por Northrop Frye
“Comecemos com as diferentes formas que temos de lidar com o mundo em que vivemos. Imaginemos que naufragamos numa ilha inabitada nos mares do Sul.
A primeira coisa que fazemos é olhar demoradamente para o mundo que nos rodeia, um mundo de céu e mar e terra e estrelas e árvores e colinas. Vemos esse mundo como objetivo, como algo colocado ali contra nós e que não é nem nós nem está, de alguma forma, relacionado connosco. E reparamos em duas coisas a respeito desse mundo objetivo. Em primeiro lugar, não tem qualquer tipo de conversação. Está repleto de animais e de plantas e de insetos atarefados com os seus próprios assuntos, mas não há nada que nos responda de volta: não tem moral nem inteligência, ou, pelo menos, nenhuma que possamos compreender. Pode até ter uma forma e um significado, mas não parece ser uma forma humana ou um significado humano. Mesmo que haja o suficiente para comer e que não existam animais perigosos, sentimo-nos sozinhos e assustados e indesejados nesse mundo. Em segundo lugar, descobrimos que olhar para o mundo, como algo colocado ali contra nós, divide a nossa mente em duas. Temos um intelecto que nos torna curiosos em relação a ele e que nos dá vontade de o estudar, e temos sentimentos ou emoções que o vêem como belo ou austero ou terrível. Sabemos que ambas estas atitudes têm alguma realidade, pelo menos para nós. Se o navio no qual naufragámos for um navio ocidental, provavelmente sentiríamos que o nosso intelecto nos diz mais sobre aquilo que realmente existe no mundo exterior e que as nossas emoções nos dizem mais a respeito daquilo que se passa dentro de nós. Se as nossas origens forem orientais, é mais provável que invertamos isso e que digamos que a beleza ou o terror era aquilo que realmente existia ali e que o nosso instinto de contar e de classificar, de medir e de analisar até à exaustão era aquilo que estava dentro das nossas mentes. Mas quer o nosso ponto de vista seja ocidental ou oriental e desde que estejamos simplesmente a olhar para o mundo, o intelecto e a emoção nunca se juntam na nossa mente. Eles alternam e mantêm-nos divididos entre si. A este nível da mente, a linguagem que utilizamos é a linguagem da consciência ou do discernimento. É maioritariamente uma linguagem de substantivos e de adjetivos. É preciso ter nomes para as coisas e é preciso qualidades como «molhado» ou «verde» ou «belo» para descrever como as coisas nos parecem. Esta é a posição especulativa ou contemplativa da mente, a posição onde as artes e as ciências começam, embora não permaneçam lá por muito tempo. As ciências começam por aceitar os factos e as provas a respeito de um mundo externo sem procurar alterá-los. A ciência procede através de medições precisas e de descrições, e segue as exigências da razão e não as das emoções. Aquilo de que ela trata está lá, queiramos ou não. As emoções não são razoáveis: para elas, aquilo que vem em primeiro lugar é aquilo de que gostam ou não gostam. Estaríamos naturalmente inclinados a pensar que as artes seguem o caminho das emoções, por oposição às ciências. Até certo ponto, seguem, mas há um factor complicador. Esse factor complicador é o contraste entre «eu gosto disto» e «eu não gosto disto». Nesta vida de Robinson Crusoe que nos atribuí, poderemos ter estados de espírito de completa paz e alegria, estados de espírito esses a que acederemos quando aceitarmos a nossa ilha e tudo à nossa volta. Não experimentaremos tais estados de espírito com muita frequência e, quando os experimentarmos, serão estados de espírito de identificação, quando sentirmos que a ilha é parte de nós e nós parte dela. Esse não é o sentimento de consciência ou de discernimento em que nos sentimos separados de tudo aquilo que não é a nossa percepção de nós mesmos. A nossa disposição de espírito habitual é a sensação de separação que acompanha o facto de estarmos conscientes, e a sensação de que «isto não é parte de mim» depressa se torna em «isto não é o que eu quero». Guardemos a palavra «querer»: em breve voltaremos a ela. Assim sendo, rapidamente damos conta de que há uma diferença entre o mundo em que vivemos e o mundo em que queremos viver. O mundo em que queremos viver é um mundo humano, não um mundo objetivo: não é um meio envolvente, mas um lar; não é o mundo que vemos, mas o mundo que construímos a partir daquilo que vemos. Começamos a trabalhar para construir um abrigo ou plantar um jardim e, assim que começamos a trabalhar, mudamos para um nível diferente de vida humana. Agora, não estamos apenas a separar-nos da natureza, mas a construir um mundo humano e a separá-lo do resto do mundo. O nosso intelecto e as nossas emoções estão agora ambos empenhados na mesma atividade, sendo que, por isso, já não há nenhuma distinção real entre si. Assim que plantamos um jardim ou que cultivamos a terra, desenvolvemos a concepção de «erva daninha», a planta que não queremos lá. Mas não podemos dizer que «erva daninha» seja uma concepção ou intelectual ou emocional, porque ela é, ao mesmo tempo, ambas. Mais do que isso, nós vamos trabalhar, porque sentimos que temos de ir, e porque queremos obter algo no fim do trabalho. Isso significa que as mais importantes categorias da nossa vida já não são o sujeito e o objeto, o observador e as coisas que estão a ser observadas: as categorias mais importantes são aquilo que temos de fazer e aquilo que queremos fazer — por outras palavras, a necessidade e a liberdade. "
Northrop Frye, em Elogio da Literatura ,Edições 70, 2022, pp.16, 17, 18, 19 20
“Comecemos com as diferentes formas que temos de lidar com o mundo em que vivemos. Imaginemos que naufragamos numa ilha inabitada nos mares do Sul.
