A contra utopia de Huxley e o seu pessimismo
Por Miguel Urbano Rodrigues
Por Miguel Urbano Rodrigues
04.Jan.2016
“Admirável mundo novo” será talvez a mais conhecida obra de Aldous Huxley. Nela descreve uma sociedade contra-utópica, esvaziada de verdadeira humanidade. A burguesia tentou interpretá-la como uma expressão de anticomunismo, opinião que Huxley nunca confirmou. O seu pessimismo é de outra ordem. E é o imperialismo, nas suas diferentes formas de dominação actuais e na sua agressividade global, aquilo que a ficção huxleyana pareceu antecipar.
Foi há quase 70 anos.
Caíram-me nas mãos dois livros de Aldous Huxley: Contraponto* e Admirável Mundo Novo**. Devorei-os em poucas semanas.
A II Guerra Mundial terminara há pouco. O choque provocado pelas hecatombes nucleares de Hiroxima e Nagasaki abalara a Humanidade.
Tensões inesperadas anunciavam o início de uma guerra diferente: a chamada Guerra Fria.
Percebia-se que findara uma época e que o mundo ia mudar. Mas os contornos daquilo que se pressentia surgiam envolvidos numa neblina impenetrável.
Eu tinha 2O anos. Os romances de Huxley eram diferentes de tudo o que havia lido. Mergulharam-me em estado de choque e profunda meditação.
Reli-os agora.
Não esqueci que tinha acompanhado em São Paulo uma conferência de Huxley em 1958 quando ele visitou o Brasil. Estava quase cego e sabia que o seu corpo principiara a ser destruído pelo cancro que o mataria. A assistência tinha direito a perguntas e eu fiz uma. Disse-lhe que o admirava muito, mas que não compartilhava o seu pessimismo sobre o futuro da humanidade. Ele respondeu que era pessimista num patamar do pensamento, mas optimista noutro. Confesso que não conseguia enxergar o seu optimismo.
CONTRAPONTO
Sinto dificuldade em recordar o que senti ao ler Contraponto pela primeira vez. Ficaram gravados na memória os nomes das principais personagens. Durante dias pensei nelas, vivi com elas, atravessando as barreiras que separavam a sociedade do Portugal provinciano dos anos 40 da burguesia intelectual da Inglaterra da década anterior.
A leitura de Contraponto suavizou, recordo, o mal-estar provocado pela contra utopia do Admirável Mundo Novo.
Não há uma estória no livro. É um romance praticamente sem acção. Nele o importante é o discurso das personagens. Foi escrito em 1926 e publicado dois anos depois. As personagens foram criadas para transmitir ideias, mas não é um romance de tese. O autor expõe mundividências e reflexões muito diferentes, com frequência incompatíveis, mas não toma partido.
Duas obras musicais clássicas - uma de Bach, a outra de Beethoven - chamam a atenção na narrativa como fundo sonoro de alguns capítulos. Daí o título do romance, Contraponto, uma figura musical.
As personagens, intelectuais e artistas, são mostruário da época de transição posterior à Primeira Guerra Mundial, anos em que na Inglaterra a vontade de mudança se chocava com resistências muito fortes de uma sociedade conservadora, qualificada por Rudyard Kipling como «raça de senhores».
Huxley descreve bem esse estranho zoo humano, que vai tomando forma pelo que diz e não pelo que faz, porque – repito-o livro carece de acção. Para o criar inspirou-se em destacadas personalidades da época.
Mark Rampion, escritor e pintor, teria, segundo a crítica, como fonte de inspiração David Herbert Lawrence. Phiip Quarles é um intelectual, que ama a solidão, contemplativo, que seria o autorretrato do próprio Huxley. A sua mulher, Elinor, resiste ao fascínio que sobre ela exerce um político truculento,Webley, apontado por alguns como uma caricatura de Oswald Mosley, o fundador da British Union of Fascists. Walter Bidlake, um jornalista, engravidou uma amiga casada, mas está apaixonado por Lucy Tantamount, beldade filha de um lord. Este e Lucy surgem como «cópias» de uma poetisa famosa e de um cientista também célebre, John Haldane, amigo de Huxley.
São apenas algumas das muitas personagens que, ao longo de centenas de páginas, transmitem ideias que Huxley acredita contribuírem para a compreensão de uma época de mudança acelerada rumo ao desconhecido. Relendo hoje Contraponto, sinto que não atingiu o objectivo. Como leitor, identifico no conjunto díspar não mais do que um retrato magnífico da elite intelectual de uma classe social – a burguesia inglesa dos anos 20 do século passado- cuja reflexão sobre a vida e o mundo era tipicamente insular e foi desmentida pelo caminhar da História.
Sinto-me incapaz de encontrar resposta para uma pergunta: por que foi muito importante para mim Contraponto há setenta anos?
Recordando, concluo que contribuiu para atrasar a minha tomada de consciência dos problemas sociais do Portugal oprimido pelo fascismo.
