Querido Pai
Todas as cartas que lhe
escrevo são abertas. Deixou de ter morada certa. Apenas ficou em mim, para
sempre. E será um sempre muito precário. Também partirei qualquer dia. É esta a
nossa maior premonição. Prever a nossa finitude. Sem hora, dia e ano, mas
certa. Sem erro. Acontecerá.
Não sei e nem tenho a
certeza se me juntarei a si, pai. Quem dera que assim acontecesse. E que me estivesse esperando com a mãe. Pensaria ,
então, que estaria a regressar da Escola ou talvez da Faculdade, quando alguns
cabelos brancos adornavam já a sua cabeça. Que de solicitude havia em vós.
Transformava-se em carinhosas e preocupadas
perguntas sobre o dia. Se tinha sido
frutífero, compensador, agradável. E eu beijava-vos e contava-vos o
que descobrira, o que me assombrara naquele percurso diurno . Era o tempo do
meu crescimento.
Crescer, pai. Cresceram já
os meus filhos . Hoje são os meus netos
que partem e regressam da Escola. Olho-os diariamente e revejo todos aqueles momentos
tão semelhantes, mas irrepetíveis. Feita em saudade, tenho agora a mesma idade, desse vosso/nosso tempo distante
“Parece que crescemos mas
não crescemos/ foram as coisas grandes que há/ o amor que há, a esperança que
há/ que ficaram mais pequenos.” Palavras belas de um poema de Manuel António
Pina. O mundo mudou muito desde que partiu , pai. Ontem , em Londres , houve um
outro atentado terrorista. Não, não tem qualquer semelhança com o tempo do IRA. Há,
sim e apenas, um rótulo que se diz religioso, também. São atentados em nome de um grupo que se
reclama islamita. E o mundo ficou exposto à facínora mão de alguém que aparece
sem ser visto, sem marca , sem identificação mas cruel. Mata porque quer matar.
Morre-se , sem idade, sem doença, sem previsão, em qualquer parte deste mundo, pelos planos obscuros de um grupo de loucos que invoca um deus que não pode
existir. Sim, existir. Como é possível existir um deus que deseja e permite tantas
mortes e tanto sofrimento em seu nome?
É este o nosso tempo. Um tempo de muito (des)amor. Partiu, pai,
antes que tudo isto se mostrasse. Diria que desejou tanto a Liberdade , neste nosso Portugal, que não compreenderia como foi possível o mundo ficar à mercê de grupos ignotos. Viveu os dias de Democracia. Veio
do dealbar da República . Enfrentou a opressão da ditadura. Lutou e viveu a
vitória da Liberdade: o reconhecimento de que nos projectamos em cada um . O rosto
do outro é a nossa imagem. Era esta a nossa divisa.
Não é mais, pai. Nem sei se
ela vingou. Quando e como? Talvez entre nós, enquanto família. E convosco entre
nós.
Hoje é dia do seu
aniversário. Nasceu há 107 anos. Ultrapassa um século. O mundo mudou muito.
Assistiu a muita dessa mudança. Outras
vieram . Nem todas fizeram o mundo pior. Há momentos de grande progresso. De
consciência interplanetária. De descoberta científica e de um progressivo
sentir ecológico.
O Homem tem novas
ferramentas para ser feliz e tornar o mundo melhor. Basta apenas descobrir o caminho
que chegue a todos e a cada um, em completude.
Quero, entretanto, dizer-lhe
que permanece intenso e incólume o amor ,o carinho que sempre lhe tive. A saudade aumenta e dói porque me faz falta, pai. Como seria bom poder felicitá-lo, como
sempre o fiz. Eram dias maravilhosos. Só na memória os vivo intensamente. Consumo-os
com ardoroso afecto. Enchem-me o coração.
Parabéns, pai.
Parabéns Maria José pelo escrito e sentimento que a mim também diz muito. Bjs
ResponderEliminarExcelente texto sentido, muito sentido, nota-se!!.
ResponderEliminarParabens.
Lindo, Maria José! Um grande abraço.
ResponderEliminarMaravilhoso, e sentido o texto apresentado.
ResponderEliminarParabéns e um grande abraço amigo.
Ana Godinho
Olá minha Tia,muito bonito e sentido o texto em memória ao aniversário do nosso saudoso AVÔ.
ResponderEliminarBeijinhos do sobrinho que tanto a admira.Serginho
A lembrança de um pai é também em si mesma a lembrança da construção de nós mesmos. Pois... A 5 de Setembro, que passou, o meu pai teria feito 112 anos, se fosse vivo... Parabéns , Maria José, por ter tido um pai como o descreve, com os fios do amor que lhe dedica agora e sempre, num solilóquio deveras admirável, que nos deixa suspensos!... Não será sempre a nossa verdade?!... Evidente que é. Os que amamos estão sempre em nós!...
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