A leitura aproxima as pessoas
por Eduardo Agualusa
"Os bons escritores são aqueles que conseguem colocar os leitores na pele do outro. Creio ser essa a maior virtude da leitura. Ao entrar na pele de diferentes narradores, ao sentir-se parte de outras vidas, o leitor vai-se percebendo também parte da restante Humanidade. Tenho para mim, e atrevo-me a partilhar com vocês esta convicção — ingenuidade, dirão os cínicos —, que os grandes leitores tendem a ser menos inclinados à violência. Primeiro, porque a violência é sempre um recuo do pensamento. Depois, porque a leitura, enquanto exercício de alteridade, aproxima as pessoas.
Venho de um país que sofreu uma das mais longas e cruéis guerras civis do nosso tempo. Os fazedores de guerras civis sabem que, para triunfarem, têm de começar por desnacionalizar o inimigo. A seguir, passam a questionar a sua humanidade. Primeiro, o inimigo é um estrangeiro, depois um monstro. Um monstro, ainda para mais estrangeiro, pode ser morto. Deve ser morto.
A boa literatura trabalha em sentido contrário. Dá-nos a ver a humanidade dos outros, inclusive dos que nos são estrangeiros. Inclusive dos monstros."
José Eduardo Agualusa, em Fronteiras do Pensamento
Vamos Ler
por Eugénio Lisboa
"Nesta altura
da minha vida, informado pelas bem recheadas fichas da revista VAMOS LER!, eu olhava para o futuro,
aguardando a minha vez de mergulhar em todos aqueles grandes escritores de que
ali se falava. Sim porque eu não me ia contentar com as leituras obrigatórias
daquele punhado de obras que o liceu me impunha. Muito menos era eu feito do
material de que são feitos os leitores de um só livro. Porque os há! Por
exemplo, a escritora inglesa Nancy Mitford, romancista, biógrafa e jornalista,
dizia isto a quem a quisesse ouvir: “”Em toda a minha vida, só li um livro, que
é o White Fangs (Caninos Brancos) [de Jack London]. É tão tremendamente bom, que não
me dei ao trabalho de ler mais nenhum.” Isto é menos estranho do que possa
parecer. Todos nós já passámos por uma experiência parecida, embora de curta
duração: quando um livro nos impressiona e marca profundamente, a seguir a ele,
nenhum outro livro nos parece apetecível. Passou-se isso comigo, por mais de
uma vez. Por exemplo, quando, aos catorze ou quinze anos, li, pela primeira
vez, o romance de Stendhal, Le Rouge et
le Noir, foi tão fundo o meu envolvimento com a história e com os
personagens, que só me apetecia relê-lo e todos os outros livros se me
afiguravam descartáveis. Deu-se o mesmo, quando, pela primeira vez, li
Voltaire, com a sua prosa lúcida, ágil e acutilante e o seu humor ferino, e,
sobretudo, quando mergulhei no teatro cintilante desse feiticeiro que foi Oscar
Wilde. Adiante falarei nele.
(...)A
escritora inglesa Virginia Woolf tem uma inesquecível passagem, num dos seus
livros, que sublinha de modo pitoresco o valor egrégio do gosto de ler. Nestes
termos: “Tenho algumas vezes sonhado que, no dia em que o Dia do Juízo
amanhecer e os grandes conquistadores e juristas vierem receber as suas
recompensas – as suas coroas, os seus louros, os seus nomes gravados
indelevelmente no mármore imperecível – o Altíssimo se virará para S. Pedro e
dir-lhe-á, não sem uma certa inveja, quando nos vir a nós aproximar-nos, com os
nossos livros debaixo dos braços: ‘Olha, estes não precisam de recompensa. Não
há nada que possamos dar-lhes. Eles já gostam de ler!’” Era precisamente para
este estatuto de “pessoas que já gostam de ler” que eu gostaria de seduzir as
pessoas pouco habituadas à leitura. E uma coisa prometo, desde já: não fazer
batota. Não vou fingir, para armar ao pingarelho, que é com o Auto da Alma, de Gil Vicente, ou
com a Rhopicapneuma, de João de Barros, com a poesia de Herberto Hélder
ou com o Grande Sertão: Veredas, de
Guimarães Rosa que eu vou aliciar para a leitura o candidato renitente ou
meramente hesitante. Não vou aqui apresentar, como “isca”, grandes e veneráveis
obras de literatura que possam causar indigestão ao aprendiz de leitor."
Eugénio Lisboa, in "Vamos Ler, um cânone para o leitor relutante", Editora Guerra & Paz, Março de 2021
O Último Leitor”
por Ricardo Piglia
«Falaram-me várias vezes do homem que, numa casa do bairro de Flores, esconde a réplica de uma cidade em que trabalha há vários anos. Construiu-a com materiais insignificantes e numa escala tão reduzida que podemos vê-la de uma só vez, próxima e múltipla e como que distante na sua claridade da alba.
