sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Perguntar é preciso



Um magnífico e interrogativo soneto que Eugénio Lisboa acaba de fazer sair da sua sempre extraordinária e   laboriosa oficina poética.

Perguntar é preciso

Se não há vida para além da morte,
se o nada é o que nos espera,
e o existir não teve nenhum norte,
viver ou não viver tanto fizera.

Mas o não ser é algo que se entenda?
Mas o que será afinal o nada?
Haverá o que do nada dependa?
Será o nada a alma empalada?

Só nos resta, na vida, perguntar,
mesmo sabendo que não há resposta:
feita a pergunta, paira no ar

a suspeita de que nos é imposta
uma vida a buscar, na escuridão,
motivo para a nossa servidão.

                           26.08.2021
Eugénio Lisboa, (Poesia inédita)

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O Livro sobre Nada

O LIVRO SOBRE NADA

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.

Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.
Manoel de Barros , in “ Poesia Completa , Ed. Leya

 
Sinfonia No. 6 , de Ludwig van Beethoven, pela West-Eastern Diva Orchestra, sob a direcção do Maestro Daniel Barenboim, no Royal Albert Hall, 23 de Julho de 2012, (Proms 2012).

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Que livros compravam os escritores em Paris?



Que livros compravam Simone de Beauvoir, Joyce, Hemingway e Lacan em Paris?
por Alessandro Leone

"Pesquisadores da Universidade de Princeton vasculham os arquivos digitalizados da histórica livraria Shakespeare and Company para detalhar o perfil leitor de seus clientes mais ilustres .Durante a primeira parte do século XX, Paris representava mais do que nunca a cidade dos intelectuais, um ponto de encontro onde confluíam alguns dos autores-símbolo daquela época. Gertrude Stein chamava-a de Geração Perdida, uma expressão que se tornou famosa graças ao romance Paris É uma Festa (1948), de Ernest Hemingway, e que descrevia os jovens que tiveram o azar de chegar à maturidade no contexto da Primeira Guerra Mundial. A capital francesa oferecia recantos que pareciam refúgios seguros, como a histórica livraria Shakespeare and Company. Fundada em 1919 por Sylvia Beach, dedicava-se, e ainda se dedica, à venda de livros em língua inglesa, naquele momento difíceis de conseguir a um preço razoável.

De facto, na Brentano custavam cinco vezes mais que os livros em francês, e o catálogo da Biblioteca Americana não era tão extenso a ponto de ser atractivo. Já o serviço da Shakespeare and Company apresentava-se como algo único. Por oito francos e outros sete de depósito era possível solicitar um livro em empréstimo, ou dois se a cifra subisse para 12 francos. O tempo máximo de leitura permitido era de duas semanas para as publicações mais antigas e uma para as mais recentes. Todos esses detalhes são conhecidos graças ao trabalho do Projetco Shakespeare and Company, comandado pelo professor Joshua Kotin, da Universidade de Princeton (EUA), que vasculhou os arquivos digitalizados da livraria parisiense na Internet. Através desses dados, os pesquisadores revelam os gostos literários de alguns dos grandes escritores que costumavam frequentar a loja, como Gertrude Stein, James Joyce, Ernest Hemingway, Aimé Césaire, Simone de Beauvoir, Jacque Lacan e Walter Benjamin.

Os papéis escritos à mão mostram os nomes dos clientes e os livros solicitados em empréstimo. Assim, revela que Hemingway levou, entre as 90 publicações anotadas na sua ficha, as memórias de Joshua Slocum, Sailing Alone Around the World (“navegando sozinho ao redor do mundo”, 1900), ou inclusive um exemplar de um dos seus próprios livros, Adeus às Armas (1929). Stein, por sua vez, leu a novela romântica A Love in Ancient Day (“um amor na antiguidade”, 1908), de Truda H. Crosfield, e a fantasia Equality Island (“ilha da igualdade”, 1919), de Andrew Soutar, enquanto Walter Benjamin  escolheu um dicionário alemão-inglês e The Physical and Metaphysical Works of Lord Bacon (“as obras físicas e metafísicas de lorde Bacon”, 1853), este último pouco antes do seu suicídio, em Setembro de 1940, quando a polícia espanhola lhe comunicou que o entregaria à Gestapo. Lacan aproveitou o serviço para pedir um obscuro livro sobre a história da Irlanda durante a leitura de Joyce, e Claude Cahun, sob o nome de Mlle Lucie Schwob, dedicou-se às obras de Henry James. Atrasavam-se na devolução e a política era sempre a mesma: entregar ao infractor um desenho que retratava Shakespeare arrancando os cabelos.

“Muitas coisas me surpreenderam”, diz Kotin. “Surpreendeu-me que Lacan lesse sobre a Irlanda, ou que Stein lesse romances de fantasia. Mas também pela diversidade das pessoas que eram sócias da livraria. E, por último, pela diversidade dos livros. Esperava que Joyce, Woolf e Mansfield fossem os autores mais populares, não achava que fossem Norman Douglas, Charles Morgan e Rosamond Lehmann”, acrescenta.

Hoje, o histórico de empréstimos desses escritores pode ser consultado livremente na página do projecto, com buscas por cliente ou por livro. Para Kotin, a grande quantidade de material consultado demonstra uma semelhança com nossos hábitos actuais. “Comparo as suas leituras com o nosso tipo de consumo: podemos ler romances e poemas sofisticados, mas ainda vemos coisas na Netflix.”

Beach publicou em 1922 a legendária novela de James Joyce, Ulisses, e manteve a Shakespeare and Company aberta até 1941, quando se recusou a vender o último exemplar de Finnegans Wake (1939) a um oficial nazi. George Whitman conseguiu reabrir a loja 10 anos depois e doou os arquivos a Princeton em 1964. A equipa de Kotin trabalha há seis anos no armazenamento desse infinito material e, apesar disso, o professor afirma que ainda estão num ponto inicial. “Agora que temos o site, não vejo a hora de descobrir clássicos esquecidos ou comunidades de escritores unidos por seus gostos. E também informações sobre os americanos expatriados em Paris. Tenho muitíssimas perguntas. O projecto é uma ferramenta para lhes dar resposta”, afirma. Nos próximos meses, o plano é incluir um mapa que mostrará onde os autores residiam e uma lista dos livros mais populares.

