Elogio da sombra
A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal está morto ou quase morto.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que ainda não são a treva.
Buenos Aires,
que dantes se espraiava em arrabaldes
rumo à planície sem fim,
voltou a ser a Recoleta, o Retiro,
as confusas ruas do bairro Once
e as vacilantes casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Houve sempre na minha vida demasiadas coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os olhos para pensar;
o tempo foi o meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e é parecida com a eternidade.
Os meus amigos não têm rosto,
as mulheres são o que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isto deveria amedrontar-me,
mas é uma doçura e um regresso.
Das gerações de textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que ainda hoje leio na memória,
lendo-os e transformando-os.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
ao meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
devaneios e sonhos,
cada ínfimo instante de outrora
e dos outroras do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os actos dos mortos,
o partilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego ao meu centro,
à minha álgebra e à minha chave,
ao meu espelho.
Em breve saberei quem sou
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Jorge Luis Borges, Elogio da sombra, 1969, Ed. Globo
Jorge Luis Borges, Elogio da sombra, 1969, Ed. Globo
A
Utilidade da Visão
Platão,
360 a.C.
"À imagem da
figura do universo, que é esférica, as divindades prenderam as órbitas divinas,
que são duas, num corpo esférico: este a que chamamos cabeça, que é a parte
mais divina, e domina todas as outras partes que há em nós; a ela os deuses
entregaram todo o corpo, como servo, ao qual a juntaram, percebendo que tomaria
parte em todos os movimentos e em tudo quanto ele tivesse. Para que não rolasse
sobre a terra, que tem altos e depressões de todo o tipo, e não tivesse
dificuldade em transpor umas e sair de outras, deram-lhe este veículo para
fácil deslocação; daí que o corpo seja comprido, e tenha por natureza quatro
membros extensíveis e flexíveis, fabricados pelo deus para a deslocação.
Recorrendo a eles para se apoiar e se agarrar, era capaz de se deslocar por
todos os locais, enquanto transportava no topo a morada daquilo que em nós é
mais divino e sagrado. Foi por este motivo e deste modo que a todos foram
anexadas pernas e mãos.
Considerando
que a parte da frente é mais nobre e própria para governar do que a de trás, os
deuses deram-nos a capacidade de caminhar melhor nesse sentido. Portanto, era
preciso que a parte da frente do corpo humano fosse distintiva e dissemelhante.
Foi por isso que, em primeiro lugar, estabeleceram neste lado da parte exterior
da cabeça o sítio do rosto, e em seguida firmaram os instrumentos relacionados
com todas as capacidades de providência da alma, e estabeleceram que, de acordo
com a natureza, seria na parte anterior que ficariam situados os órgãos que
tomam parte na governação.
Entre os
instrumentos, fabricaram em primeiro lugar os olhos, portadores da luz,
tendo-os ali fixado pela seguinte razão: essa espécie de fogo que não arde,
antes oferece uma luz suave, os deuses engendraram-no, de modo a que a cada dia
se gerasse um corpo aparentado. O fogo puro que há dentro de nós, irmão do
outro, fizeram com que ele corresse pelos nossos olhos com suavidade e de modo
contínuo, pelo que comprimiram ao máximo o centro dos olhos, de tal forma que
sustivesse a outra espécie mais espessa, na sua totalidade, e filtrasse apenas
esta espécie pura. Deste modo, quando a luz do dia cerca o fluxo da visão, o
semelhante recai sobre o semelhante, tornam-se compactos, unindo-se e
conciliando-se num só corpo ao longo do eixo da visão; o que acontece onde quer
que aquele fogo que sai do interior contacte com o que vem do exterior. Assim,
gera-se uma homogeneidade de impressões, pois o todo é muito semelhante; se
esse todo tocar em algo ou se algo tocar nele, distribui os seus movimentos por
todo o corpo até à alma, e produz a sensação a que nós chamamos “ver”. Quando o
fogo se afasta ao cair da noite, separa-se do fogo de que é congénere; por cair
sobre algo que lhe é dissemelhante, ele altera-se e extingue-se, pois a sua
natureza não é congénere à do ar que o rodeia, já que este não tem fogo. Então,
a visão acaba e gera-se o convite ao sono.
