segunda-feira, 20 de abril de 2020

O tempo é agora

O tempo é agora
por Serge Halimi
"Quando esta tragédia passar, será que tudo vai recomeçar como antes? Há trinta anos que cada crise alimentou a esperança insensata de um regresso à razão, de uma tomada de consciência, de uma paragem. Acreditámos no confinamento, depois na inversão de uma dinâmica sociopolítica cujos impasses e ameaças teriam sido finalmente ponderados por todos [1]. A debandada bolsista de 1987 iria conter a escalada das privatizações; as crises financeiras de 1997 e de 2007-2008 iriam fazer vacilar a globalização feliz. Não foi isso que aconteceu.
Os atentados de 11 de Setembro de 2001 suscitaram, por sua vez, reflexões críticas sobre a húbris norte-americana e interrogações contristadas deste tipo: «Por que é que eles nos detestam?»… Isto também não durou. É que o movimento das ideias, mesmo quando caminha no bom sentido, nunca é suficiente para parar o funcionamento das máquinas infernais. É sempre preciso quem ponha mãos à obra. Nessa altura, mais vale não depender das mãos dos governantes responsáveis pela catástrofe, mesmo que estes pirómanos saibam dar um ar da sua graça, alertar para o incêndio, fingir que mudaram. Sobretudo quando a vida deles – tal como a nossa – está em perigo.
A maior parte de nós não viveu directamente uma guerra, um golpe de Estado militar, um recolher obrigatório. Ora, no fim de Março, perto de três mil milhões de habitantes estavam já confinados, muitas vezes em condições penosas; a maior parte deles não eram escritores a observar a camélia em flor em redor da sua casa de campo. Aconteça o que acontecer nas próximas semanas, a crise do coronavírus terá constituído a primeira angústia planetária das nossas existências: não é coisa que se esqueça. Os responsáveis políticos estão obrigados a ter isso em conta, pelo menos parcialmente (ler nesta edição o artigo de Renaud Lambert e Pierre Rimbert).
A União Europeia acaba então de anunciar a «suspensão geral» das suas regras orçamentais; o presidente francês Emmanuel Macron adia uma reforma das pensões que teria penalizado os profissionais de saúde; o Congresso dos Estados Unidos envia um cheque de 1200 dólares à maior parte dos americanos. Porém, já há mais de dez anos os liberais aceitaram, para salvar o seu sistema em perigo, um aumento espectacular do endividamento, um relançamento orçamental, a nacionalização dos bancos, o restabelecimento parcial do controlo dos capitais. A seguir, a austeridade permitiu-lhes recuperar o que haviam dado largas para fazer num salve-se quem puder geral. Permitiu-lhes até concretizar alguns «avanços»: os trabalhadores trabalhariam mais, durante mais tempo, em maiores condições de precariedade; os «investidores» e os rentistas pagariam menos impostos. Os gregos pagaram o mais pesado tributo desta viragem quando os seus hospitais públicos, em situação de emergência financeira, observaram o regresso de doenças que acreditávamos desaparecidas.
Assim, o que à partida permite acreditar numa estrada de Damasco poderá transformar-se numa «estratégia de choque». Já em 2001, a seguir ao atentado contra o World Trade Center, a conselheira de um ministro britânico enviara esta mensagem a altos funcionários do seu ministério: «É uma óptima altura para recuperar e aprovar discretamente todas as medidas que temos de tomar». A conselheira não pensava necessariamente nas restrições contínuas que seriam feitas às liberdades públicas sob o pretexto do combate contra o terrorismo, e menos ainda na Guerra do Iraque e nos desastres inumeráveis que esta decisão anglo-americana iria provocar. Mas, uns vinte anos mais tarde, não é preciso ser poeta nem profeta para imaginar a «estratégia de choque» que está a ser desenhada.
Como corolário do «Fiquem em casa» e do «distanciamento», todas as nossas formas de sociabilidade correm o risco de ser perturbadas pela digitalização acelerada das nossas sociedades. A emergência sanitária tornará ainda mais premente, ou totalmente ultrapassada, a questão de saber se ainda é possível viver sem a Internet [2]. Todos têm já de possuir consigo documentos de identidade; em breve ter um telemóvel não será apenas útil, mas exigido para fins de controlo. E, uma vez que as moedas e as notas constituem uma fonte potencial de contaminação, os cartões bancários, transformados em garantia de saúde pública, vão permitir que cada compra seja repertoriada, registada, arquivada. «Crédito social» à chinesa ou «capitalismo de vigilância», o recuo histórico do direito inalienável de não deixar vestígio da própria passagem quando não se transgride nenhuma lei instala-se nas nossas mentes e nas nossas vidas sem suscitar outra reacção que não uma sideração imatura. Antes do coronavírus já se tornara impossível apanhar um comboio sem enunciar o seu estado civil; já não se podia usar uma conta bancária online sem dar a conhecer o seu número do telemóvel; já não se podia passear garantindo que não se era filmado. Com a crise sanitária foi dado um novo passo. Em Paris, aviões teleguiados vigiam as zonas de acesso interdito; na Coreia do Sul, sensores alertam as autoridades quando a temperatura de um habitante representa um perigo para a colectividade; na Polónia, os habitantes têm de escolher entre a instalação de uma aplicação de verificação do confinamento nos seus telemóveis e visitas inesperadas da polícia a sua casa [3]. Em tempos de catástrofe, tais dispositivos de vigilância são aprovados pela maioria. Mas sobrevivem sempre às urgências que levaram à sua aplicação.
