no tempo da ditadura, publicou um extraordinário livro de memórias , do qual extraímos o capítulo que se segue, pela evidente e profunda actualidade.
XIV
NOS
RASTROS DA UTOPIA
Se as coisas são inatingíveis...ora!Não é motivo para não querê-las...Que tristes os caminhos se não foraA mágica presença das estrelas!Mário Quintana
" Eram os últimos dias de 1969 e, nas conversas em Lima, discutíamos a herança que recebêramos dos “anos rebeldes”. A década de 60 se iniciara com um exército murando a liberdade de Berlím, mas terminara com três astronautas abrindo os caminhos do universo. Naqueles anos, o mundo comovera-se com a mensagem de paz e de amor, na imagem sacrificada de Martin Luther King, e conhecera o real significado da resistência, na figura irretocável de Ho Chi Minh. A revolta de Nanterre mobilizara os estudantes do mundo inteiro e, ao longo do continente, aportávamos em 1970 na crista de uma poderosa onda libertária, cujas espumas espraiavam o exemplo de Che Guevara. Vivíamos num tempo sem liberalismo e sem globalização e Cuba surgia como uma alternativa socialista e referência da luta revolucionária. O mundo era uma alquimia de ideias e a América Latina seu melhor laboratório. A nova história, no contexto continental, era a de uma só nação, de um só povo, latino e “indo-americano” -- na expressão de Mariátegui. A esperança era uma bandeira hasteada no coração de todos os que ousavam sonhar com uma sociedade justa e fraterna, fossem eles um guerrilheiro, um intelectual engajado ou integrasse uma vanguarda estudantil. Nossa ancestralidade cultural – manchada pela violência colonial e por tantos mártires na memória sangrenta de cinco séculos – era redescoberta como uma fonte trazendo novas águas para interpretar a história. Nossos sonhos navegavam no misterioso veleiro do tempo, enfunado pelos ventos da fé revolucionária, carregado de hinos e canções libertárias, levando a mãe-terra e as sementes para os deserdados, carregado com as emoções e o encanto da solidariedade e rumando à sociedade que sonhávamos.
Nós, os poetas, expressávamo-nos pelos líricos rastros dessa ansiada utopia, cantando as primícias de um novo mundo e pressentindo as luzes daquele imenso amanhecer. Transitávamos na rota das estrelas, em busca de um porto no horizonte, em busca
de um homem novo, de uma terra prometida a ser entrevista nos primeiros clarões
da madrugada. Havia uma perseverante certeza no amanhã e muitos caíram lutando
com essa crença tatuada na alma, embora os sobreviventes nunca tenham chegado a
contemplar essa alvorada.
A partir da década de 70, a ascensão do capitalismo financeiro, sob o disfarce de globalização,
começou a estender as suas redes e a ganhar, com armas invencíveis, essa nova e
imensa guerra mundial, avançando com sua voracidade, desterrando os valores
humanos, gerando multidões de excluídos,
triturando nossas utopias, transformando o planeta num supermercado e
descaracterizando a própria cultura com atraentes
modelos de um consumismo supérfluo e descartável.
Os precursores involuntários da pós-modernidade –
leia-se Nietzsche e Heidegger – e os seus mais ilustres ideólogos, na filosofia
e na arte, aliaram-se ao trabalho posterior de demolição comandado pela
globalização. Reagindo aos paradigmas orgulhosos e dogmáticos da ciência mecanicista
do século XIX, os intelectuais niilistas apostaram na reação generalizada da
descrença nos valores humanos, desconstruindo o significado da verdade, da
beleza e da transcendência do humanismo na tradição ocidental; anunciando uma
liberdade sem a noção do dever; desrespeitando os arquétipos da religiosidade;
desqualificando a história; invertendo a estética da arte ao despojá-la da
estesia e do encanto (e se há algum mérito nos exageros da arte moderna é o de
retratar o perfil catastrófico do mundo contemporâneo); retirando a melodia da
música, proclamando a irreverência e ironizando os ideais e o significado da
utopia. Sobre
esse termo, tão desfigurado em nossos dias, certa vez estudantes colombianos
fizeram ao celebrado cineasta argentino Fernando Birri, a seguinte pergunta: Para que serve a utopia? Ele respondeu
que a utopia é como a linha do horizonte, está sempre a nossa frente e por isso
nunca podemos alcançá-la. Se andamos dez, vinte, cem passos, ela sempre estará
adiante de nós. Se a buscamos, ela se afasta. Para que serve a utopia? perguntou ele, respondendo:
Para fazer-nos caminhar…
A
contracultura, a pós-modernidade, a globalização e a destruição ambiental, são
os novos cavaleiros do mundo apocalíptico que recebemos. Dessas quatro
patéticas “figuras”, as três primeiras causaram efeitos desastrosos sobre a
cultura – e lá na região andina, minha nova escola naqueles anos, a globalização insinuaria o esquecimento da história e da cultura deparando-se com a luta dos peruanos ante a herança quéchua e a resistência inquebrantável dos bolivianos pela manutenção da cultura aymara – e as duas últimas sobre os rumos futuros da humanidade.