A primeira coisa que fazemos é olhar demoradamente para o mundo que nos rodeia, um mundo de céu e mar e terra e estrelas e árvores e colinas. Vemos esse mundo como objetivo, como algo colocado ali contra nós e que não é nem nós nem está, de alguma forma, relacionado connosco. E reparamos em duas coisas a respeito desse mundo objetivo. Em primeiro lugar, não tem qualquer tipo de conversação. Está repleto de animais e de plantas e de insetos atarefados com os seus próprios assuntos, mas não há nada que nos responda de volta: não tem moral nem inteligência, ou, pelo menos, nenhuma que possamos compreender. Pode até ter uma forma e um significado, mas não parece ser uma forma humana ou um significado humano. Mesmo que haja o suficiente para comer e que não existam animais perigosos, sentimo-nos sozinhos e assustados e indesejados nesse mundo. Em segundo lugar, descobrimos que olhar para o mundo, como algo colocado ali contra nós, divide a nossa mente em duas. Temos um intelecto que nos torna curiosos em relação a ele e que nos dá vontade de o estudar, e temos sentimentos ou emoções que o vêem como belo ou austero ou terrível. Sabemos que ambas estas atitudes têm alguma realidade, pelo menos para nós. Se o navio no qual naufragámos for um navio ocidental, provavelmente sentiríamos que o nosso intelecto nos diz mais sobre aquilo que realmente existe no mundo exterior e que as nossas emoções nos dizem mais a respeito daquilo que se passa dentro de nós. Se as nossas origens forem orientais, é mais provável que invertamos isso e que digamos que a beleza ou o terror era aquilo que realmente existia ali e que o nosso instinto de contar e de classificar, de medir e de analisar até à exaustão era aquilo que estava dentro das nossas mentes. Mas quer o nosso ponto de vista seja ocidental ou oriental e desde que estejamos simplesmente a olhar para o mundo, o intelecto e a emoção nunca se juntam na nossa mente. Eles alternam e mantêm-nos divididos entre si. A este nível da mente, a linguagem que utilizamos é a linguagem da consciência ou do discernimento. É maioritariamente uma linguagem de substantivos e de adjetivos. É preciso ter nomes para as coisas e é preciso qualidades como «molhado» ou «verde» ou «belo» para descrever como as coisas nos parecem. Esta é a posição especulativa ou contemplativa da mente, a posição onde as artes e as ciências começam, embora não permaneçam lá por muito tempo. As ciências começam por aceitar os factos e as provas a respeito de um mundo externo sem procurar alterá-los. A ciência procede através de medições precisas e de descrições, e segue as exigências da razão e não as das emoções. Aquilo de que ela trata está lá, queiramos ou não. As emoções não são razoáveis: para elas, aquilo que vem em primeiro lugar é aquilo de que gostam ou não gostam. Estaríamos naturalmente inclinados a pensar que as artes seguem o caminho das emoções, por oposição às ciências. Até certo ponto, seguem, mas há um factor complicador. Esse factor complicador é o contraste entre «eu gosto disto» e «eu não gosto disto». Nesta vida de Robinson Crusoe que nos atribuí, poderemos ter estados de espírito de completa paz e alegria, estados de espírito esses a que acederemos quando aceitarmos a nossa ilha e tudo à nossa volta. Não experimentaremos tais estados de espírito com muita frequência e, quando os experimentarmos, serão estados de espírito de identificação, quando sentirmos que a ilha é parte de nós e nós parte dela. Esse não é o sentimento de consciência ou de discernimento em que nos sentimos separados de tudo aquilo que não é a nossa percepção de nós mesmos. A nossa disposição de espírito habitual é a sensação de separação que acompanha o facto de estarmos conscientes, e a sensação de que «isto não é parte de mim» depressa se torna em «isto não é o que eu quero». Guardemos a palavra «querer»: em breve voltaremos a ela. Assim sendo, rapidamente damos conta de que há uma diferença entre o mundo em que vivemos e o mundo em que queremos viver. O mundo em que queremos viver é um mundo humano, não um mundo objetivo: não é um meio envolvente, mas um lar; não é o mundo que vemos, mas o mundo que construímos a partir daquilo que vemos. Começamos a trabalhar para construir um abrigo ou plantar um jardim e, assim que começamos a trabalhar, mudamos para um nível diferente de vida humana. Agora, não estamos apenas a separar-nos da natureza, mas a construir um mundo humano e a separá-lo do resto do mundo. O nosso intelecto e as nossas emoções estão agora ambos empenhados na mesma atividade, sendo que, por isso, já não há nenhuma distinção real entre si. Assim que plantamos um jardim ou que cultivamos a terra, desenvolvemos a concepção de «erva daninha», a planta que não queremos lá. Mas não podemos dizer que «erva daninha» seja uma concepção ou intelectual ou emocional, porque ela é, ao mesmo tempo, ambas. Mais do que isso, nós vamos trabalhar, porque sentimos que temos de ir, e porque queremos obter algo no fim do trabalho. Isso significa que as mais importantes categorias da nossa vida já não são o sujeito e o objeto, o observador e as coisas que estão a ser observadas: as categorias mais importantes são aquilo que temos de fazer e aquilo que queremos fazer — por outras palavras, a necessidade e a liberdade. "
Northrop Frye, em Elogio da Literatura ,Edições 70, 2022, pp.16, 17, 18, 19 20
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