De facto, quando se cerra a protecção que os deuses engendraram para a visão ―
as pálpebras ―, essa protecção sustém o poder do fogo interno. Este dispersa-se
e acalma os movimentos do interior. Uma vez acalmados, gera-se o sossego, e,
uma vez gerado um sossego profundo, abate-se um sono com poucos sonhos; mas
quando restam alguns movimentos fortes, conforme a sua natureza e os locais
onde ficam, produzem no interior simulacros que se assemelham, quanto à
natureza e ao número, ao exterior e que serão recordados ao acordar. Assim, já
não é difícil perceber a formação de imagens em espelhos e em todas as
superfícies reflectoras e lisas. Por causa da relação recíproca que o fogo
interior e o fogo exterior mantêm entre si, cada vez que um deles encontra uma
superfície lisa, mudando constantemente de forma, todas estas imagens aparecem,
por necessidade, graças à conjunção entre o fogo que circunda o rosto e o fogo
que circunda a visão, quando se deparam com uma superfície lisa e brilhante.
Aquilo que está à direita aparece à esquerda, porque é com as partes contrárias
da visão que as partes contrárias do fogo exterior estabelecem contacto, em
oposição ao que habitualmente acontece quando chocam entre si. Pelo contrário,
a direita está à direita e a esquerda à esquerda, quando a luz muda de direcção
por se fundir com o objecto com que se funde; o que acontece sempre que a
superfície lisa dos espelhos, por adquirir uma saliência de um lado e de outro,
empurra para o lado esquerdo da visão a luz que vem do lado direito e
vice-versa. Mas, se o espelho for redondo transversalmente, em relação ao rosto,
fará com que tudo apareça invertido, porque empurra para cima a luz que vem de
baixo e para baixo a que vem de cima.
Todas estas
são causas acessórias que um deus utiliza como auxiliares para cumprir o que
lhe compete, conforme pode, a ideia do melhor. No entanto, a maioria considera
que não são causas acessórias mas sim as causas de tudo, visto que produzem o
arrefecimento e o aquecimento, a solidificação e a fusão e efeitos desse tipo.
Mas não é possível que tais causas possuam razão ou intelecto em relação ao que
quer que seja. Temos que dizer que, entre todos os seres, o único ao qual é
adequado possuir intelecto é a alma ― pois esta é invisível, enquanto que o
fogo, a água, a terra e o ar foram todos gerados como corpos visíveis ― e que o
amante da intelecção e do saber persegue, por necessidade, as causas primeiras
do que na natureza é racional; aquelas que são movimentadas por outros seres e
que, por necessidade, transmitem o movimento a outras, essas são causas
secundárias. Também nós devemos fazer isso; devemos falar de ambos os géneros
de causas, distinguindo as que fabricam coisas belas e boas com o intelecto das
que, isentas de intelecção, cada vez que produzem algo, o fazem ao acaso e sem
ordem. Coube-nos então falar das causas acessórias, pelas quais os olhos
obtiveram o poder que agora têm. Da obra mais importante, do ponto de vista da
sua utilidade, razão pela qual o deus no-la ofereceu, é sobre ela que nós
devemos falar.
Em meu
entender, a visão foi gerada como causa de maior utilidade para nós, visto que
nenhum dos discursos que temos vindo a fazer sobre o universo poderia de algum
modo ser proferido sem termos visto os astros, o Sol e o céu. Foi o facto de
vermos o dia e a noite, os meses, o circuito dos anos, os equinócios e os
solstícios que deu origem aos números que nos proporcionam a noção de tempo e a
investigação sobre a natureza do universo. A partir deles foi-nos aberto o
caminho da filosofia, um bem maior do que qualquer outro que veio ou possa vir
alguma vez para a espécie mortal, oferecido pelos deuses. Afirmo que este foi o
maior bem facultado pelos olhos. Por que razão havemos de celebrar os outros
que são inferiores a estes, pelos quais só um não-filósofo choraria, se ficasse
cego, com lamentos em vão?
Quanto a nós,
declaremos que esse bem nos foi dado pelo seguinte motivo: o deus descobriu e
concedeu-nos a visão em nosso favor, para que, ao contemplar as órbitas do
Intelecto no céu, as aplicássemos às órbitas da nossa actividade intelectiva
que são congéneres daquele, ainda que as nossas tenham perturbações e as deles
sejam imperturbáveis. Só depois de termos analisado aqueles movimentos,
calculando-os correctamente em conformidade com o que se passa na natureza, e
de termos imitado esses movimentos do deus, absolutamente impassíveis de errar,
podemos estabilizar os que em nós são errantes. [...]"
Platão,in
Timeu – Crítias [44D-47C] pp 123-128,
tradução do grego, introdução e notas: Rodolfo Lopes , editor: Centro de
Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011 ,Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
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