Sylvia Beach não quis cumprir a regra da Associação Americana de Bibliotecas que exige que essas instituições destruam os registos dos usuários para proteger a sua privacidade. O resultado foi um arquivo de inestimável valor. “Era uma obsessiva coleccionadora de informações. Nos anos vinte, a loja e a biblioteca já eram muito famosas. Ela sabia que as pessoas se interessariam pelos arquivos no futuro. Mesmo quando fechou, continuou emprestando livros”, conta Kotin.” Alessandro Leone, Cupello (Itália) , 19.05. 2020, El País

terça-feira, 24 de agosto de 2021

"O Mundo" no olhar de Rodrigo Leão

No teu olhar 
Se perde o meu
Também o mar 
Se perde no céu 

Quanto eu não daria
 Para poder voltar atrás 
Volta pro meu peito 
Daqui não saias mais

Rodrigo Leão, com as vozes belíssimas de Ângela Silva e  Ana Vieira .
«O Mundo» é uma compilação lançada, internacionalmente, em 2006 por Rodrigo Leão. Neste excerto estão as seguintes faixas: 00:00:00 - Imortal /00:03:19 - Ave Mundi/ 00:07:07 - A Estrada/ 00:10:08 - Rua da Atalaia/ 00:13:09 - La Fête / 00:16:13 - Voltar /00:20:47 - Solitude.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Explicação necessária


Explicação necessária
Há certos versos  - às vezes  poemas inteiros-
que eu  próprio não sei o que querem dizer.  O que ignoro
retém-me ainda. E tu , tu tens razão de interrogar. Não
              interrogues.  
Já te disse que não sei.
              Duas luzes paralelas 
vindo do mesmo centro. O ruído da água
que, no inverno, cai da goteira a transbordar,
ou o ruído de uma gota de água caindo
de uma rosa no jardim, regado há pouco, 
devagar, devagarinho, uma tarde de primavera,
como soluço de um pássaro. Não sei
que quer dizer este ruído: contudo aceito-o.
As coisas que sei explico-tas.
Sem negligência.
Mas as outras também acrescentam a nossa vida.
Eu olhava
o seu joelho dobrado, como ela dormia,
levantando o lençol -
não era apenas amor. Este ângulo
era o cume da ternura, e o cheiro
do lençol, a lavado e a primavera , completavam 
este inexplicável, que eu procurei, 
em vão ainda, explicar-te. 
Eugénio de Andrade, in Poesia em verso e prosa, Círculo de Leitores, Fevereiro de 1980, p.151

domingo, 22 de agosto de 2021

Ao Domingo Há Música


Le temps qui reste

Combien de temps encore
Des années, des jours, des heures, combien ?
Quand j'y pense, mon coeur bat si fort...
Mon pays c'est la vie.
Combien de temps...
Combien ?

Je l'aime tant, le temps qui reste...
Je veux rire, courir, pleurer, parler,
Et voir, et croire
Et boire, danser,
Crier, manger, nager, bondir, désobéir
J'ai pas fini, j'ai pas fini
Voler, chanter, partir, repartir
Souffrir, aimer
Je l'aime tant
Serge Reggiani ,le temps qui reste

Há sempre um dia em que se aflora o tempo. Não o tempo  estival que queima e abrasa qualquer reflexão. Não o tempo de guerra tão mortífero como a peste que se abate sobre o mundo. Não o tempo de ditos e conflitos sobre os quais se faz o quotidiano dos Media. Não o outro tempo marginal que corre a nosso lado sem ser  interrompido, visto ou pesado. Mas sim  o  nosso tempo,  quando  a consciência da finitude  se  comprime  numa certeza insuperável . Sim , o tempo de cada um . O tempo que nos  resta. Quanto e como? Se há  tanto para fazer , tanto para sonhar, e quase tudo para viver. Sem resposta , seguimos. É apenas a questão de mais um ano,  do balanço  imposto  que terá retorno face à inevitabilidade do tempo  e,  tal como a voz heteronímica do grande bardo, sussurramos:  No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,/Eu era feliz e ninguém estava morto./Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,/E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
Gautier Capuçon, em Hymne à l'amour, a canção célebre de Edith Piaf ,   (  com letra de Edith Piaf e música de Marguerite Monnot) , no Concerto de Paris 2021 - Paris Tour Eiffel.  Ballet com os bailarinos: Tailys Poncione - Alexia Barré - Mathis Joubert - Aurélien Hoguet. A coreografia é de  Sébastien Berthaud, com Manola Alba « Un Eté en France » 2021,  produção da Société Générale.
 
Clara-Jumi Kang ,em Meditation, da ópera Thais, de Jules Massenet, acompanhada pela Seoul Philharmonic Orchestra, regida por Shi Yeon Sung, no Symphonic Festival 2018.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

DO TAMANHO DO ÍNDICO

Moçambique

Lourenço Marques, Moçambique

DO TAMANHO DO ÍNDICO
(autobiografia de um começo)

Eram praias, eram bichos e sóis,
eram pressentimentos e desejos,
era haver antes e haver depois,
era viver com pouco e de sobejos.

Havia um espaço que prometia
coisas grandes, por nós muito sonhadas:
eram tesouros que ao longe havia,
fortalezas a serem conquistadas!

Se sonhar grande é megalomania,
louco era então o nosso destino:
do tamanho daquele grande oceano

era a ambição que em nós havia,
inclinada ao maior desatino
e a um viver quase desumano!

