sábado, 30 de janeiro de 2021

Sobreviver à Peste ...

As pestes que têm assolado o mundo marcaram a história da Humanidade. Um rasto de desespero, de alucinação , de desaire que culmina sempre numa dura e pesada mortandade. O comportamento humano, perante esta epidemia, tem-se revelado quase sempre muito idêntico, apesar de ocorrer com séculos de diferença. 
Vivemos , neste momento, um dos momentos mais trágicos e difíceis do nosso tempo. Uma epidemia que ataca por dia milhares de vítimas e mata centenas, em Portugal. Após o seu aparecimento , em Março de 2020, o país reagiu em concertado autoconfinamento que se traduziu numa forte redução de vítimas. Entretanto, em poucos meses tudo se alterou. As razões talvez sejam de um crescente laxismo, da inoperância governamental, da ausência de planificação , de critérios  objectivos de conduta ou porque o Homem sempre tende a criar o paraíso,  quando o inferno se insinua. 
A peste alojou-se e desenvolveu-se em novas variantes. Portugal é , em Janeiro de 2021 , um país governado pela Peste. O inferno está aí. E o homem tenta ainda acreditar que o paraíso está na esquina que tão bem conheceu.
Se visitarmos a História da Humanidade ou as grandes obras da Literatura Universal,  poderemos constatar quanto se repetem estas atitudes, face a uma epidemia que surge virulenta e feroz.
Em 1665, Londres  era a capital do maior Império do mundo. E não parava de crescer e enriquecer. Até que a peste negra — que dois séculos antes tinha matado quase metade da população europeia — voltou. Ao longo daquele ano, a grande praga de Londres matou cerca de 200 mil pessoas. O relato dessa epidemia sobreviveu  no extraordinário livro Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe, publicado em 1772.
Ao longo desse relato, verifica-se a similitude do comportamento humano perante a brutalidade da doença
A morte estava diante de seus olhos e todo mundo começou a pensar em seu túmulo, não em festas e diversões.    (...)        Tal é o temperamento precipitado do nosso povo que, diante do primeiro pavor da epidemia, as pessoas evitavam-se umas às outras e fugiam das casas com medo. Espalhando-se a noção que a doença não era mais tão contagiosa como antes e que contraí-la já não era fatal, o povo adquiriu uma coragem tão precipitada e tornou-se tão despreocupado consigo mesmo que não considerava a peste mais que uma febre comum. Ou nem mesmo isso. ( ...) Quando se aproximou o fim, os corações dos homens estavam tão endurecidos e a morte era tão constante diante de seus olhos que já não se preocupavam tanto com a perda de amigos (…). O tempo acostumou-os a tudo aquilo e pouco depois todos se arriscavam em toda parte, sem hesitação.
Poderíamos citar ou extrair alguns excertos da notável obra de Albert Camus, A Peste, publicada em 1947. Não o faremos . Certamente será um exercício de boa leitura para aqueles que não a conhecem ou se a conhecem ter um motivo  para uma curiosa releitura. Em contrapartida e  para completar este tema ,  apresenta-se uma  retrospectiva, através dos artigos que se seguem, retirados do site referenciado:  
 

Como Veneza sobreviveu à Peste Negra, a pior epidemia de todos os tempos
por Luiza Antunes
"Em 1348, a peste negra atingiu a população de Veneza pela primeira vez. Entre 1361 e 1528, a peste retornou por vinte e duas vezes para colectar mais almas. Mas nada os prepararia para os mortíferos anos de 1575 a 1577, quando quase 50 mil pessoas morreram vítimas de um novo surto. O último caso das epidemias foi entre 1629 e 1631. Na época, mais um terço dos habitantes da cidade perderam a vida.
A peste negra, ou peste bubónica varreu a Ásia e a Europa e transformou a realidade desse último continente, causando mudanças sociais, económicas e religiosas. Uma das pandemias mais mortíferas da história da humanidade, espalhada por ratos e pulgas, mas atribuída ao castigo divino. O impacto  na história de Veneza foi tão grande que até hoje o seu fim é lá celebrado .

