Eugénio Lisboa |
Eugénio Lisboa acaba de publicar, através da Editora Guerra & Paz, um outro livro - Vamos Ler! É tido já como um novo cânone para um leitor renitente ou um leitor relutante, conforme o ponto de partida. Não será talvez exacta ou correcta designar como leitor aquele que não lê. Claro que se não visa o analfabetismo. Eugénio Lisboa tem, apenas e talvez , como objectivo principal cativar quem não saboreia o livro. Mostrar-lhe o que perde pelo ganho que ele teve , enquanto leitor.
Quem sentiu o intenso paladar de um bom livro procura outro, nunca deixando de guardar o primeiro. É, pois, esse caminho que se aponta neste belíssimo e pequeno livro. Um breviário para um leitor em construção. Um cânone que só a lúcida e culta mente de um grande escritor pode estabelecer. Sem pretensões, sem tiques de scholarismo, Eugénio Lisboa requinta-nos com o pequeno grande livro dos livros.
Abram-no e partam à aventura!
VAMOS LER!Nunca conheci uma aflição que uma horade leitura não tenha aliviado.MontesquieuO livro tem a vantagem de a gente poderestar só e ao mesmo tempo acompanhado.Mário Quintana
por Eugénio Lisboa
"Quando
eu andava pelos meus onze ou doze anos, começara havia pouco o liceu, ouvia os
meus colegas mais abastados falar, com muito entusiasmo, de livros de Júlio
Verne, Emílio Salgari, do famoso detective Sherlock Holmes, de Robert Louis
Stevenson – A Ilha do Tesouro – e outras coisas neste género. O que eles me
contavam desses livros deixava-me literalmente com água na boca. O meu pai não
tinha, nessa altura, folga financeira para me comprar livros, para além dos
escolares, e os que às vezes os amigos me ofereciam, pelos meus anos, não
pertenciam, nem de longe, àquela categoria apetecida. Eu sentia, em mim, uma
terrível e insatisfeita fome de leitura. Lembrem-se de que, nessa altura – era
o começo da década de quarenta do século passado – não havia televisões nem
computadores porque ainda não tinham sido inventados. Em minha casa, não
existia nem telefone nem telefonia. Portanto, os recursos de que dispunha para
me entreter ou me informar sobre o que ia pelo mundo eram muito limitados. Havia,
felizmente, o cinema, com a projecção das chamadas “Actualidades”, antes do
filme principal. Mas, mesmo aí, encontrava-me reduzido às “borlas” do Scala,
porque o Gil Vicente, onde teria de comprar bilhete, me estava vedado.
As férias grandes, de Junho a Setembro – inverno suave e sem chuvas, em Moçambique
- eram longuíssimas, para as passar destituído de meios com que me entreter (exceptuando,
é claro, as matinés no Scala). Felizmente, descobri um baú enorme e abandonado
na garagem da casa, onde, em vez do carro que não tínhamos, havia uma imensa
tralha de coisas mais ou menos sem préstimo, entre as quais o referido baú.
Dentro deste se encontravam montanhas de selos e, sobretudo, dezenas e dezenas
de números de uma revista brasileira, com um título que era um verdadeiro
chamariz: VAMOS LER! A revista, de que cada exemplar era extremamente volumoso,
continha reportagens, verbetes dedicados a grandes escritores do passado e do
presente (daquele presente!), contos de autores famosos, como Machado de Assis,
Eça de Queirós, Lima Barreto e outros escritores estrangeiros, novelas
policiais excitantes e até peças de teatro: foi ali que, pela primeira vez,
deparei com as empolgantes e trágicas peças de teatro, de ambiente marítimo, de
um grande e intrigante dramaturgo americano: Eugene O’Neill. Pouco depois,
viria a ler algumas das suas mais famosas e longas peças, em tradução de
Henrique Galvão, e só mais tarde leria quase todo o seu teatro no original. À
falta de livros, fui-me embrenhando na boa e variada literatura que a revista
me oferecia. “Vamos ler”, dizia o título da revista – e foi isso mesmo que me
dispus a fazer: ler. Fui lendo, inclusivamente coisas em princípio muito acima
da minha idade.
(...)
