Por Eugénio Lisboa
After being turned down by a number of publishers,he decided
to write for posterity.
George Ade
"O pior que pode acontecer a um candidato a escritor ou mesmo a um escritor já feito é ver um manuscrito seu recusado por um editor. É como se lhe maltratassem um filho, no qual tivesse investido muito tempo, amor e carinho. A carta de rejeição do editor, mesmo polida e atenciosa, é uma autêntica facada na auto-estima do candidato. Alguns sucumbem logo a esta primeira rejeição porque, de tal modo ficam feridos, que nunca mais tentam a sorte. Recolhem-se em si mesmos e confiam, ruminando, numa posteridade eventualmente mais benévola. O que é, diga-se de passagem, uma leviandade e um grande risco: porque não há razão absolutamente nenhuma para se pensar que a posteridade é mais inteligente e mais justa do que a contemporaneidade. É até, provavelmente, mais distraída e mais obtusa. O que não impede que egrégias criaturas nela tenham confiado cegamente. O grande poeta inglês, John Keats, por exemplo, numa carta dirigida a George e Georgiana Keats, observava: “Eu penso que estarei entre os Poetas Ingleses, depois da minha morte.” E o grande Nietzsche, no seu livro autobiográfico, Ecce Homo, previa: “O meu tempo ainda não chegou; alguns nascem postumamente.” A verdade é que Keats foi muito pouco apreciado enquanto vivo e Nietzsche só começou a ter alguma popularidade, quando já se encontrava encerrado no negrume da sua loucura. Porém, de um modo geral, não vale realmente a pena apostar muito numa posteridade alegadamente justiceira, embora haja casos comoventes de justiça póstuma. Fala-se, por exemplo, de Stendhal: ele próprio previa ir ser reconhecido cinquenta anos após a sua morte, mas a verdade é que Balzac, sendo embora uma excepção, o reconheceu em vida e o fez de modo magnífico, num longo e meditado artigo publicado na Revue Parisienne.
A reacção de desistência, à primeira tentativa de publicação, além de ligeiramente esquizofrénica, revela um total desconhecimento da dura realidade que é o mundo da edição. Neste, a rejeição é a regra. Um número muito grande de ulteriores “best-sellers” e, mesmo, nalguns casos, de verdadeiros grandes livros, começou por ser acolhido, não por uma nega, mas, não raro, por uma grande sucessão de negas. E pelos motivos mais bizantinos.
De entre os motivos aduzidos para a rejeição de obras de ficção, registarei, por exemplo, estes: 1) – previsão de falta de mercado para o livro (o que, frequentemente se não verifica, pelo contrário); 2) – falta de habilidade do autor para as subtilezas do “marketing” ou escassez de contactos úteis, da parte do escritor; 3) – o autor ter tido, no passado, um insucesso; 4) – o livro ser de um género em que o editor não teve, até então, êxito; 5) – a obra não parecer “autêntica”; 6) – o livro ser demasiado complexo; 7) – a história não seduzir logo desde o início; 8) – o protagonista não ser suficientemente interessante; 9) – o livro ter qualquer coisa de um manual de auto-ajuda; 10) – a história estar cheia de “clichés”. Estes e outros motivos invocados levam, com alguma frequência, à rejeição de manuscritos de real valor. Nalguns casos, mesmo, repito, de obras que viriam, depois, a ficar clássicas, no mundo da literatura. Por vezes, a rejeição é feita por carta de uma insuportável virulência, como foi o caso com o célebre romance Lolita, de Vladimir Nabokov, do qual um editor disse estes mimos: "Esmagadoramente nauseabunda (…). A coisa é toda ela um cruzamento de incerteza entre a realidade hedionda e a fantasia improvável. Muitas vezes torna-se um devaneio neurótico e selvagem. Recomendo que seja enterrado com uma pedra, durante mil anos.”