Não herdamos somente a decepção, mas uma crônica indignação a despeito de qualquer otimismo. Hoje somos, tão somente, seres comprados nesse grande shopping de negócios e aparências em que se transformou o mundo, herdeiros impotentes de um sonho, vivendo num mundo alienante, distópico e devorado pelas fauces da globalização.
Anos 60 - Que ventura ter sido jovem naquele tempo! Lá a realidade estava a poucos passos dos ideais.
Século XXI - Que estranha transição! Para onde vamos? Sem norte, sem porto, sem um amanhecer! Quanta perplexidade, quantos pressentimentos! Haverá outro mundo, melhor e possível? Sem crueldade, estupidez e promessas mentirosas? São perguntas plurais que pedem respostas plurais. Essa é uma transição sombria balizada pela desventura e o desencanto. É um tempo de antíteses. Esperamos que o próprio Tempo, com sua misteriosa dialética, nos traga uma regenerada síntese. Nesse impasse restam-nos, contudo, os territórios invioláveis da imaginação e da esperança e para mim um pouco mais: a transcendência, e a grata introspecção nessas memórias."
Manoel de Andrade, in "Nos rastros da Utopia, uma memória crítica da América Latina nos anos 70", Edições Escrituras, São Paulo, Brasil, 2014, pp.393-398
[1] Apodo que tinha o Partido Comunista de Brasil, na época considerado o maior partido político de esquerda do país.
Há cinquenta anos, quando vivenciei os fatos aqui relatados, eu tinha uma bela imagem do significado de ser brasileiro e latino-americano. Tínhamos todas as trincheiras revolucionárias abertas e os ideais de liberdade hasteados em todas as fronteiras. Hoje, como brasileiro, vejo essa figuração borrada e envergonhada, nessa transição sombria pela qual passamos. Como latino-americano vejo que muitas luzes se apagaram ante as sombras imensas da pobreza, da desigualdade, da violência organizada e pelo infortúnio do narcotráfico.
ResponderEliminarNo mundo, tantas conjunturas foram se somando para abalar o destino dos povos e a globalização foi a pior delas, já que em face do seu poder todos somos impotentes. A ela se acrescenta agora uma tragédia ainda maior, vivida pelas vítimas do calvário na Ucrânia, por uma Europa que padece ante os pressentimentos nucleares e por um mundo que parece enlouquecer.
Contudo, e ainda que a distância não nos preserve da crise e do desastre, resta-nos, como latino-americanos, um grato compartilhamento de benefícios comerciais e da cultura fraterna de dois belos idiomas que não precisam de dicionários para se entenderem.
Muito obrigada pelas palavras . Este tempo é, de novo, um tempo sujo pela belicosa cegueira de novos déspotas que trucidam e abalam o equilíbrio mundial.
EliminarHoje, acordando neste contexto desafiafor, reli seus “rastros” …
EliminarSenti como estudar um mapa, relato de uma cartografia percorrida e, apesar da constatacao melancolica de uma eterna e cansativa repeticao humana, uma indicacao, uma luz de candieiro… seguindo os rastros, rumo à Utopia, , rastros que nos incita a continuar.