Veneza e os lazarettos
A peste é conhecida como bubónica ou negra por conta de seus efeitos no corpo. O primeiro sintoma era a febre. Em pouco tempo, os gânglios começavam a inchar a ponto de ficarem grandes como uma maçã. Depois, manchas negras surgiam no corpo, nas pontas dos dedos e nos lábios. Até cinco dias após o surgimento dos sintomas, a maioria dos infectados morria.

Veneza no sec. XV
Como a Sereníssima República de Veneza era uma cidade comercial e um dos principais portos do mundo na época, a peste negra parecia nunca deixá-la a salvo. Por isso, os habitantes locais tiveram que ser criativos para tentar conter o risco da doença.
Foi em Veneza que surgiram os primeiros lazarettos do mundo. Os lazaretos, em português, eram hospitais isolados, ou hospitais-colónia, espaços para onde os doentes eram enviados. O Lazaretto Vecchio foi construído em 1403, numa ilha isolada. Muros altos, grandes quartos e camas que abrigavam três ou quatro doentes de cada vez. Se fosse mandado para lá, tinha 90% de probabilidade  de morrer.

O Lazaretto Vecchio funcionou até 1630, não só para vítimas da peste, mas também como um leprosário. Desde 2004, arqueólogos já desenterraram mais de 1500 esqueletos de pessoas que morreram entre os séculos XV  e XVII. Muitos mais podem ser encontrados, dada a taxa de mortalidade ali, que chegou a 500 mortos por dia no século XVI.

Como surgiu o termo quarentena?
Também foi em Veneza que surgiu o conceito e a prática da quarentena. O termo vem do italiano quaranta giorni, ou, quarenta dias. Na epidemia do século XVI, qualquer navio mercante que parasse em Veneza era inspeccionado na ilha da quarentena. Se uma única pessoa fosse suspeita de estar doente, toda a tripulação ficava ali por 40 dias.
Essa técnica mais tarde começou a ser adoptada em diversas cidades portuárias e foi considerada uma das medidas mais eficientes para conter a peste.


Além de isolar os doentes, havia também os chamados médicos da praga, que usavam as icónicas máscaras com o nariz longo. Esse modelo foi criado por um francês. A ideia era que elas purificassem o ar com ervas aromáticas e tentassem impedir que a infecção se espalhasse – o que claramente não condizia com a realidade da doença, mas sem querer os protegia das pulgas e do contacto com fluídos contagiosos.
Eles também acreditavam incorrectamente que poderiam curar as vítimas lavando-as com água salgada da laguna.

As festas pelo fim da peste em Veneza
Em 1575, o Doge de Veneza prometeu construir uma grande igreja para glorificar Cristo, caso a epidemia passasse. Apesar do sistema de quarentena ter sido a razão do sucesso, era a religião que movia as pessoas. E assim, a pedra de fundação da Igreja do Redentor foi colocada na Ilha Giudecca.

Festa del Redentore

Il Redentore foi desenhada por um dos principais arquitectos italianos da época, Andrea Palladino. O facto da igreja ficar numa ilha tem o poder simbólico de um ritual religioso. É preciso cruzar a água, uma forma de purificação, para chegar até ali.
Essa tornou-se uma das características de uma tradição que já dura mais de 440 anos. No terceiro sábado de Julho, uma ponte de barcos temporária até a ilha é construída e inaugurada. Na noite de domingo, as pessoas da cidade reúnem-se à beira da lagoa, comendo e bebendo, para assistir a 25 mil fogos de artifício que iluminam a cidade – uma comemoração, mesmo que muitos hoje não saibam, de que o tempo de escuridão e morte lhes deixou.