A cidade está sempre longe e essa sensação de distância tão próxima é inesquecível. Vêem-se os edifícios e as praças e as avenidas e vê-se o subúrbio que se esbate para oeste até se perder no campo.
Não é um mapa, nem uma maqueta, é uma máquina sinóptica; a cidade está toda ali, concentrada em si mesma, reduzida à sua essência. A cidade é Buenos Aires, mas modificada e alterada pela loucura e a visão microscópica do construtor.
O homem diz chamar-se Russell e é fotógrafo, ou ganha a vida como fotógrafo, e tem o seu laboratório na calle Bacacay e passa meses sem sair de casa a reconstruir periodicamente os bairros do sul que as cheias do rio arrasam e enterram cada vez que chega o Outono.
Russell acredita que a cidade real depende da sua réplica e por isso está louco. Melhor dito, por isso não é um simples fotógrafo. Alterou as relações de representação, de maneira que a cidade real é a que esconde em sua casa e a outra é apenas um reflexo ou um recordação.»
Ricardo Piglia, em O Último Leitor, Ed. Teorema.
Ricardo Piglia, em O Último Leitor, Ed. Teorema.
Empatia
por Leticia Wierzchowski,
"Recentemente, aconteceu uma história que me marcou muito e mostra como a empatia resolveria tantas coisas na vida do ser humano. Estamos sempre julgando ou analisando os outros sob o nosso próprio ponto de vista, sem nunca nos colocarmos em seu lugar. Esse exercício seria transformador na nossa sociedade. Isso aconteceu em 2015, no Canadá. Não lembro todo o nome dele, mas o primeiro é William — essa história é real e, inclusive, segundo li, os direitos foram comprados para o cinema. Esse garoto tinha 14 anos — agora já deve ter 17, 18 —, era um menino normal, estudioso, que tinha uma característica: gostava muito de História, fundamentalmente a história dos povos pré-colombianos. Ele entrou num fórum de pesquisas de debates históricos na internet, comandado por um professor. Havia pessoas de vários lugares do mundo. Naquele momento, a questão levantada era por que os Maias foram a única civilização humana que construiu suas cidades longe do mar, longe da água, sendo que eles, estando ali no México e na América Central, tinham todo aquele mar por perto. Noventa e oito por cento das cidades Maias foram construídas em lugares muito altos ou no meio da selva, quase nenhuma na praia — Tulum talvez seja uma das únicas que fica na beira do mar. Como a água é fundamental para os seres humanos, não só para a sobrevivência mas para o transporte e comércio, ninguém nunca tinha entendido por que os Maias tinham escondido suas cidades. Essa questão foi levantada no fórum e todo mundo começou a debater. Depois que tudo aconteceu, esse menino foi entrevistado por um monte de veículos de comunicação. Disse que começou a pensar sobre isso e que não chegava a conclusão nenhuma. Um dia ele teve o seguinte insight: como é que vou entender um Maia pensando como um adolescente do século 21 no Canadá? Eu tenho de pensar como um Maia. Vou fazer de conta de que sou um Maia. Ele disse: só li coisas que os Maias liam, tentei comer coisas que os Maias comiam. Tentava ser um Maia. Então teve a seguinte ideia: a gente está pensando os Maias com os nossos valores, e se deu conta de que os Maias foram os grandes astrônomos da História — até hoje a gente usa conceitos da Astronomia que vêm dos Maias. Ele pensou: por que a gente está olhando para o chão? Será que a gente não deveria olhar para o céu? Os Maias olhavam para o céu o tempo inteiro. E o menino, sozinho na casa dele, pegou um mapa das constelações, comparou esse mapa com um mapa geográfico do México e da América Central e descobriu, sozinho, que embaixo de cada grande estrelas, das constelações que estavam sobre essa região onde os Maias habitavam, tinha uma cidade. Desvendou sozinho, só pensando como um Maia, uma das questões que ninguém nunca tinha conseguido concluir. E mais: ele viu que tinha uma estrela que não tinha uma cidade embaixo e apresentou isso no fórum. Acabaram pesquisando. Mandou-se uma equipe de arqueólogos para essa região, com as coordenadas já definidas, e se encontrou uma cidade Maia. O menino descobriu uma cidade Maia na casa dele, simplesmente pensando como um — praticando o exercício da alteridade, da empatia. Não sendo ele, mas tentando ser o outro. Essa é a grande lição que a literatura dá sempre pra gente: tentar exercer o olhar do outro, o sentimento do outro. Por isso é fundamental."
Leticia Wierzchowski, no Paiol Literário 2018
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