20.08.2021
Eugénio Lisboa, (soneto inédito)

O pintor de animais

O homem que pintou o coelho (Tradição Chinesa)

"Era uma vez, na longínqua China, um homem cuja ocupação preferida era pintar.
Pintava pássaros. Pintava lebres. Pintava os peixes no ribeiro.
Os vizinhos e os amigos e todas as crianças da aldeia elogiavam-no e diziam:
— Os animais que pintaste parecem mesmo verdadeiros.
O homem tornou-se orgulhoso. E pensava:
— Ninguém no mundo consegue pintar animais como eu. O meu desejo era que os meus animais ganhassem vida.
Então, os animais pintados ganharam vida.
Os pássaros abriram as asas. Os peixes agitaram as barbatanas. As lebres espetaram as orelhas e farejaram com os seus narizes.
E saltaram para fora dos desenhos.
— Oh! — disse o homem satisfeito.
Mas, ao olhar com mais atenção, assustou-se. Os pássaros batiam as asas pesadamente e não se aguentavam no ar.
Os peixes, que tinham saltado para o ribeiro, nadavam de barriga para cima.
As lebres coxeavam.
O homem chorou ao ver os pobres animais. E disse:
— Não os pintei suficientemente bem. Que o meu desejo só se realize quando eu souber pintar bem.
O homem recomeçou a pintar. Começava de manhã cedo até à tardinha.
Afadigava-se como um lavrador no campo, como um trabalhador numa pedreira, como um boi à frente do carro. Quando os vizinhos o elogiavam, meneava a cabeça.
— Ainda não está suficientemente bem — dizia.
O homem foi envelhecendo. Esqueceu o desejo que tinha. Desenhava o sol e, enquanto desenhava, alegrava-se por ele existir. Desenhava as pedras e, enquanto desenhava, alegrava-se por elas. Tornou-se o pintor mais famoso do país.
O seu jardim estava cheio de crianças que o observavam enquanto pintava, e ele mostrava-lhes como eram lindas as coisas.
Um dia, uma menina abeirou-se dele e disse-lhe:
— Estou triste, e sabes porquê? Todos os outros meninos têm animais que podem acariciar e amar. Só eu é que não. Gostava tanto de ter um coelho. Podes desenhar-me um? Ao menos fico com um desenhado…
O velho homem pegou no pincel e desenhou um coelho. A menina disse:
— Faz-lhe uma mancha preta no nariz. Assim, fica exactamente como eu queria.
O velho homem desenhou uma mancha preta no nariz do coelho e sentiu que o nariz ganhava vida.
O nariz farejou. As orelhas compridas espetaram-se e um tremor percorreu-lhe o pêlo. O coelho virou a cabeça para a menina e, com um grande salto, pulou do desenho para os seus braços.
A menina encostou a cara ao pêlo macio.
— Que coelho tão lindo e amoroso! — disse. — Obrigada!
E saiu dali com o coelho, a correr tão contente, que nem uma só vez se voltou para o velho. Este ficou sentado à sua mesa, quieto e feliz, como se tivesse adormecido."
Lene Mayer-Skumanz (org.),Jakob und Katharina,Wien, Herder Verlag, 1986 (tradução e adaptação)

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Ilha das Flores - Açores

 

Ilha das Flores, Açores, por Rui Martins.  (Music & Video by Rui Martins . Song: "Lightwaves" by Rui Martins)
 