Para ler, qualquer sítio serve. Uma cadeira, um sofá, um degrau de escada, a areia
de uma praia, o banco de um comboio ou o assento de um avião, até numa fila de
espera de um museu, com a neve a cair-nos em cima, como vi, em Moscovo, quando
lá fui num inverno. Os grandes leitores conseguem ler em qualquer lado. André
Gide, talvez por masoquismo de protestante, escolhia, para ler e até para escrever,
os nichos mais desconfortáveis da sua casa, na Rue Vaneau, em Paris. Mas, tudo
visto, o que sobretudo me seduziu, como lugar de leitura, ao longo da vida, foi
uma cama. Durante toda a minha infância, juventude e alguma maturidade, li na
cama, mais do que em qualquer outro sítio. Logan Pearsall Smith, ensaísta
inglês, de origem americana, conhecido pelos seus acutilantes aforismos e
epigramas, gostava de dizer: “Dêem-me um livro e uma cama e estou perfeitamente
feliz.” E o mesmo Logan Pearsall Smith ia até mais longe, quando não hesitava
em afirmar: “As pessoas dizem que o que vale a pena é viver, mas eu prefiro
ler.” Na cama, claro. Receio, porém, não ter esgotado a variedade de sítios
onde se pode ler. Henry Miller, desbocado como era seu costume, informava:
“Todas as boas leituras que fiz, pode dizer-se, foram feitas na retrete.” Que
é, de facto, um dos mais assíduos locais de aquisição de cultura. Negue-o quem
puder. De resto, esta afinidade entre cultura (aquisição da) e sanita foi
sumptuosamente afirmada por um nosso ministro da cultura, por acaso o melhor de
todos eles, ao mandar aprimorar, no ministério da dita, uma sanita de luxo, com
requintes de palácio de sheik milionário. Críticos ignaros, pouco lidos em
clássicos como o autor de Trópico de
Câncer, difamaram o investimento gigante na sanita, mal suspeitando que é
em tais loci que a cultura prospera!
De qualquer modo, o grande leitor, o que se deixa absorver por um bom romance,
uma peça de teatro, um belo poema, um bom e apaixonante ensaio, lê em qualquer
sítio: num comboio, num automóvel, num buraco de obus, em pleno bombardeamento…
Não estou a exagerar. O escritor francês, André Gide era não só um grande
escritor, mas era também um grande e insaciável leitor. A leitura absorvia-o de
tal maneira, que se alheava de tudo o resto, enquanto lia Tolstoi ou Ovídio. Um
dia, foi fazer, com amigos, uma viagem de automóvel por vários países europeus.
Levava consigo o romance Guerra e Paz,
de Tolstoi. Ia tão absorvido na leitura, que, de uma vez, tendo eles chegado a
um museu importante, que tencionavam visitar, os amigos saíram do carro,
estacionado próximo do referido museu. Gide, embora tivesse manifestado muito
interesse em o visitar, encontrava-se tão “apanhado” pela grande narrativa do
escritor russo, que pediu aos amigos que fossem e o deixassem no carro, imerso
na leitura, que não conseguia interromper. São estes os grandes leitores, que
têm, na leitura, um prazer intenso e nunca desfrutado pelos indivíduos que
raramente abrem um livro.
O escritor francês, Claude Roy, notável romancista, ensaísta e diarista, era
também um formidável e arguto leitor. Num dos seus livros conta uma pequena
história de guerra, durante o conflito que devastou a Europa, de 1940 a 1945.
Num momento em que uma unidade aliada se encontrava debaixo de fogo intenso da
artilharia alemã, Claude Roy saltou para um buraco de obus, no qual se
encontrava já outro soldado. Para seu grande espanto, verificou que o companheiro
de abrigo parecia completamente alheio ao inferno de ferro e fogo que os
cercava e passava por cima das suas cabeças. Intrigado, tentou perceber o que
se passava e acabou por ver que o seu parceiro se encontrava completamente
absorvido na leitura dum romance de Richard Hughes, que relatava uma tempestade
a bordo de um navio, no mar alto. Tão embrenhado estava naquela tempestade
fictícia, que nem dava pelo inferno real que o ameaçava. É isto que a grande
ficção faz aos grandes leitores: envolve-os por completo, obturando qualquer
contacto com o mundo real. Conta-se que Balzac, no leito de morte, pediu que
lhe chamassem o grande médico, Bianchon, porque só ele seria capaz de o salvar.
Ora Horace Bianchon nunca tinha existido, era apenas um personagem da Comédie
Humaine, criado pela imaginação portentosa de Balzac. Mas tão real e intenso se
tinha tornado, até para o seu criador, que, naquele momento crucial, saltara do
papel para a vida real, tornando-se o único médico capaz de curar o moribundo
prodigioso. Balzac era um enorme criador de mundos alternativos em que não só o
leitor acreditava, como ele próprio também. Conta-se que Flaubert, ao escrever
a cena do suicídio de Emma Bovary, com arsénico, se encontrava tão dentro dela,
que vomitou, como se tivesse sido ele a ingurgitar o veneno. Eis um criador que
acreditava mesmo na sua criação! Como é que os leitores não haviam de fazer o
mesmo?"
Eugénio Lisboa, in Vamos Ler!, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 27/29 e 39/42
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