A Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses
"Segundo uma notícia posta a correr pela T.S.F. e que não vi repetida por nenhum dos jornais que leio, a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, a que normalmente nos referimos, em abreviado, como a Comissão dos Descobrimentos, vai, ao fim e treze anos, “ser extinta”. Poucas notícias terão o poder de nos causar um misto tão perturbante, de tristeza, frustração e sentido de injustiça. Criada, realmente, em 1988, por Vasco Graça Moura, visto que uma primeira e efémera gestão se mostrara ineficaz, a Comissão dos Descobrimentos desempenhou, sob a égide competente de Vasco Graça Moura (até 1995) e, depois, de António Hespanha e de Romero de Magalhães, um papel importante no que diz respeito a dar ao vivo a saga portuguesa dos descobrimentos.
Nunca esquecerei aquela reunião de conselheiros culturais que teve lugar em Lisboa, em 1988, na qual, Vasco Graça Moura, que dela tivera a iniciativa, quisera que se atirassem para cima da mesa ideias, projectos, estímulos, provocações. Lembro-me, pela minha parte (era, nessa altura conselheiro cultural na nossa embaixada em Londres), ter tido a impertinência de dar não um punhado de pequenas ideias mas, antes, uma única e grande ideia: que, a exemplo da prestigiosa School of Oriental and African Studies, de Londres, a Comissão dos Descobrimentos se constituísse, desde logo, em embrião do que, no momento da sua extinção, em 2000, deviria o equivalente daquela instituição britânica de ensino superior. Como Portugal, a Inglaterra tivera um império mas aquela escola superior, que fora criada para dar formação aos administradores do dito império, quando este se extinguiu, em vez de se extinguir também... manteve-se de pé e cresceu. È hoje um monumento que visitam e cuja biblioteca, riquíssima, consultam gentes oriundas de todo o mundo, incluindo as antigas colónias portuguesas: ali fazem pós-graduações e preparam trabalhos de fundo aqueles que não encontram, em Portugal, instituições equivalentes ou igualmente dotadas, do ponto de vista bibliográfico. Os britânicos entenderam – e bem – que o império se extinguira mas com ele se não extinguira todo um património cultural que era imperativo gerir. Portugal tivera um império até mais longo e competia-lhe, pois, acompanhar, com carinho e rigor, um património por esse mundo repartido. A Comissão dos Descobrimentos fez isso mesmo, mas para um período da nossa História limitado a doze anos: doze anos de impressionantes feitos, ricos de consequências, mas apenas doze anos. A Casa da História que se dizia ir substituí-la fá-lo-ia para toda a duração da História de Portugal. E a Universidade equivalente à School of Oriental and African Studies, que eu propus, fá-lo-ia para um leque de disciplinas que incluiriam a História mas em muito a excederiam: História, literatura, antropologia, sociologia, etc. etc. Lembro-me da reacção de Vasco Graça Moura, perante a minha ideia: face ao inesperado e à dimensão dela, mostrou-se meio seduzido, meio cauteloso, talvez intimidado. Mega Ferreira, presente, atreveu-se: que a ideia era óptima, que lhes mandasse, de Londres, uma carta, expondo por escrito o projecto e dando a minhas razões. Fi-lo, juntando um pequeno livro com a história da School londrina. Soube, pouco depois (assim mo disse Mega Ferreira) que o saudoso historiador e matemático, Luís Albuquerque, embandeirara em arco com o projecto e até ideara logo um formoso título para universidade-a-haver. Soube mais: que o primeiro ministro, à época, o Prof. Aníbal Cavaco Silva, também reagira muito positivamente à ideia, tendo prometido que, em 1998 (ano celebrativo da viagem do Gama), a Universidade seria oficialmente criada. Em 1998 Cavaco Silva não estava no poder para dar cumprimento ao que prometera. Mas não é tarde. Tanto a Casa da História como, melhor, uma universidade de Estudos Atlânticos e Índicos (e Pacíficos!) que recolhesse toda uma bibliografia dispersa e objectos de arte representativos de uma multidão de culturas (bibliografia e objectos inclusivamente em casas de particulares regressados do Ultramar e que talvez se não opusessem a uma doação) daria curso a uma gestão amorosa e minuciosa de todo um património que não é de desprezar...