Ilha das Flores, Açores por Jorge Almeida e Ana Ribeiro

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

O Mendel dos livros


O Mendel dos livros
por Stefan Zweig

“Ao regressar a casa depois duma visita nos subúrbios, fui surpreendido, já em Viena, por um aguaceiro que perseguia as pessoas na rua com o seu látego húmido, obrigando‑as a correr para os portais e os alpendres, e também eu me vi compelido a encontrar rapidamente um teto que me abrigasse. Felizmente, em Viena há um café em cada esquina, de modo que corri para o que estava mesmo à minha frente, já com o chapéu a pingar e os ombros empapados. Uma vez lá dentro, encontrei um café suburbano, dum estilo quase esquemático, o café vienense tradicional, burguês, cheio a rebentar de gente comum que consumia mais jornais do que bolos, sem as atrações nem a orquestra de jazz da última moda que os cabarés do centro haviam importado da Alemanha. Nesta hora do fim da tarde, em que o ar, que de qualquer modo seria sempre sufocante, se mostrava ainda mais carregado de fumo azul, dava no entanto uma impressão de limpeza, com o veludo dos sofás visivelmente novo e a reluzente caixa registadora de alumínio. Com a pressa, nem sequer me dera ao trabalho de ver o nome antes de entrar… de resto, para quê? Sentei‑me a uma mesa, quente e confortável, a olhar impaciente pelas janelas embaciadas, esperando que aquela chuva inoportuna achasse por bem afastar‑se alguns quilómetros. E assim estava, sem nada que fazer. Começava já a abandonar‑me àquela passividade indolente que irradia como um narcótico invisível de todo o autêntico café vienense. Com esta sensação de vazio, pus‑me a examinar discretamente as pessoas, a quem, naquele espaço enfumado, a luz artificial criava círculos dum cinzento nada saudável à volta dos olhos. Observei a menina da caixa, que, com gestos mecânicos, entregava ao criado o açúcar e a colher para cada chávena de café. Meio a dormir e vagamente consciente, li os cartazes supinamente desinteressantes afixados nas paredes, e esta espécie de modorra quase me soube bem. Mas, subitamente, fui arrancado à minha sonolência duma maneira estranha. Começava a formar‑se dentro de mim uma inquietação vaga, como uma leve dor de dentes que começa sem que se saiba se é do lado esquerdo, ou do direito, nos dentes de cima ou nos de baixo. Sentia apenas uma tensão surda, uma inquietação. Então, de repente — sem que soubesse como —, tive a certeza de já ter estado ali uma vez, muitos anos antes, e de haver uma recordação que me ligava àquelas paredes, àquelas cadeiras, àquelas mesas, àquele enigmático espaço cheio de fumo. Mas, quanto mais me esforçava por recuperar essa recordação, mais ela, maliciosa e escorregadia, se me furtava, como uma medusa luzindo incertamente no mais fundo da consciência, impossível de agarrar. Em vão fixava o olhar em cada objeto que havia no local; sim, havia coisas que não conhecia, como a caixa registadora, por exemplo, com o seu matraquear tilintante ao fazer as adições, ou os painéis castanhos a imitar pau‑rosa que revestiam as paredes, tudo isso devia ter sido instalado mais tarde. Mas sim, mas sim, tinha estado ali uma vez, há vinte anos ou mais, uma parte do meu eu, enterrado como um prego na madeira há muito recoberto e invisível, estava ali. Fazendo um esforço, lancei todos os meus sentidos no espaço à minha volta e dentro de mim… e nada. Maldição! Não conse‑ guia alcançar aquela recordação desaparecida, afogada dentro de mim. Irritei‑me, como sempre que um fracasso nos torna conscientes da insuficiência e da imperfeição das nossas capacidades mentais. Mas não perdi a esperança de recuperar aquela recordação. Sabia que precisava apenas dum pequeno gancho a que pudesse agarrar‑me, pois a minha memória é dum tipo especial, boa e ao mesmo tempo má, obstinada e caprichosa por um lado, mas por outro incrivelmente fiel. Engole o que é mais importante, tanto no que se refere a acontecimentos como a fisionomias, ao lido como ao vivido, e guarda‑o nas suas profundezas, na escuridão, e só coagindo‑a devolverá alguma coisa desse mundo subterrâneo, pois não bastará o simples querer. Contudo, basta‑ me a indicação mais ténue, um postal, duas linhas manuscritas num envelope, a folha suja dum jornal, e o esquecido, como o peixe no anzol, emerge prontamente da fluida e escura superfície, vivo e a saltar. Então reconheço cada particularidade duma pessoa, a boca, e na boca a falha entre dois dentes quando se ri, e o falsete do riso, e como se torce o bigode quando se ri, e como do riso emerge outro rosto, diferente, tudo isso vejo‑o então de imediato, numa alucinação completa, e recordo, passados anos, cada uma das palavras que essa pessoa me disse em certa ocasião. Mas, para perceber com os sentidos algo que aconteceu no passado, preciso sempre dum estímulo sensorial, que a realidade me ajude minimamente. E assim fechei os olhos para poder refletir mais intensamente, para forjar aquele misterioso anzol. Nada! Outra vez nada! Tudo estava enterrado e olvidado! E tanto me irritei com o deficiente e caprichoso aparelho pensante que tenho entre as têmporas que teria dado pancadas na testa com os punhos, como se a cabeça fosse uma máquina caça‑níqueis avariada que por má fé se recusasse a dar o que se lhe pediu. Não, assim não, este fracasso íntimo exasperou‑me tanto que não podia continuar sentado sem fazer nada, de modo que me levantei para espairecer. Mas, curiosamente, mal comecei a dar os primeiros passos pela sala, produziram‑se em mim, cintilando e reverberando, os primeiros alvores fosforescentes. À direita da caixa registadora, recordei‑me, devia haver uma porta que dava para uma sala sem janelas, iluminada apenas com luz artificial. E, de facto, assim era. Lá estava ela, a sala  do fundo, com um papel diferente na parede, exata todavia nas suas proporções, quadrada, de contornos imprecisos: a sala de jogo. Instintivamente observei o mobiliário, com os nervos a vibrar já de alegria (sentia que dali a pouco saberia tudo). Duas mesas de bilhar estiraçavam‑se ao comprido, como outros tantos charcos de águas paradas cobertas de verdes limos, nos cantos acocoravam‑se mesas de jogo, numa das quais dois funcionários públicos ou professores jogavam xadrez. E a um canto, mesmo ao lado do fogão, por onde se ia para a cabina telefónica, havia uma mesa quadrada, pequena. E então, subitamente, fez‑se luz em mim, completamente. Soube logo, imediatamente, com um único e ardente choque que me fez estremecer de felicidade: meu Deus, este era o lugar do Mendel, o Jakob Mendel, o Mendel dos livros, e agora, passados vinte anos, eu tinha mais uma vez acabado por desaguar no seu quartel‑general, o Café Gluck, no alto da Alserstraße. O Jakob Mendel! Como pudera esquecê‑lo? Era inconcebível, todos estes anos. A essa personalidade singularíssima, a esse homem de fábula, a esse fenómeno mundial, famoso na universidade e num círculo restrito e respeitoso de admiradores… Como podia ter‑se‑me varrido da memória o mago do livro, o grande alfarrabista que se sentava aqui, imperturbável, dia após dia, de manhã à noite, símbolo do saber, glória e fama do Café Gluck? Não precisei de mais de um segundo para que a sua figura inconfundível se formasse na tela rosada das minhas pálpebras fechadas. Vi‑o imediatamente, em carne e osso, aqui sentado a esta mesinha quadrada com o seu tampo de mármore cinzento e sujo, sempre atravancada de livros e papéis. Aqui sentado, firme como uma rocha, imperturbável, os olhos com óculos assestados hipnoticamente num livro, aqui sentado, a murmurar e a resmungar enquanto lia, balançando o corpo e a careca mal tratada, com manchas, para a frente e para trás, um hábito que lhe ficara do Cheder, a escola judaica das crianças pequenas do Leste. Aqui, a esta mesa e só a esta mesa, lia os seus catálogos e os seus livros como lhe tinham ensinado na escola talmúdica, entoando em voz baixa e balançando‑se, qual berço negro que alguém embalasse. Pois, tal como nesse hipnótico vaivém rítmico a criança adormece e o mundo se dissolve, também para aqueles homens de fé o balançar e o embalar do corpo ocioso permite ao espírito aceder mais facilmente à graça da contemplação. E, de facto, este Jakob Mendel não via nem ouvia nada do que acontecia à sua volta. As vozes excitadas dos jogadores de bilhar e o repicar das bolas, os marcadores que estalavam nos varões das guias, o matraquear do telefone, a mulher que esfregava o soalho e acendia o fogão… não notava nada. Uma vez, uma brasa saltou do fogão, havia já fumo e cheirava a queimado no soalho a dois passos dele, quando um cliente, ao sentir o fedor infernal, viu o perigo e veio a correr apagar a fumarada. Mas ele, Jakob Mendel, distante apenas duas polegadas e já envolto em fumo, não se tinha apercebido de nada. Pois lia como outros rezam, como os jogadores jogam e os bêbados atordoados fitam o vazio, lia com um recolhimento tal que qualquer outra pessoa que vi ler depois disso me pareceu sempre superficial e profana. Em Jakob Mendel, na‑ quele pequeno vendedor ambulante galiciano de livros usados, vi pela primeira vez, na minha juventude, o grande mistério da concentração absoluta que faz tanto o artista como o erudito, o verdadeiro sábio como o imbecil acabado, a tragédia feliz ou infeliz do verdadeiro possesso. Foi um colega da universidade, mais velho, que mo apresentou. Nessa altura ocupava‑me uma investigação sobre Mesmer, o médico e magnetizador da escola paracélsica, pouco conhecido atualmente. Na verdade, pouco avançava, pois a bibliografia sobre o assunto revelou‑se insuficiente, e o bibliotecário, a quem eu, inocente caloiro, recorrera, respondeu‑me sibilinamente que a documentação e as referências eram comigo e não com ele. Então, esse meu colega referiu pela primeira vez o nome dele. — Vou levar‑te ao Mendel — prometeu —, sabe tudo e consegue tudo, vai buscar‑te o livro mais raro ao mais recôndito."