UM GENTLEMAN ATÍPICO
Nascido numa abastada família aristocrática de intelectuais e cientistas, Aldous Huxley foi educado nas melhores escolas da Inglaterra pós vitoriana, ao tempo senhora do maior império que a História regista.
O avô, Thomas Huxley, foi um biólogo célebre, íntimo de Darwin; os irmãos, Julian Huxley e Andrew Huxley (Premio Nobel de Fisiologia e Medicina) foram também cientistas famosos.
Na juventude, Aldous construiu amizade sólida com Bertrand Russell e DH Lawrence.
Viajante infatigável, viveu na Itália ainda jovem quando Mussolini implantou ali o fascismo. Essa experiência, segundo alguns críticos, contribuiu para a decisão de escrever O Admirável Mundo Novo, a contra utopia que o guindou aos píncaros da fama literária.
Redigido em apenas quatro meses, esse romance terá sido sobretudo inspirado - como ele esclareceu muitos anos depois - por NOUS AUTRES ***, uma deslumbrante novela de ficção científica do russo Yevgeny Zamyatin.
Inadaptado à vida na Inglaterra, Huxley fixou residência nos Estados Unidos em 1937. O cinema fascinava-o e escreveu na Califórnia o roteiro de filmes inspirados em livros seus.
Nessa fase da vida consumiu drogas, sobretudo a mescalina e o LSD. Fez essa opção, muito criticada, para estudar os efeitos dos alucinogénios sobre a mente humana, porque acreditava que ampliavam as potencialidades criadoras do cérebro. Mas nunca foi dependente.
Morreu em Los Angeles aos 69 anos, cego e tendo perdido a voz, no auge da glória literária, inseguro quanto ao julgamento do significado da sua contra utopia, alvo de muitas interpretações contraditórias.
Para os intelectuais anticomunistas, O Admirável Mundo Novo é uma denúncia do estado que tomava então forma na jovem União Soviética, um libelo contra o comunismo e uma apologia da liberdade individual.
Não perfilho a opinião. Huxley, que eu saiba, não se pronunciou alias sobre o assunto.
Historiadores e críticos literários prestigiados lembram que em 1931, quando escreveu O Admirável Mundo Novo, a sociedade soviética ainda reflectia a imagem da geração que conduzira à vitória a Revolução humanista de Outubro e o país gozava de enorme prestigio entre a intelectualidade progressista europeia.
SOBRE O ADMIRAVEL MUNDO NOVO
Como obra literária, O Admirável Mundo Novo (Brave New Word no original inglês) é, pela estrutura, um romance mal construído, sem a qualidade do livro de Zamiatyn. O segredo do seu êxito é inseparável da originalidade do tema, novidade absoluta.
Logo no prólogo, o leitor é arrastado para uma sala onde são produzidos seres humanos num laboratório. A procriação animal, há muito proibida, foi substituída pela fecundação in vitro.
Os bebés desenvolvem-se em incubadoras que desde o início os condicionam para uma integração harmoniosa, submissa, na sociedade em que vão viver. Nela não há conflitos, sequer tensões sociais.
É uma sociedade de castas, hierarquizada. No topo os alfas, seguem-se as betas, os deltas, os gamas. Em baixo os ipsílones, disformes, pequenos, feios, escravos de novo tipo. Mas todos são felizes, programados para realizarem trabalhos diferenciados e aceitarem com alegria a sua casta.
O sexo é livre, sem fronteiras, todos pertencem a todos. Mas o amor é encarado como aberração do passado. A literatura limita-se à apologia da civilização perfeita, implantada na Terra, após uma guerra apocalíptica que destruiu a antiga sociedade, recordada como época de barbárie. Os livros de Shakespeare e de todos os clássicos foram destruídos, apagados da memória da nova humanidade.
A música é sintética, o cinema, a pintura, a escultura concebidos para não provocar emoções.
A família como instituição desapareceu com o fim da procriação animal. Mas as relações monetárias sobreviveram, embora a sua função seja outra.
Veículos colectivos cruzam oceanos e continentes em tempo mínimo. Helicópteros e carros individuais conduzem os alfas e os betas dos locais de trabalho aos gigantescos edifícios onde residem, cada um no seu apartamento.
Uma droga maravilhosa, o soma, tomada em comprimidos, é remédio mágico contra tendências depressivas, mergulha as pessoas num olimpo de felicidade artificial.
Os alfas e betas, castas superiores, têm apelidos estranhos que recordam personalidades do mundo antigo: Marx, Trotsky, Napoleão, Engels, Rothschild, Bakunin, etc.
Na cúpula da casta dominante, um núcleo de super-alfas governa a Terra e é responsável pelo bom funcionamento do sistema. A sua excepcionalidade é assinalada pelo título de Sua Forderia, porque a lembrança de Ford permanece quase divinizada.
Deus desapareceu, tornou-se desnecessário, porque a morte não é temida.
Um ser genial, o Benfeitor, vela pela felicidade colectiva.
