A minha pátria é a
língua portuguesa
"Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa me
teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda
creança, li pela primeira vez numa selecta, o passo celebre de Vieira sobre o
Rei Salomão, "Fabricou Salomão um palacio..." E fui lendo, até ao
fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma
felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar.
Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir
das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle
assombro vocalico em que os sons são cores ideaes — tudo isso me toldou de
instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando,
ainda chóro. Não é — não — a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é
a saudade da emoção d´aquelle momento, a magua de não poder já ler pela
primeira vez aquella grande certeza symphonica.
Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num
sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa.
Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me
incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio
que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem
escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa
própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem
ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o
cuspisse.
Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e
ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m´a do seu vero manto
régio, pelo qual é senhora e rainha."
Texto publicado
originariamente em "Descobrimento", revista de Cultura n.º 3, 1931,
pp. 409-410, transcrito do "Livro do Desassossego", de Bernardo
Soares (heterónimo de Fernando Pessoa), numa recolha de Maria Aliete Galhoz e
Teresa Sobral Cunha; ed. de Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1982 vol.
I, p. 16-17.
Nota: Respeitou-se a ortografia da época de Fernando Pessoa.
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