Por
Eugénio Lisboa
“As obras de arte – literária ou outra
– trazem sempre algum desassossego, ao tentarem inserir-se na hierarquia mais
ou menos estável do universo a que supõem pertencer. Mas não é fácil – ou não
costuma ser fácil – fazer-se essa inserção. O génio inovador, pela sua
singularidade, pelas diferenças que acarreta consigo, por uma iluminação nova
que dá ao aparentemente percebido, torna-se incómodo e provocador. Dizia Goethe
que “é um grande triunfo do génio fazer com que o comum pareça ser novo.” E o
filósofo americano William James punha o problema, por outras palavras, de
sentido não muito diferente: “O génio significa pouco mais do que a faculdade
de apreender o real de um modo inabitual.” É este modo “inabitual” de apreender
o real, é este mostrar novo o que parece velho, que insinua, aos desprevenidos,
a perigosidade desse mesmo génio e do novo que consigo acarreta. Não é por isso
de estranhar que os grandes escritores, ao aparecerem, tenham sofrido tratos de
polé, mesmo às mãos de grandes críticos ou mesmo de outros grandes escritores
(seus pares). Neste aspecto, Sainte-Beuve bateu o recorde do mau acolhimento
prestado aos seus grandes (e emergentes) contemporâneos. Falando, por exemplo,
de Stendhal, num dos seus famosos Lundis ( o de 4 de Janeiro de 1854), dizia
isto: “Os seus personagens não são seres vivos, mas, antes, autómatos engenhosamente
construídos.” E o grande Flaubert não fez melhor figura: “Quanto a Beyle, nunca
compreendi o entusiasmo de Balzac por tal escritor, após ter lido o Rouge et
Noir” (sic, carta a Louise Colet, 1852). O próprio Balzac não teve melhor
sorte, nem às mãos de Sainte-Beuve, nem às de Flaubert. O primeiro – em
Portraits Contemporains – debita esta jóia: “Ele [ Balzac ] tem todo o ar de
estar ocupado a acabar como começou...por cem volumes que ninguém vai ler.” E o
segundo cuspinhou um veneno não menos pérfido: “Que homem teria sido Balzac se
tivesse sabido escrever!” Proust também encontrou “resistências” de não pequeno
porte: a começar pelo eminente André Gide, que nunca lhe perdoou os tics
mundanos nem o passar o melhor do seu tempo a cheirar o rabo às marquesas (sem
falar no, para ele, pecado maior, de ter transformado um Albert numa
Albertina...) E Paul Souday, eminente e influente crítico do Temps, caçoava,
abundantemente, com a falta de gramática do autor da Recherche: “Acrescentai
que as correcções pululam, que os particípios do Sr. Proust têm, como dizia um
personagem de Labiche, um hábito lixado, por outras palavras, que eles
concordam mal; que os conjuntivos não são mais conciliantes nem mais
disciplinados, e não sabem mesmo defender-se contra a invasão do indicativo.”
Paul Souday até era capaz de ter razão, gramaticalmente falando (pela mesma
altura, embirrava também com os conjuntivos de outro grande romancista francês,
então no começo da sua carreira: Roger Martin du Gard). O problema é que a
grandeza de um escritor não se resolve apenas nas baias estreitas de uma
gramática certinha. Ainda sobre Proust, este testemunho vergonhoso (já mais de
vinte anos após a sua morte): “Proust é judeu, a sua arte é essencialmente
talmúdica e traz as marcas da decadência e da deliquescência da raça eleita.” E
ainda isto: “Esse sábio borboletear e esses subtis eflúvios literários são bem
feitos para fazer pasmar os snobs, representantes de uma burguesia envilecida e
arruinada, que se compraz na « vidência total», mas não são alimento, não podem
sê-lo, de espíritos sãos, fortes e puros. Não é com estupefacientes que se
forja uma raça.” (Au Pilori, 11.3.1943, sob a Ocupação). Esta denúncia feita
também para benefício do exército alemão de ocupação mostra até que limites da
infâmia pode chegar a chamada “resistência à mudança”. Ela é lamentável, mas
deve dizer-se, querendo ser realista, que é normal. O romancista D. H.
Lawrence, autor do celebrado romance Sons and Lovers não encontrou melhor
maneira de demolir o filósofo Bertrand Russell (cujo cérebro fulgurante o
indignava), do que dizer ao ficcionista William Gerhardie: “Já o viu em fato de
banho? Pobre Bertie Russell! É um espírito sem corpo.” Russell devolver-lhe-ia
a farpa, nestes termos acutilantes: “Lawrence insere-se numa longa linha de
gente, que começa em Horácio e acaba em Hitler, gente cujo motor é o ódio
derivado da megalomania, e arrependo-me de já ter acertado tão pouco ao
avaliá-lo.” Nenhum deles era sensível aos valores de inovação do outro.
Em todos os sectores, não só no campo
(de areias movediças e certezas poucas) da arte, se verifica este fenómeno
muito humano de resistência à mudança. Mesmo em domínios de resultados mais
verificáveis (as ciências, as tecnologias), a resistência à mudança é corrente
e os futurologistas fizeram, com frequência, figura de parvos (incluindo
cientistas eminentes, que disseram os mais rotundos disparates).
Em Portugal, no passado, foi como em
todo o lado. Porém, de há poucas décadas para cá, as nossas elites (e por aí
abaixo) passaram a revelar-se de um acolhimento à mudança e à inovação
verdadeiramente surpreendente: acolhem sempre, com uma grande fluência, rapidez
e entusiasmo, a inovação, mesmo a mais bizarra. Basta que um “clerc” de grande
prestígio (merecido ou não) declare uma obra “genial” ou apenas “deslumbrante”
ou “estimulante”, para que toda a arraia miúda se derrame em orgasmos de
admiração, que invadem mestrados, doutoramentos e pós doutoramentos. Absorver a
inovação já não requer tempo, meditação, estudo, paciência, leitura
obstinada... Damos ao mundo, como se diz por aí (e os brasileiros também,
parece...), um exemplo histórico de não resistência à mudança. Seria belo, se
fosse sincero e profundo. Mas sê-lo-á? Dar, perante o novo e o diferente,
saltos imediatos de contentamento e palmas prematuras de adesão – o entusiasmo
aprovador antes da reflexão – parece-me suspeito. Andar-se-á a ser cândido ou
simplesmente a “faire semblant”? A nossa república das letras estará a
transformar-se num exemplo edificante ou, antes, numa feira de vaidades ocas?
Ver-se-á."
Eugénio Lisboa, em artigo publicado na rubrica “Pro
Memoria” do JL
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