No sudoeste da América do Norte, onde existiram os Estados Unidos, alguns milhares de homens e mulheres primitivos vivem em Reservas que podem, com autorização especial, ser visitadas por alfas e betas em férias.
Bernard Marx, um alfa invadido por dúvidas e interrogações sem resposta - supostamente por um defeito de fabrico – visita, com uma beta, Lenina, uma dessas Reservas.
Aí encontram Linda e seu filho John, cujo pai, um super alfa, administrador influente, o gerou à moda antiga sem tomar sequer conhecimento do crime.
Marx traz Linda e John consigo, no regresso a Londres.
A última parte do livro é dedicada ao choque de John, o Selvagem, com uma sociedade que gradualmente lhe inspira repugnância. O Selvagem persegue o amor puro, e a diferença entre os humanos, é romântico, leu obras de Shakespeare num velho livro encontrado na Reserva. Sente necessidade de Deus. O nojo que o invade é tão insuperável que, isolando-se num farol, se suicida.
Em 1958, Huxley, já muito doente, escreve e publica Regresso ao Admirável Mundo Novo****.
É uma serie de ensaios em que sublinha, com um sentimento de angustia, que, transcorrido pouco mais de um quarto de século, muitas das previsões da sua contra utopia estavam a ser concretizadas pelos progressos da ciência e a desumanização da vida. Atribui essa evolução assustadora às armas nucleares, ao aumento galopante da população do planeta e à superorganização das sociedades industriais do mundo contemporâneo. Cita repetidamente Hitler num capítulo da obra.
O complexo industrial militar criado pelas gigantescas transnacionais do armamento tinha atingido tamanho poder nos EUA que Eisenhower o denunciou como um perigo. Mas muita água correria pelo Hudson até que a engrenagem de poder tivesse condições para impor à Casa Branca uma política belicista, inseparável de uma cadeia de guerras de agressão, erigindo o terrorismo de estado em instrumento de acção de uma estratégia de dominação planetária que exige na prática a alienação e robotização de uma humanidade com afinidades com a descrita no famoso romance huxleyano.
Em o Regresso ao Admirável Mundo Novo, o pessimismo de Aldous Huxley é inocultável.
Miguel Urbano Rodrigues , em artigo publicado na imprensa digital.
*Contraponto, Aldous Huxley, ultima edição portuguesa, Livros do Brasil, 2007
**Le Meilleur des Mondes, Aldous Huxley, Plon, Paris
***Nous Autres, Yevgeni Zamyatin, escrito em 1920, foi editado pela primeira vez em l929 pela Gallimard, em França. A mesma editora lançou uma nova edição em 1971
**** Regresso ao Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley, Editora Antígona, 2014, Lisboa
Sobre Miguel Urbano Rodrigues
Miguel Urbano Rodrigues |
"O jornalista e escritor português Miguel Urbano Rodrigues faleceu, sábado (27), aos 91 anos, em Lisboa. Esteve exilado no Brasil entre 1957 e 1974, onde foi editorialista de O Estado de S. Paulo. Regressou a Portugal após o 25 de Abril de 1974. De regresso a Lisboa, leccionou História Contemporânea na Faculdade de Letras, foi presidente da Assembleia Municipal de Moura (1977/78), deputado à Assembleia da República, pelo PCP (1990/95), deputado às Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental.
Era um dos mais ilustres militantes do Partido Comunista Português.
Era um dos mais ilustres militantes do Partido Comunista Português.
Liderou o projecto do jornal “O Diário”, que tinha por lema “a verdade a que temos direito”, que foi montado entre Novembro e Dezembro de 1975. O primeiro número saiu a 6 de Janeiro de 1976, com uma redacção recrutada sobretudo no “Diário de Notícias”, de que tinha sido jornalista, entre 1949 e 1956, mas sem incluir José Saramago, ex-director-adjunto deste matutino. “O Diário” sobreviveria até 1990.
Às obras iniciais como “O Homem de Negro” (1958) e “Opções da Revolução na América Latina” (1968), suceder-se-iam “Revolução e Vida” (1977), “Polónia e Afeganistão” (1983), “Em Defesa do Socialismo” (1990), os romances “Alva” (2001) e “Etna no Vendaval da Perestoika” (2007), as memórias de “O Tempo e o Espaço em Que Vivi I e II” ou “Meditação descontínua sobre o envelhecimento” (2009).
“O Diário Liberdade”, “portal anticapitalista da Galiza e países lusófonos”, e "ODiário.info", publicação digital de que era coeditor, reúnem os derradeiros textos de Miguel Urbano Rodrigues.
Natural de Moura, Alentejo, Miguel Urbano nasceu a 02 de Agosto de 1925. Filho de Urbano Rodrigues era irmão do escritor Urbano Tavares Rodrigues.
Escritor, jornalista, historiador, ensaísta, Miguel Urbano Rodrigues foi sempre fiel ao seu ideário, nunca deixando de manifestar o seu pensamento, apesar da controvérsia que pudesse provocar."
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