Festa della Madonna della Salute


Alguns anos mais tarde, em 1630, mais uma onda da peste tomou Veneza e, num ano, mais um terço da população morreu. E , de novo, as pessoas acreditavam que era a religião que os salvaria: romarias e procissões se repetiam, mas a doença e as pulgas não paravam de se alastrar. Então, resolveram fazer a mesma promessa que havia dado certo sessenta anos antes: o senado veneziano decretou a construção de uma nova igreja. O templo seria dedicado à Virgem Maria, considerada a protectora da república.
A Igreja para a Madonna della Salute foi construída no distrito de Dorsoduro, na Punta della Dogana, que fica bem entre o Grand Canal e o canal da Giudecca. A igreja Salute também é o centro de uma comemoração pelo fim da peste negra. A Festa della Madonna della Salute ocorre no dia 21 de Novembro, com uma parada da Praça de San Marco até a Salute. Nesse caso, também é construída uma ponte temporária para cruzar o Grand Canal.
   
A história da Peste Negra

As estimativas variam, mas acredita-se que entre 75 a 200 milhões de pessoas morreram na Europa na primeira fase da pandemia que ocorreu durante a Idade Média, de 1347 a 1351. O assustador total de 25 milhões de pessoas já havia sucumbido na China, quinze anos antes da doença chegar aos portos europeus. Índia, Síria e Arménia também foram cobertas de mortos.
Causada pela bactéria Yersinia pestis, que é transmitida por pulgas e vive endemicamente em ratos e outros roedores, a peste negra surgiu primeiro na Ásia, graças a mudanças climáticas que fizeram com que os ratos pretos saíssem das planícies em direcção a áreas populosas. Segundo epidemiologistas, alguns túmulos de 1338, no Quirguistão, com referências à peste, marcam o início da infecção.

As hordas do exército mongol de Gengis Khan, que conquistou boa parte do território da Eurásia, da China à Ucrânia, contribuíram para espalhar a doença. Os mongóis teriam sido infectados na China e depois infectado os ratos nas planícies da região que dominaram. Daí, para chegar à Europa Ocidental há uma lenda.
Dizem que alguns mercadores de Génova estavam numa cidade portuária na região da Crimeia, hoje disputada entre a  Rússia e a Ucrânia, quando a cidade foi cercada pelo exército mongol. Como uma tentativa de furar o cerco, os mongóis fizeram uso de uma arma biológica rudimentar: catapultaram para dentro dos muros da cidade corpos de mortos com a peste bubónica. Os mercadores de Génova conseguiram fugir, mas levaram consigo a doença. Quando desembarcaram em Constantinopla e por várias cidades da Costa Mediterrânica, não sabiam que estavam espalhando terror para o resto do continente.

Mapa de Flappiefh, publicado originalmente em “Natural Earth:
The origin and early spread of the Black Death in Italy:
 first evidence of plague victims from 14th-century
Liguria (northern Italy) maps by O.J. Benedictow” – CC BY-SA 4.0

As caravanas da Rota da Seda, que ligava  Europa, China e Oriente Médio, só contribuíam para que toda essa parte do mundo vivesse ondas de infecções. Mesmo quando cidades recusavam a entrada de navios, os ratos escapavam para a terra pelas cordas. Até hoje, existem roedores infectados vivendo nas planícies que um dia foram dominadas pelos mongóis. E isso também explica por que tantas vezes a peste voltava a causar grandes epidemias: um reservatório da infecção estava ali, na Ucrânia. Assim, a cada nova geração não imune que crescia, havia novamente um espaço de pessoas vulneráveis para propagar a infecção.
As epidemias de peste negra surgiram até ao século XIX, sendo as mais significativas na China e Índia. Até hoje, no entanto, ainda existem casos de infecção em regiões onde há roedores portadores da doença que, actualmente, é tratável com antibióticos.
Esse post foi inspirado no excelente material multimedia produzido pela Google Arts and Culture em parceria com a UNESCO.
Artigos de Luiza Antunes, publicados  no site "360 meridianos" em 04-04-2018 e actualizados em 21-04-2020.

1 comentário:

  1. As "pestes" vindas da China têm um grande historial e continua a infetar o mundo.

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