terça-feira, 26 de setembro de 2017

Sobre a tirania

"Eugène Ionesco , o grande dramaturgo romeno, pôde assistir ao sucessivo resvalar dos amigos  na linguagem do fascismo durante a década de 1930. Esta experiência tornara-se o fundamento para a sua peça de teatro do absurdo, Rhinocéros, escrita em 1959, na qual aqueles que se tornam presas da propaganda são transformados em gigantes criaturas com cornos. Acerca das suas experiências pessoais, Ionesco escreveu:
Professores universitários, estudantes, intelectuais, todos estavam a tornar-se nazis, membros  da Guarda de Ferro, uns a seguir aos outros. Ao princípio, não eram por certo nazis. Juntávamo-nos, cerca de uns quinze no grupo, para conversarmos e tentarmos arranjar argumentos que contrariassem os deles.
Não era fácil…De tempos a tempos, um dos nossos  amigos dizia: “ Não concordo com eles, isso posso garantir, mas em certas questões, ainda assim, tenho de admitir que os judeus , por exemplo…” etc..  E isto era um sintoma. Três  semanas mais tarde,  essa pessoa acabava por tornar-se nazi. Era apanhada pelo mecanismo, passava a aceitar tudo, tornava-se num rinoceronte. Lá para o fim , só três ou quatro de nós ainda se opunham.

O propósito de Ionesco foi o de nos ajudar a ver o quão bizarra é de facto a propaganda, e ao mesmo tempo o quão normal parece para aqueles que acedem à sua linguagem. Ao apropriar-se  da absurda imagem de rinoceronte, Ionesco procurava chocar as pessoas de forma que elas se apercebessem da estranheza do que estava realmente a acontecer.
Os rinocerontes vão-se passeando pelas nossas savanas neurológicas. Actualmente, damos por nós especialmente interessados  em algo a que chamamos “ pós-verdade”, e assim revelamos uma tendência para achar que o menosprezo por factos do quotidiano e a construção de realidades alternativas, meras consequências  desse conceito, referem-se a algo novo ou pós-moderno. Porém , pouco ou nada há nisto  que George Orwell não tenha  concebido há sete décadas , com a sua noção de “duplo-pensar” (Doublethink). De acordo com a sua filosofia, a pós-verdade restabelece a atitude fascista perante a verdade -  e é por isso que nada neste nosso mundo poderia alguma vez deixar Klemperer ou Ionesco verdadeiramente surpreendidos.
Os fascistas deprezavam as pequenas verdades do quotidiano, tinham uma adoração por slogans que ressoavam como uma nova religião e davam preferência à invenção de mitos em detrimento da história e do jornalismo. Usavam novos meios de comunicação, que na altura  se resumiam à radio, com o objectivo  de criarem um constante ruído de fundo propagandístico que acabava por estimular as emoções antes que as pessoas  tivessem tempo para averiguar os factos. E nos tempos actuais, como aliás no passado, muitas pessoas passaram a confundir  a sua fé num líder dado aos piores defeitos com a verdade do mundo que todos nós partilhamos.
Pós-verdade significa pré-fascismo.”
Timothy Snyder, in “Sobre a Tirania – Vinte Lições do Século XX”, Relógio D’Água Editores, Julho 2017, pp. 56, 57

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