Stefan Zweig, in “O Mendel dos livros”, Editora Relógio D’Água, pp.12-15

Sobre o livro:
"Escrito em 1929, O Mendel dos Livros narra a história de um espantoso alfarrabista que passa os dias sentado na mesma mesa de um dos cafés de Viena.
Com a sua memória enciclopédica e a generosa disponibilidade, este judeu russo é admirado pelo dono do Café Gluck e pela clientela culta que recorre aos seus serviços.
No entanto, em 1915, em plena Primeira Guerra Mundial, quando o Império Austro-Húngaro e a Rússia se encontravam em campos opostos, Jakob Mendel é enviado para um campo de prisioneiros, injustamente acusado de colaborar com os inimigos da Áustria.
A Viagem ao Passado mostra-nos como uma relação amorosa pode ser interrompida e até desfeita pelas contingências da guerra, um tema que Zweig abordou sob diversas formas."

terça-feira, 17 de agosto de 2021

O Verão


Um  novo poema de Eugénio Lisboa que, nestes tórridos dias de Agosto , nos leva a acreditar  que as portas do Inferno foram abertas. Um inferno sem Dante , mas  dantesco na  voz  do poeta  e,  por   nós , em abrasadora vivência.

O VERÃO – ALGUMAS OBSERVAÇÕES
Pode ser que seja Abril
o mais cruel dos meses,
como disse um poeta
mal afinado com a natureza.
Seja como for, a ideia ficou
e vai durando, embora falsa.
Abril é um mês qualquer,
embora se diga que em Abril chove muito.
Mas Abril não é mais cruel
do que qualquer outro mês.
Cruel, sim, atroz, é o verão,
com o seu sol ardente e mortífero,
que acende a luz pavorosa
da nossa lucidez.
A luz do verão ilumina sem piedade
as zonas obscuras e ameaçadoras
da nossa condição,
torna clara e quase obscena
a dura realidade da vida.
O verão não mente, ilumina.
O verão não esconde, mostra.
O verão acena promessas enganadoras,
visto que a sua luz, iluminando a realidade,
nos ofusca também para ela.
Há gente demais, no verão,
gente horrorosamente feia, repugnante,
mal vestida de propósito.
O verão é enviesado, traiçoeiro,
mas não exactamente mentiroso.
As ilusões que o verão oferece são suicidas.
Foi no verão – nunca o esqueci! – que o amor de Mítia
o levou a pôr fim à vida: a luz cruel do verão
tornou atrozmente claro que não havia saída
para o seu desespero, no romance de Bunine,
que eu li, adolescente, e nunca esqueci.
O amor intenso e não correspondido de Mítia,
cuja não solução a luz crua de verão tão bem esclareceu,
resumiu, em medalha assassina,
tanto amor desperdiçado que o sol de verão
escancaradamente desvela, para nossa mortal tortura.
O verão é o mais cruel dos assassinos,
porque anuncia, muito evidentes, mundos deslumbrantes
que não existem,
ou que, existindo, não poderemos alcançar.
O sol violento de verão acende em nós uma lucidez,
que não é boa, porque nos deprime e nos mata.
O verão é um logro perigoso.
Este sol intenso solta, em nós, demónios que não dominamos.
O verão, mesmo não mentindo,
mente com quantos dentes tem na boca.
O verão mata tanto,
como qualquer guerra ou surto de peste.
No verão, morre-se à míngua de excesso
(a propósito, o Mário de Sá-Carneiro morreu em Abril,
porque não tinha dinheiro para chegar até Junho,
caso contrário, morreria no verão,
à míngua de excesso, como tão bem profetizara).
O verão é, apocalipticamente,
aquele vírus terminal, para que não há vacina.
Quando se nos abrem as portas do verão
deparamos com um grande aviso, em letras descomunais:
LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH’ENTRATE.

                                                          16.08.2021
Eugénio Lisboa, em poema inédito.  
       

domingo, 15 de agosto de 2021

Ao Domingo Há Música

Valetta, Malta

 Se a música é o alimento do amor não parem de tocar. Dêem-me música em excesso; tanta que, depois de saciar, mate de náusea o apetite.

William Shakespeare

Mal começou  Agosto,  a música não parou de tocar. Talvez em excesso para saciar . Agora são vozes que trazem novas tonalidades. Têm ainda todo o tempo do mundo para cantar e encantar.
Ei-las,  em modo menu para uma selecção  ao  apetite do momento de cada um.

Celeste, em  Hear My Voice (ao vivo, na cerimónia dos Óscares 2021).
   
Olivia Dean, em  Slowly (Official Video).
    
 Lauren Daigle, em  Rescue (Official Lyric Video).
  
Angela Ricci, em "Crazy", êxito de Gnarls Barkley. 
    

sábado, 14 de agosto de 2021

260 milhões de pessoas sonham em Português

Museu da Língua Portuguesa- acervo do  MLP

 (Foto: Divulgação/Ana Mello)
MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA
Reaberto, Museu da Língua Portuguesa tem um terraço em homenagem a Paulo Mendes da Rocha.  O arquitecto e seu filho, Pedro, foram responsáveis pelo projecto original do museu, de 2006; o espaço foi reinaugurado cinco anos depois de incêndio que destruiu grande parte do prédio.
Dedicado a celebrar a relevância e a diversidade da língua portuguesa, o museu passou por uma restauração completa nos últimos anos e, agora, surge pronto para provocar novas reflexões sobre esse importante instrumento cultural que é o nosso idioma. O processo de reparação do prédio histórico teve em atenção  manter todos os princípios arquitectónicos do projetco de intervenção original, realizado em 2006, ano da fundação do museu, pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha e seu filho, Pedro.
Terraço do  MLP
Entre as novidades apresentadas agora, está um novo terraço no terceiro piso, com vista para o Jardim da Luz e a torre do relógio, que homenageia o arquitecto morto neste ano. Pedro Mendes da Rocha esteve à frente da supervisão de todo o projecto de reconstrução do museu.