Em termos do número de rejeições sofridas por um autor, o campeão talvez tenha sido o escritor americano Jack London, autor de contos e romances famosos (White Fang, Call of the Wild e Martin Eden, entre muitos outros), que recebeu, pela sua primeira história, 600 rejeições. O romance Lord of the Flies (O Deus das Moscas, na versão portuguesa), de William Golding, recebeu 20 negas antes de ser publicado. Também um “record” foi o famoso Gone with the Wind, de Margaret Mitchell, de que se fez um filme de grande êxito, com Vivien Leigh e Clark Gable, nos principais papéis: foi rejeitado 38 vezes, antes de ser finalmente aceite. Carrie, do “best-seller” Stephen King – depois adaptada ao cinema – acolheu, inicialmente 30 negas. Dubliners, contos de James Joyce, sofreu 22 rejeições, acabando por ter uma primeira edição com a mísera tiragem de 1250 exemplares, dos quais se venderam, no primeiro ano, 379 (120 comprados pelo próprio Joyce). Duna, o celebrado romance de ficção científica, de Frank Herbert, encaixou 23 negas. O belo romance The Good Earth, de Pearl Buck, foi rejeitado uma dúzia de vezes, antes de ser publicado e obter sucessivamente os Pémios Pulitzer e Nobel. Uma das razões dadas para a rejeição foi a de que os americanos não estavam interessados em histórias sobre a China… Do mesmo modo, o hoje famoso Animal Farm, de George Orwell, foi rejeitado por, alegadamente, ser impossível vender histórias sobre animais. Nem a egrégia Agatha Christie, a Rainha do Crime e, provavelmente, o autor de língua inglesa mais vendido de todos os tempos, se livrou de uma inicial humilhação: o seu primeiro livro – O Misterioso Caso de Styles – sofreu o vexame de ser recusado por seis editoras. Marcel Proust encaixou várias recusas (incluindo uma da prestigiosa Gallimard), antes de publicar o primeiro tomo da Recherche , com a chancela da Grasset, mas pagando do seu bolso a edição. O poeta modernista americano E. E. Cummings depois de receber várias recusas de vários editores, publicou um livro a que deu o título de No thanks (Não, obrigado), no qual nomeou todos os editores que lhe tinham recusado publicação. Kipling, o admirável contista de Jungle Book, de Kim, de Plain Tales from the Hills, agraciado com o Nobel, sofreria rejeição, sob alegação de não saber usar o inglês com correcção. John Le Carré, o autor de vários “best-sellers”, entre eles, O Espião que Veio do Frio, recebeu uma rejeição ao tentar publicar o seu primeiro livro: o editor previu que Carré não tinha futuro.
Os arquivos do prestigioso editor americano Knopf foram vasculhados por David Oshinsky que ali foi encontrar pungentes e surpreendentes casos de rejeição de eminências como Jorge Luis Borges, Isaac Bashevis Singer, Anaïs Nin, Sylvia Plath (sobre esta: “certamente não há talento suficiente para chamar a nossa atenção”), Sartre, A. J. P. Taylor, Nabokov (Lolita: “picante demais”), James Baldwin (“terrivelmente ruim”). O Diário de Anne Frank, rejeitado 15 vezes, foi também recusado pela Knopf, que achou a obra “muito enfadonha” e “ um registo monótono de brigas típicas de família, contrariedades triviais e emoções adolescentes”. E concluía: “Mesmo que a obra tivesse surgido cinco anos antes, quando era oportuna, não creio que tivesse qualquer hipótese.”
Mas há casos em que um editor pode pagar caro o facto de recusar um manuscrito para publicação. Foi o que aconteceu com o livro The White Goddess (A Deusa Branca), do escritor inglês Robert Graves. O primeiro editor a quem o livro foi enviado recusou-o. Segundo a tradição, a deusa imediatamente se “vingou”: menos de um mês após a rejeição, o editor morreu de um ataque do coração. O segundo editor achou o livro sem interesse e, pouco depois, foi encontrado enforcado e, o que é mais bizarro, envergando um “soutien” e calcinhas de mulher. Quando, por fim, o manuscrito chegou às mãos de T. S. Eliot, da Faber &Faber, o poeta-editor não quis correr riscos e mandou que o livro se publicasse, “custasse o que custasse”. Há quem pense que foi por isso que ele ganhou, algum tempo depois, o Prémio Nobel: favores da deusa agradecida. " Eugénio Lisboa, em Crónica publicada no JL nº 1219
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