quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Contraluz

Abrimos o livro de Paul Celan, Arte poética, e deparamo-nos com estes preciosos pensamentos, compostos em marcha inversa, ou seja, à contraluz . Paul Celan (1920-1970)  usa uma técnica surrealista que inclui elementos da realidade (racional), mas compondo-os de tal maneira que entram em conflito com as expectativas e, portanto, parecem absurdos, repletos de paradoxos.

 Contraluz 1

" O coração ficou escondido no escuro e duro como a pedra filosofal."

" Era Primavera , e as árvores voaram para os seus pássaros."

" Ela virou as costas ao espelho, pois detestava a vaidade do espelho."

" Fala-se em vão de justiça enquanto o maior dos navios não se despedaçar contra a fronte de um afogado."
(...)

" O abraço dela durou tanto que o amor desesperou deles."

" Tinha chegado o dia do juízo e, para se procurar a maior das infâmias, a cruz foi pregada em Cristo."

" Enterra a flor e põe o homem sobre esta campa." 

" A hora saltou do relógio, pôs-se à frente dele e ordenou-lhe que andasse certo."
(...)

" Ele pôs na balança virtudes e vícios, culpa e inocência, boas e más qualidades, porque queria certezas antes de se julgar a si próprio. Mas os pratos da balança , com tais pesos, mantinham-se à mesma altura.
Como queria a todo o custo chegar a uma conclusão, fechou os olhos e andou vezes sem conta à volta da balança ou num sentido ou no outro, até já não saber em qual dos pratos estava este ou aquele peso. Depois colocou, às cegas, num dos pratos a sua decisão de se julgar a si próprio.
Quando voltou a abrir os olhos , um dos pratos tinha, na verdade, baixado, mas já não era possível reconhecer qual dos dois, se o prato da culpa, se o da inocência.
Isso deixou-o zangado, recusou-se a ver nisso uma vantagem e pronunciou a sua sentença, sem, contudo, poder evitar a sensação de estar eventualmente a cometer uma injustiça."

" Não te iludas: não é esta última candeia que dá mais luz- foi a escuridão em redor que se aprofundou mais em si mesma."
(...) 

" Ela virou as costas ao espelho, pois detestava a vaidade do espelho."

" Ele ensinava as leis da gravidade, produzia prova sobre prova, mas só encontrava orelhas moucas. Elevou-se então nos ares e ensinou as leis , pairando - agora já acreditavam nele, mas ninguém se admirou quando ele não regressou do ar."
Paul Celan, in Arte Poética - O Meridiano e outros textos, Edições Cotovia, Lda, Lisboa 1969
    
1) Publicado  no Jornal Die Tat, de Zurique, em 12 de Março de 1949

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