Novas atracções
Atracções de longa duração inéditas também fazem parte agora do museu, em conjunto com atividades clássicas que marcaram a história do local – como a instalação “Palavras Cruzadas”, que mostra as línguas que influenciaram o português no Brasil. Algumas das novas atracções são “Línguas do Mundo”, que destaca idiomas falados hoje no mundo, e “Falares”, que homenageia os diferentes sotaques e expressões existentes no país.
O museu ainda conta com o primeiro andar que é dedicado exclusivamente a exposições temporárias. Na reabertura da atracção, os visitantes podem conhecer a exposição “Língua Solta”, que mostra a relação entre nosso idioma, a arte e situações quotidianas – aqui, até memes da internet ganharam espaço!" 

Espaço traz atracções consagradas 
e também inéditas (Foto: Divulgação/Ana Mello)

O Novo Museu da Língua Portuguesa está de volta com novas experiências para um contacto emocionante com o nosso idioma

"Valorizar a diversidade da língua portuguesa, celebrá-la como elemento fundamental e fundador da cultura e aproximá-la dos falantes do idioma em todo o mundo. Foi com esses objectivos que nasceu o Museu da Língua Portuguesa; os mesmos objectivos com os quais ele renasce, em 2021, após sua reconstrução no edifício da Estação da Luz.
O Museu está sendo reaberto em 2021 após cinco anos de intensos trabalhos de reconstrução e reimplantação, com tecnologia e exposições renovadas. O fechamento, no final de 2015, foi causado por um triste incêndio que destruiu o Museu. Uma aliança entre o poder público e a iniciativa privada, no entanto, possibilitou o rápido início da obra, que em Julho de 2021 foi entregue à população.
O museu abriu ao público pela primeira vez em 2006, tendo escolhido como casa a cidade de São Paulo, que abriga a maior população de falantes da língua portuguesa em todo o mundo. A Estação da Luz foi um dos principais pontos de passagem dos imigrantes que chegavam ao país e, até hoje, é um espaço dinâmico de contacto e convivência entre várias culturas e classes sociais, abrigando sotaques vindos de todas as partes do Brasil.
Em seus primeiros 10 anos de funcionamento, o Museu da Língua Portuguesa recebeu 3.931.040 visitantes, que puderam se conectar de forma lúdica e emocionante às suas origens do idioma, sua história, suas influências e as formas que ele assume no quotidiano da população.
Por ter como tema um património imaterial, o Museu faz uso da tecnologia e de suportes interactivos para construir e apresentar seu acervo. O público é convidado para uma viagem sensorial e subjectiva, apresentando a língua como uma manifestação cultural viva, rica, diversa e em constante construção!
Tanto para sua criação quanto na sua reconstrução, o Museu contou com uma equipe multidisciplinar de profissionais, entre sociólogos, museólogos, especialistas em língua portuguesa e artistas.
De 2006 a 2015, foram mais de 30 exposições temporárias, além de cursos, palestras, debates e apresentações artísticas. Entre os homenageados com exposições, escritores como Clarice Lispector, Machado de Assis, Cora Coralina, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade, Jorge Amado, Rubem Braga, Guimarães Rosa, Agustina Bessa-Luís e Gilberto Freyre, além do cantor e compositor Cazuza.

Exposição temporária Língua Solta (2021)

O Museu da Língua Portuguesa é uma iniciativa do Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Estado da Cultura, concebido e realizado em parceria com a Fundação Roberto Marinho. Tem, como patrocinador máster, a EDP; como patrocinadores, o Grupo Globo, o Grupo Itaú e Sabesp e apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e do Governo Federal, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura. A Organização Social de Cultura IDBrasil Cultura,
Prémios recebidos
12 prémios conquistados entre 2006-2015.
2014
3º Lugar no V Prémio Ibero-Americano de Educação e Museus, pela Estação Educativo – Plataforma na WEB do Núcleo Educativo
2014
Certificado de Excelência TripAdvisor e eleito, no site, como um dos melhores museus do Brasil e da América do Sul
2013
Prémio “Melhor Escolha de Atração Cultural, “Traveller’s Choice 2013”, da Revista TripAdvisor
2012
Prémio O Melhor do Brasil, na categoria Museu, concedido pela Revista Viagem e Turismo (voto dos leitores)
2011
1º Lugar do Prémio Darcy Ribeiro, concedido a projectos de educação patrimonial (Dengo), pelo IBRAM – Ministério da Cultura
2007
Lighting Awards – International Association of Lighting Designers de Nova York (melhor projeto de iluminação)
2007
Premio Novidade do Ano – Guia Brasil Quatro Rodas
2006
Diploma de reconhecimento da Unesco como melhor projecto na área de Comunicação e Informação
2006
Troféu / Homenagem do Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan, por sua contribuição à museologia brasileira
2006
Prémio da Fundação Luso-Brasileira, na categoria Cultura e Ciência
2006
Prémio Pritzker para Paulo Mendes da Rocha (considerado o “Prémio Nobel da Arquitetura”). Antes dele, Niemeyer era o único brasileiro que havia sido premiado.
2006
Destaques do Ano SMACNA (sistema de refrigeração)Educação e Esporte é a responsável pela gestão do Museu."
(Textos  dos sites Casa Vogue e do Museu da Língua Portuguesa, Brasil)

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

A propósito de Picasso

Pablo Picasso (Málaga, 25 de Outubro de 1881- 
– Mougins, 8 de Abril de 1973)

De uma guerra à outra (1936-45)

Como se imagina , Picasso foi particularmente sensível à guerra civil que dilacerou a sua Espanha natal. Exprimia, muito especialmente, os seus sentimentos na famosa tela. Mas este conflito era apenas o prelúdio de um desencadear da fúria que ia afectar o planeta. Quando a França é invadida, Picasso fica junto dos amigos, apesar da nacionalidade espanhola lhe permitir exilar-se. Jacques Prévert ficou-lhe agradecido.