As mudanças económicas que estão a desenhar-se consolidam, também elas, um universo em que as liberdades se restringem. Para evitar qualquer contaminação, milhões de estabelecimentos comerciais do sector alimentar, cafés, cinemas, livrarias encerraram em todo o mundo. Não dispõem de serviços de entrega ao domicílio e não têm possibilidade de vender conteúdos virtuais. Passada a crise, quantos deles sobreviverão e em que estado? Em contrapartida, os negócios serão mais sorridentes para gigantes da distribuição como a Amazon, que se prepara para criar centenas de milhares de empregos de motorista e de gerente de manutenção, ou a Walmart, que anuncia o recrutamento suplementar de 150 mil «associados». Ora, quem melhor do que eles conhecem os nossos gostos e escolhas? Neste sentido, a crise do coronavírus poderá constituir um ensaio geral que prefigura a dissolução dos últimos focos de resistência ao capitalismo digital e ao advento de uma sociedade sem contacto [4].
A menos que… A menos que vozes, gestos, partidos, povos, Estados venham perturbar este guião antecipadamente escrito. Ouve-se muitas vezes dizer que «não tenho nada a ver com a política». Até ao dia em que todos compreendem que são escolhas políticas que obrigaram médicos a fazer uma triagem entre os doentes que vão tentar salvar e os que são forçados a sacrificar. É esta a situação a que chegamos. Isto é ainda mais verdade nos países da Europa Central, dos Balcãs ou de África, que há anos vêm o seu pessoal de saúde emigrar para regiões menos ameaçadas ou empregos mais bem pagos. Também neste caso, não são escolhas ditadas pelas leis da natureza. Sem dúvida que hoje percebemos isto melhor. O confinamento é também um momento em que cada um pára e reflecte…
Com a preocupação de agir. O tempo é agora. Porque, contrariamente ao que sugeriu o presidente francês, já não está em causa «questionar o modelo de desenvolvimento pelo qual o nosso mundo enveredou». Já sabemos a resposta: é preciso mudá-lo. O tempo é agora. E já que «delegar a nossa protecção a outros é uma loucura», então deixemos de nos sujeitar a dependências estratégicas para preservar um «mercado livre e não falseado». Macron anunciou «decisões de ruptura». Mas jamais adoptará as que se impõem. Não apenas a suspensão provisória, mas a denúncia definitiva dos tratados europeus e dos acordos de comércio livre que sacrificaram as soberanias nacionais e erigiram a concorrência em valor absoluto. O tempo é agora.
Doravante, todos sabemos o que custa confiar a cadeias de abastecimento espalhadas pelo mundo fora, e que operam sem stocks, a responsabilidade de fornecer a um país em perigo milhões de máscaras sanitárias e produtos farmacêuticos de que dependem a vida dos seus doentes, dos seus profissionais de saúde, dos seus distribuidores de mercadorias ao domicílio, dos seus empregados de caixa. Todos sabemos também o que custa ao planeta ter suportado desflorestações, deslocalizações, a acumulação de resíduos, a mobilidade permanente – Paris acolhe por ano trinta e oito milhões de turistas, ou seja, mais de dezassete vezes o número dos seus habitantes, e a autarquia congratula-se com isso…
Doravante, o proteccionismo, a ecologia, a justiça social e a saúde estão ligados. Eles são os elementos fundamentais de uma coligação política anticapitalista suficientemente e poderosa para impor, e o tempo é agora, um programa de ruptura."
                                    quarta-feira 8 de Abril de 2020
Serge Halimi, em Editorial de "Le Monde Diplomatique - Edição  portuguesa", Abril de 2020

Notas

[1] Ler «Le naufrage des dogmes libéraux», Le Monde diplomatique, Outubro de 1998, e Frédéric Lordon, «O dia em que Wall Street se tornou socialista», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Outubro de 2008.
[2] Ler Julien Brygo, «Ainda podemos viver sem a Internet?», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Agosto de 2019.
[3] Cf. Samuel Kahn, «Les Polonais en quarantaine doivent se prendre en selfie pour prouver qu’ils sont chez eux», Le Figaro, Paris, 24 de Março de 2020.
[4] Cf. Craig Timberg, Drew Harwell, Laura Reiley e Abha Bhattarai, «The new coronavirus economy: A gigantic experiment reshaping how we work and live», The Washington Post, 22 de Março de 2020. Ler também Eric Klinenberg, «O Facebook contra os lugares públicos», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Abril de 2019.

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