“Viver uma vida desapaixonada e culta, ao
relento das ideias, lendo, sonhando, e pensando em escrever, uma vida
suficientemente lenta para estar sempre à beira do tédio, bastante meditada
para se nunca encontrar nele. Viver essa vida longe das emoções e dos
pensamentos, só no pensamento das emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar
ao sol, douradamente, como um lago obscuro rodeado de flores. Ter, na sombra,
aquela fidalguia da individualidade que consiste em não insistir para nada com
a vida. Ser no volteio dos mundos como uma poeira de flores, que um vento
incógnito ergue pelo ar da tarde, e o torpor do anoitecer deixa baixar no lugar
de acaso, indistinta entre coisas maiores. Ser isto com um conhecimento seguro,
nem alegre nem triste, reconhecido ao sol do seu brilho e às estrelas do seu
afastamento. Não ser mais, não ter mais, não querer mais… A música do faminto,
a canção do cego, a relíquia do viandante incógnito, as passadas no deserto do
camelo vazio sem destino…”
Fernando Pessoa/ Bernardo Soares, in Livro do Desassossego , Assírio & Alvim
Fernando Pessoa/ Bernardo Soares, in Livro do Desassossego
A vida humana
"A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou nisso. Pois essa impressão também me acompanha por toda a parte. Quando vejo os estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades activas e investigadoras do homem, e como todo o nosso trabalho visa apenas a satisfazer as nossas necessidades, as quais, por sua vez, não têm outro objectivo senão prolongar nossa mesquinha existência; quando verifico que o nosso espírito só pode encontrar tranquilidade, quanto a certos pontos das nossas pesquisas, por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um presidiário que adornasse de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as paredes da sua cela… tudo isso, Wilhelm, me faz emudecer. Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo! Mas, também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagem através do mundo."
Johann Wolfgang von Goethe, in " Werther", Livraria Civilização, 1958
Estranho é o Sono que não te Devolve
Estranho é o sono que não te devolve.Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.
Daniel Faria, in "Explicação das Árvores e de Outros Animais", Fundação Manuel Leão
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