As declarações políticas de Picasso são muito raras. Sobre a guerra civil que despedaça a Espanha a partir de 1936, pronuncia-se todavia de forma clara:
- A guerra de Espanha é a batalha da reacção contra o povo, contra a liberdade. Toda a minha vida de artista mais não foi do que uma luta contra a reacção e contra a morte da arte. No painel em que trabalho agora e a que chamo Guernica, exprimo claramente o meu horror pela casta militar que mergulhou a Espanha num oceano de dor e de morte.

(…)

Guernica, de Picasso , pintada a óleo em 1937.

A propósito de Guernica, Michel Leiris escreve:
«Num rectângulo preto e branco , tal como nos aparece a tragédia antiga, Picasso envia-nos a nossa carta de participação : tudo o que amamos vai morrer».

(…)
A Matisse que, face à rapidez do desastre que a França sofre em 1940,  pergunta o que fazem os generais franceses, Picasso responde:
 - Os nossos generais é a Escola de Belas-Artes.

Depois da derrota, Matisse escreve ao filho Pierre, que vive em Nova Iorque: « Se todos tivessem feito o seu trabalho, como eu e Picasso fazemos o nosso, isto não teria acontecido.»

Picasso tem direito , no início da ocupação, como muitos outros, a uma visita da Gestapo, que lhe vasculha o atelier. Um oficial nazi, ao ver sobre a mesa uma foto de Guernica interroga-o:
- Foi o senhor que fez isto?
Resposta de Picasso:
- Não, foram vocês.

(…)

Por vezes , grupos de alemães visitam o atelier para verem os seus quadros , que os deixam quase sempre embaraçados. Picasso diverte-se a oferecer-lhes bilhetes postais com reproduções de Guernica, dizendo-lhes:
- Levem. Souvenir! Souvenir!

O realismo socialista desconsiderado

Picasso tinha feito uma belíssima litografia representando um pombo. Aragon, (Louis Aragon, (1897-1982), escritor, jornalista, poeta , romancista francês , membro do PCF, Partido Comunista Francês), procurava uma ilustração para o cartaz do Congresso Mundial dos Partidários da Paz (1948), escolheu-a para servir de Pomba da Paz. Sob este nome , a ave será vista no mundo inteiro. Picasso diverte-se imenso com o entusiasmo de Aragon:
- O pobre Aragon …A pomba dele é um pombo! Não percebe nada de pombos! A lenda da terna pomba, que logro! Não há animais mais cruéis. Tive aqui uns que mataram à bicada uma pobre pombinha que não lhes agradou…Furaram-lhe os olhos, fizeram-na em pedaços, foi horrível…Que símbolo da paz!

Picasso, retrato de Estaline , 1953

Em 1953, pediram-lhe para o semanário do PCF, Les Lettres françaises, um retrato de Estaline, que acabava de morrer. O líder  soviético era sempre representado como um ««velho» bonacheirão. Picasso decide basear-se numa foto de Estaline jovem , e o retrato exprime uma certa brutalidade e não corresponde aos cânones do realismo  socialista. Este exemplo de arte decadente provoca uma reacção muito viva do Partido:
« Sem pôr em causa os sentimentos do grande artista Picasso, cuja dedicação à classe trabalhadora  é de todos conhecida,  o secretariado do Partido Comunista Francês lamenta que o camarada Aragon, membro do  Comité Central, que aliás luta corajosamente pelo desenvolvimento da arte realista, tenha permitido esta publicação. »
Aragon , chefe da redacção do jornal, aceita orquestrar um movimento de protesto dos leitores.

Uma relação complexa com o dinheiro
(…) Quando fazia arrumações , descobri uma coisa muito curiosa , uma frase que tinha escrito num álbum: « Agradeço a Deus ter-me dado a pobreza durante uma parte da minha vida , e depois o fastio.» Disse para mim mesmo: « Que felicidade , em breve tudo estará acabado. Deixarei de ter dinheiro. Será como antigamente. Imagina , uma segunda juventude.»

Gostaria de viver como um pobre com muito dinheiro.

Picasso, retrato de Gertrude Stein , (1905-1906) 


Da relação com o real
A Gertrude Stein , enquanto lhe pintava o retrato:
- Deixo de vê-la quando olho para ela.

Uma coisa é ver , outra coisa é pintar.

(…)

Picasso, a propósito do retrato de Gertrude Stein ( que exigiu mais de oitenta sessões de pose, mas que foi terminado na ausência da interessada):
- Sim , todos dizem que não está parecida , mas não faz mal, ela acabará por parecer-se com ele.
Mais tarde , quando Gertrude Stein corta os cabelos , a primeira reacção de Picasso, ao vê-la é perguntar, furioso:
- E o meu retrato?
Para imediatamente acrescentar :
- Ao fim e ao cabo, está tudo lá.

Picasso por Picasso, Pensamentos e várias memórias, organização de Paul Désalmand, Contexto Editora, Outubro de 2000, pp.43-75


Matisse e Picasso

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

A Índia é um conceito de vida

Na Europa o terror da morte sempre suscitou  a mais viva aspiração à imortalidade pessoal e espiritual; ao passo que na Índia o terror da vida [...] suscitou a aspiração oposta: o aniquilamento definitivo através da ascese, ou seja, o nirvana.
  Alberto Moravia, Uma ideia da Índia


