"Na Foz são os pescadores que fazem as
redes, sentados no areal, com a primeira malha metida no dedo grande do pé, na
mão direita a agulha com o fio e na mão esquerda o muro. As melhores redes eram
as de ticum e o melhor ticum o que se vendia em Lordelo.
As redes são muito variadas. Há as
redes da pescada; as robaleiras para o robalo na restinga e fora da barra; os
quartos para o sável; e para a solha que vive na areia e cor da areia, uma rede
especial, a feiticeira, com duas ordens de malhas. A rede, quando vem do mar, é
lavada; seca e encascada. Depois remenda-se e mete-se nos cestos. Há também
diferentes linhas e espinéis, para a faneca, para o robalo, que gosta das águas
remexidas e dos sítios onde rebenta a onda, para a enguia, que é tão voraz que
nem precisa de anzol, apanha-se com engodo, e até para o congro, no mar alto,
tendo-se o cuidado de levar um machado, porque esses peixes, quando grandes,
são terríveis, e mesmo dentro do barco, levantam-se para os homens como feras.
Barcos, houve na Foz catorze catraias
(já não há nenhuma), batéis para a sardinha, que levavam quatro homens e seis
peças, botes para a faneca e gamelas para o serviço do rio. Tenho por estas
quatro tábuas com o fundo chato uma especial predilecção. Foi nelas que aprendi
a gingar, o que se faz só com um remo e certo movimento de pulso, e foi nelas
também que aprendi a nadar à força, porque se voltam na ressaca com uma extrema
facilidade.
Quanto a quinhões, era assim: vendido
o peixe, metade do dinheiro que a mulher do pescador ganhava com a canastra
tomava conta dele o arrais, que o dividia em quinze partes para os homens, uma
para o moço e duas para a embarcação. Assim, até os que por sorte não apanhavam
peixe tinham um quinhão garantido do mealheiro comum. Ficava ainda uma pequena
parte nas mãos do arrais para o tempo de Inverno, quando se não podia ir ao
mar.
PARAMOS
Estava na
carreira de tiro em Esmoriz. Não via o mar, mas sentia-o no peito dilatado.
Perto de mim, uma moita de pinheiros novos; e as agulhas escorriam molhadas de
fresco. Uma nora, um choupo. Ao longe, as barracas de madeira agrupadas –
Paramos. Uma gaivota pairando sobre um charco... Para o outro lado, campos
lavradios com milho rasteiro que sabe a ar salgado, casas de lavradores
perdidas entre sebes, de telhados muito baixos onde secam abóboras amarelas.
Aqui, o
pescador vive em barracas de madeira que têm o aspecto de povoação lacustres.
Em certos dias iça-se o camaroeiro e a este sinal, esperado no interior das
terras, começam a aparecer pelos caminhos empapados, dirigindo-se para o mar,
as pesadas juntas de bois levadas à soga pelas moças. O lavrador associa-se ao
homem do mar. Nesses dias larga o arado e toma parte na companha, ajudando a
alar a grande rede que se usa para estas bandas e que as bateiras lançam à
água. É um espectáculo extraordinário ...
Isto está de
todo apagado nos meus apontamentos, mas ainda hoje, depois de tantos anos,
tenho a impressão da paisagem de areal e pinheiros, do hálito azul matutino
molhando a vegetação e da claridade hesitando em pousar e o sol em aquecer.
Há manhãs à
beira-mar em que tudo parece um pouco de tinta muito leve e mais nada. Um pouco
de tinta e frescura. A própria luz molhada estremece. O doirado tem muita água
e desbota. Uma gota de azul basta para o mar e o céu. E a manhã, trespassada e
a escorrer, nascida e hesitando, faz medo que se desvaneça como fantasmas de
manhã.
Cabedelo |
NO CABEDELO
O Cabedelo
para mim era o deserto cheio de prestígio e de aventuras... Era no Cabedelo que
tomávamos os melhores banhos, deitados na areia, deixando vir sobre nós a vaga
num rodilhão de algas e espuma. Andar um momento envolvido na crista da onda,
ser atirado numa sufocação sobre a areia, correr de novo para o mar, direito à
vaga que se encapela lá no fundo, formando concha, outra vez aturdido e
impregnado de uma vida nova; e depois procurar, a escorrer, um côncavo
quentinho de areia que nos sirva de abrigo contra o vento e secar-se a gente
naquele lençol doirado – é uma das coisas boas da terra. E outro prazer simples
e extraordinário E ir descalço pelo grande areal fora com os pés na água. A
onda vem, espraia-se, molha-nos e salpica-nos de espuma. Calca-se esse mosto
branco e salgado, que gela e vivifica, e caminha-se sempre ao lado dos
sucessivos rolos que se despedaçam na areia. Ao longe o mar chapeado de placas
movediças... A onda vem, cresce e, antes de se despedaçar em espuma, o sol
veste-a de uma armadura de aço a reluzir. Há-as de um esverdeado de alga morta,
há-as que se derretem e fundem em torvelinhos de branco e há-as que recuam e se
enovelam noutras ondas prestes a desabar. Mas há umas, esplêndidas, que vi em
Mira, ao pôr do Sol, quando o vasto areal fica todo ensanguentado. A onda
forma-se e corre por aquela magnífica estrada que vem do sol até à praia, ganha
primeiro reflexos doirados na crista e depois, quando se estira pelo areal
molhado, fica cor do vinho nos lagares.
Outras vezes
percorríamos o Cabedelo a pé como exploradores. Há lá canaviais, poças de água
azul e polida, rochas luzidias por onde escorregávamos, peixes nascidos que
procuram o refúgio das pedras e a água aquecida para se acabarem de criar,
caranguejos nas fisgas e, na vazante da maré, grandes lagos que navegávamos ao
acaso, deixando o barco ir à toa e encalhar no areal ...
O Cabedelo
produz, além das canas, uma espécie de cardo, plantas rasteiras e humildes de
folha dura, que dão uma flor pequenina e vermelha, outras que parecem os
chapotos que nascem nos velhos muros, e ainda outras mais pobres com a folha em
escama pela haste acima. Estes vastos areais, revestidos às vezes de cabelos de
oiro que seguram as dunas, estão todo o
ano a concentrar-se para em Agosto sair daquela
secura e do amargo do sal, um lírio branco que os perfuma, dura algumas horas e
logo desaparece.”
Raul Brandão, in Os Pescadores,
1923, Livraria Bertrand
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