A Comissão dos Descobrimentos fez muito no sentido de promover centros de investigação histórica em todo o mundo (em Oxford, por exemplo), patrocinou a tradução, em línguas estrangeiras, de obras fundamentais portuguesas, ou simplesmente a publicação, nessas línguas, de obras importantes nelas originalmente escritas sobre a nossa história e cultura. De Londres, propus a V.G.M. inúmeras obras que a Comissão apoiasse e manda o fair-play que se diga que o apoio – generoso – nunca faltou. Essas obras correm hoje mundo – o inglês é uma língua propiciadora – e dão testemunho do que Portugal tem feito. Mas a Comissão fez muito mais: promoveu colóquios, conferências, e exposições (acompanhadas de magníficos catálogos, que são estupendos instrumentos de trabalho), promoveu os internacionalmente reputados Cursos da Arrábida (uma autêntica Universidade de Verão, com participação dos melhores especialistas do mundo), etc. etc. Não vou aqui demorar-me num exaustivo inventário de tudo o que a Comissão fez, promoveu, incentivou, semeou. Esse relatório está feito e o governo ou o conhece ou, no mínimo, o possui. Não é preciso explicar as razões pelas quais a História é importante: dizia Cícero que “sermos ignorantes daquilo que aconteceu antes de termos nascido é permanecermos crianças.” E perguntava: “ Que dignidade tem a vida humana se não estiver entretecida na vida dos nossos antepassados pelos registos da história?” A História, tem sido variamente sugerido, vale por uma verdadeira interpretação da vida e é, visto isso, uma vertente fundamental da nossa formação. A História não é, como queria o inefável Henry Ford, uma “baboseira”. A história é uma componente forte da vida. Como notava Eliot, “o sentido da história implica a percepção não só da passadez do passado mas também da sua presença.” Suprimir a Comissão dos Descobrimentos, por razões grosseiramente contabilísticas é dar uma horrível marca de insensibilidade à importância eminente da cultura e da história na imagem que um país produz na comunidade internacional. O que pode trazer – e já tem trazido: os ingleses que o digam – consequências inesperadas na aceitação internacional dos produtos que o país entenda comerciar. Porque um país cuja imagem cultural é pífia ou inexistente dificilmente se credibiliza como capaz de produzir, de modo fiável, outros produtos de exportação. Os britânicos verificaram-no, para sua não pequena surpresa ... antes da criação do British Council.
Pareceria portanto de bom aviso que se revisse um pouco a mentalidade contabilístico-salazarista que leva a resolver os problemas do país pela via sábia de cortar despesas à toa (salários, conforto social, cultura) e aumentar impostos. Dizia Voltaire que “de um modo geral, a arte de governar consiste em tirar o máximo de dinheiro possível a uma parte dos cidadãos para o dar a outra parte”. Só resta averiguar se aqueles (ou aquilo) a que se tira são aqueles (ou aquilo) a que se deve tirar e se aqueles ou aquilo a que se dá são aqueles (ou aquilo) a que se deve dar.
Cortar na cultura parece fácil e sem consequências de monta. A história, quando ela está ao alcance e se pode ler, ensina uma coisa muito diferente.
Para aligeirar e dar a estas coisas o tom cómico que elas afinal merecem, termino contando a história do vigário a quem pediram que fizesse, numa peça de Natal, o papel de eunuco. Respondeu, furioso: “O ano passado tive que cortar o bigode – isto está a ir longe demais!”
Eugénio Lisboa, em Crónica publicada no JL
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