Em 1961, Alberto Moravia,( Roma 1907- Roma 1990,) fez uma viagem à Índia a que chama a experiência da Índia. Regista-a num interessante livro, com o título "Uma ideia da Índia". Por se tratar de um grande escritor que comecei a ler na minha juventude e a quem regresso com alguma frequência e encanto , sinal da sua perene contemporaneidade , resolvi evocar uma passagem deste belíssimo livro e segui-la de um tema musical do famoso músico-compositor indiano , Ravi Shankar.
Eis, então , um pequeno trecho transcrito da Introdução dessa singular obra, que simula um diálogo em torno da questão o que é a Índia :
Introdução
"(...)E o que é  a Índia! 
  Como hei-de de dizer-te ? A Índia é a Índia.
(...) Não te compreendo.
(...) Pois bem,  a Índia é o contrário da Europa.
  Fico a saber o mesmo . Em primeiro lugar, seria preciso que me dissesses o que é a Europa.
  Prefiro encontrar um slogan para a Índia. Ora bem, digamos que a Índia é o país da religião.
  E isso seria o contrário da Europa. Mas a Europa também é religiosa.
  Não, a Europa não é religiosa. No entanto , as religiões pagãs do Mediterrâneo e dos países  nórdicos, o catolicismo, a Reforma...
  Não importa. A Europa não é religiosa.
  É o quê, a Europa?
  Se eu fosse indiano, talvez to soubesse  dizer. Como europeu, torna-se-me difícil. 
  Então, imagina que és um indiano. 
 Como indiano , dir-te-ia: a Europa, aquele continente onde o homem está convencido de que  se encontra no centro do mundo, e onde o passado se chama história, e a acção é preferida à contemplação; a Europa onde comummente se crê que a vida vale a pena ser vivida, e onde o sujeito e o objecto convivem em boa harmonia, e duas  ilusões como a ciência e a política são levadas a sério e a realidade nada esconde, e no entanto, apesar disso, é nada;  o que tem a Europa a ver com a religião?
  Eis um indiano um pouco presumido. Ignora , pelo menos, o passado da Europa, refiro-me ao passado religioso, aos séculos durante os quais foram construídas as catedrais.
  A Idade Média, estava para falar nisso. Não é verdade que o nosso indiano ignore  a Idade Média; pelo contrário, dá-lhe valor, porque é esse, justamente, o único período histórico da Europa que lhe faz lembrar a Índia. Mas ele também sabe que para a grande maioria dos europeus a recordação atávica da Idade Média é a recordação da ignorância, da infelicidade, da grosseria, do atraso e da miséria. O nosso indiano interpreta a tenaz persistência deste preconceito do senso comum popular contra a Idade Média como mais uma prova de que a Europa, no fundo, não é religiosa. E , de facto, os europeus chamam Renascimento ao final da Idade Média; de acordo com o ponto de vista da Índia , deveriam chamar-lhe antes Decadência.   
(...) Ainda estou à espera que me expliques o que quiseste dizer com a frase « a Índia é o país da religião». Para já , de que religião? Na Índia há muitas religiões. Do budismo? Do hinduísmo? Do jainismo? Do islamismo?
  Não, de nenhuma dessas religiões. 
  Mas, que eu saiba, referi as principais religiões da Índia.
  A Índia não é um país com uma religião historicamente bem definida, com um fundador, uma evolução, um passado, um presente e um futuro. A Índia é o país da religião como situação existencial. Da religião imediata.  Por absurdo que pareça, mesmo que não houvesse religiões na Índia, a Índia seria à mesma o país da religião.
  Mas uma religião imediata não existe.Existem as religiões; e, para cada um dos seguidores, a sua própria religião. 
  Se eu quisesse fazer um paradoxo, dir-te-ia que as religiões tal como tu dizes, precisamente porque são religiões, isto é, têm um fundador, uma evolução, um passado, um presente e um futuro, já não são a religião.  Num certo sentido, são resultados de segundo grau e quase sempre compromissos. 
  Então diz-me tu o que é a religião.
  Já te disse : a religião é a Índia e a Índia é a religião. 
  Assim não saímos disto. Tens de me dizer o que é essa religião, da qual as religiões não são mais do que resultados de segundo grau; e, uma vez que a religião é a Índia.
(...) É difícil dizer-to. Enquanto estive na Índia senti a presença da religião em muitas coisas , em muitos aspectos. Teria de te descrever a Índia inteira, pensa só , um continente que é pouco menor do que a Europa, quatrocentos milhões de pessoas ( 1,3 mil milhões de pessoas, em 2021 ), quinhentas mil aldeias, milhares de divindades.
(...)Mas eu ainda não compreendi  por que razão a Índia é a religião.
  O que querias mais?
  Uma definição.
  Então dir-te-ei aquilo que te podia ter dito desde o início: a Índia é um conceito de vida.
  Que conceito?
  O bem conhecido conceito, segundo o qual tudo aquilo que parece real  não é real, e tudo aquilo que não parece real é real. Deste conceito deriva a desvalorização completa da vida como coisa absurda e dolorosa , e a convicção de que o homem não deve agir para melhorar o mundo , mas sim para dele sair e juntar-se à realidade supra-sensível, ou seja, espiritual.  A religião é, pois, um conceito completamente negativo no que respeita à realidade  dos sentidos, por ser completamente positivo quanto à realidade espiritual. Disse que a Índia é a religião , porque todo o mal e todo o bem da Índia parecem confirmar e justificar esse conceito. 
  É um conceito pessimista.
  Não, não é um conceito pessimista, é um conceito que nega certas coisas e afirma algumas outras. É pessimista se o considerarmos do ponto de vista das coisas que  nega, é optimista se o considerarmos do ponto de vista das coisas que afirma. É pessimista do ponto de vista europeu ou, pelo menos, daquele que em tempos era o ponto de vista europeu; é optimista do ponto de vista indiano ou, pelo menos, daquele que era em tempos o ponto de vista indiano.
  Porquê? Ambos os pontos de vista mudaram?
  Sim , mudaram.
  E de que modo?
  Os indianos imitam os europeus e os europeus imitam os indianos.
  Ou seja?
  Os indianos gostariam de acreditar na realidade dos sentidos, os europeus acreditam cada vez menos.
  Então, uma vez que os papéis  se inverteram, para que te serviu ir à Índia?
  Já te disse , para fazer a experiência da Índia.
  Ou seja?
  Ou seja, ver por que razão os europeus são europeus e os indianos indianos. " 
Alberto Moravia, in Uma ideia da Índia, Edições Tinta da China, Lda, Maio de 2009, pp.13-26
 
Concerto for Sitar and Orchestra No. 1: I. Raga Khamaj , de Ravi Shankar, com o próprio Ravi Shankar na Sitar  e  a London Symphony Orchestra, sob a direcção do Maestro André Previn. A produção é de Christopher Bishop.