Há horas em que as coisas nos contemplam, e estão por um fio a comunicar connosco. Às vezes é um nada, um momento de êxtase em que distintamente ouvimos os passos da vida caminhando.(…) Um pormenor que o interesse entranha-se-lhe na alma para sempre, como um perfume que nunca mais se esvai…
Raul Brandão, Memórias
Le sel de la terre est le plaisir qu'on éprouve à faire plaisir à quelqu'un.
Henry de Montherlant, Va jouer avec cette poussière
Na minha infância e adolescência, escrevi grandes e muitas cartas à minha mãe. Nesse tempo, sem o consumismo e a técnica de o incentivar , era através da arte epistolar que se celebravam efemérides, que se partilhavam notícias, que se distribuíam afectos e que se celebravam amores. A minha mãe emocionava-se muito com as missivas, postais ou pequenos cartões que, de um nada, arranjava pretexto para lhe enviar.
Na minha fase adulta, o meu pai foi o meu grande companheiro Escreveu-me cartas belíssimas. Era um extraordinário manipulador de palavras. Tudo o que escrevia tinha a marca da excelência. Numa escrita escorreita, fluida, clara e harmoniosamente construída , os seus textos eram um modelo a seguir. Tal como eu, em criança, ele aproveitava qualquer grande ou insignificante acontecimento para me escrever. Quando chegavam , traziam tudo o que me fazia falta. A luminosa palavra que não tinha ainda brilhado. Era o meu pai.
Quando a minha mãe morreu, a dor era o mote que passou a glosar. Cartas doridas que dilaceravam . A saudade enchia, em pranto, as turvas linhas do papel. Essa mágoa chegava-me inteira. Quase me derrubava. Obrigava-me a erguer para o erguer. Tempos longos de partilha sofrida.
O meu pai marcou-me de várias maneiras. Deixou-me o gosto dos livros. Aquele prazer imenso e revitalizador da leitura. Lia muito e encheu-nos a casa de livros. Nasci com esses objectos preciosos e rodeada de leitores omnívoros. Tanto ele como a minha mãe consumiam livros.
O meu pai levava sempre um livro na mão para onde quer que fosse. Meticuloso e amante do livro, protegia-o com uma capa de cabedal trabalhado. Era o seu cartão de visita.
Na escrita, deixou-me o gosto pelas palavras e a vontade de as baralhar em frases , textos ou simples lengalengas que nunca terão primor igual ao dele.
Hoje é o dia do pai. Um dia que vem de longe. Celebrado por muitos filhos. Todos nós somos filhos de um pai.
O meu pai gostava deste dia. Tinha seis filhos. Todos eles o saudavam neste dia. Fui, talvez entre todos , aquela que foi viver para terras distantes. Escrevia-lhe palavras de saudade. Não o tenho hoje para o repetir. Apenas a constante saudade da sua presença e a mágoa de o não ter entre nós.
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