sábado, 10 de julho de 2021

Sobre a Leitura II

Leitora

Confesso o vício de ler
afago
cada palavra

Bebo o feitiço das histórias
cada rosa cada asa
por onde a busca se enlaça

Revolvo-me na ruptura
ou na ternura descalça
onde a caneta sutura

Tomo o corpo da leitura
enredo-me no seu abraço
ora vestida ora nua

Ao longo deste prazer
não há nada que eu não faça
em entrega e em devassa

Indo mais longe no ler
encontro o cisne e a rola
na tocaia do prazer

Tenho a paixão da leitura
teima na escrita do perigo
e estremeço de prazer ao entreabrir um livro

corro as mãos nas suas espáduas
desnudo frases de feltro
afloro as suas pálpebras

entrelaço as consoantes
com as vogais e o enredo
diante das fantasias no sobressalto do medo

Descubro escusas passagens
pelas cisternas dos livros
ao desfolhar suas páginas

na entrega e no sustido
nas lágrimas e no sorriso
entre o ardil e o tigre

ora cumprindo
a harmonia
ora querendo a transgressão

Sou uma leitora voraz
tenho um trato com a audácia
e outro com o perdimento

entre o sonho e a escrita
existe um espaço sedento
rebeldia e firmamento

digo tempo e confissão
das cartas das bibliotecas
das literaturas secretas

Corro nas linhas dos livros
tropeçando
de avidez

na cama quero as palavras
Enoveladas errantes
com elas sou viajante

no rumo da minha
vida
estão os livros e as estantes

Gosto de beber o cheiro
do interior da leitura
temperado com canela e as coisas obscuras

deleito-me com a poesia
endoideço com o romance
esquivamento das mulheres

com a sua escrita de leite
de linho e alquimia
de aço rumorejante

Encontro a rima cismada
dobo a palavra a vapor
na teima de quem porfia

vou em busca do fulgor
corro atrás da literatura
dos textos e da leitura

Sou dependente dos livros
sem eles posso morrer
perco-me de tão perdida se proibida de ler

Maria Teresa Horta, in Estranhezas, Publicações Dom Quixote, Outubro de 2018, pp.29-32

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